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Segundo Marcuschi (2008, p. 147), "é com Aristóteles que surge uma teoria mais sistemática sobre os gêneros e sobre a natureza do discurso". E é interessante destacar que o resgate da Retórica aristotélica, através da Nova Retórica e da Pedagogia Retórica, muito pode contribuir para um ensino da produção textual mais engajado, ou seja, mais comprometido com a formação de "retores" legítimos, aqueles que têm plenas condições de exercerem sua cidadania e de participarem efetivamente de eventos discursivos que ocorrem em sociedade.

Adilson Citelli (2005) nos fala sobre as contribuições de Aristóteles para os estudos da persuasão. Segundo ele, com a obra Arte retórica, "[...] estamos diante de um corpo de normas e regras que visa saber o que é, como se faz e qual o significado dos procedimentos persuasivos". E ainda acrescenta: "A retórica tem, para Aristóteles, algo de ciência, ou seja, é um corpus com determinado objeto e um método verificativo dos passos seguidos para se produzir persuasão." (p. 10).

Objetivando contribuir para uma melhoria do ensino da produção textual, fundamento minhas discussões e análises também em alguns princípios da Pedagogia Retórica.

A abordagem que faço baseia-se, prioritariamente, na Tese de Professor Titular, defendida por minha orientadora, Eliana Amarante de Mendonça Mendes, em 2010, com o principal objetivo de oferecer subsídios para a revitalização da Pedagogia Retórica, para a sua aplicação no ensino da produção de textos escritos.

Segundo ela, trata-se de "um sistema de aprendizagem teórica e prática que desenvolvia nos aprendizes competências na arte da comunicação oral e escrita". (MENDES, 2010, p. 102). É uma pedagogia "altamente consistente, bem estruturada e completa", na qual se destacam os seguintes aspectos:

 A consideração da dicotomia forma/conteúdo;

 A imitação, ferramenta fundamental da aprendizagem;  A noção de texto-modelo, de paradigma;

 As ferramentas da inuentio (invenção, descoberta de argumentos), em especial os tópicos;

 Os ensinamentos da dispositivo (o arranjo do discurso em partes);

 A sistematização do trabalho com a argumentação/persuasão, incluindo a Lógica;

 A consideração dos tópicos, tipos textuais e gêneros;  As noções de kairós, audiência e decorum;

 Os progymnásmata (Ibid., p. 250).

Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), toda argumentação está atrelada a uma escolha, "que consiste não só na seleção dos elementos que são utilizados, mas também na técnica da apresentação destes. As questões de forma se mesclam com questões de fundo para realizar a presença." (p. 136).

Na Pedagogia Retórica, as considerações sobre forma e conteúdo são importantes principalmente nos exercícios de imitação4. Segundo Jaqueline Souki:

A divisão entre "o que é" comunicado por meio da linguagem e "como" isso é comunicado – a distinção entre forma e conteúdo – foi muito utilizada na Pedagogia Retórica, na qual a prática da imitatio era a que mais exigia dos estudantes analisarem forma e conteúdo. Os alunos tinham que observar cuidadosamente um texto-modelo e, então, copiar [imitar] sua forma, dando- lhe novo conteúdo. Ou copiar [imitar] o conteúdo e dar-lhe uma nova forma. (2012, p. 142).

Conforme Mendes e Souki descrevem em seu artigo, também destinado à revitalização e aplicação dessa pedagogia:

A pedagogia retórica repousa numa íntima relação entre leitura/escrita e observação/composição. Divide-se em dois tipos de atividade hierarquicamente situadas: análise e gênese. A observação de sucessivos discursos e textos precede e aperfeiçoa a fala e a escrita. O incentivo à leitura não se deve somente à busca do conteúdo, mas, também, à busca de técnicas e estratégias úteis. Tais técnicas podem ser adaptadas e adotadas para aprimorar a fala e a escrita dos aprendizes, através de vários tipos de exercícios, inclusive os de imitação (imitatio), sem dúvida o maior pilar da pedagogia retórica. Finalmente, como um coroamento do processo,

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Neste contexto, esclareço que imitação não se confunde com cópia fiel, pois não é "uma atividade puramente mecânica". Souki (2012, p. 214), apoiando-se na psicologia de Vygotsky, argumenta que: "A imitação é inerente ao processo de aprendizagem, sofrendo determinações históricas e culturais, não de forma mítica ou mecânica, mas como um determinante para a aquisição do conhecimento e, por consequência, para o desenvolvimento do aluno."

exercícios retóricos mais específicos e avançados são aplicados para habilitar os aprendizes a passar da análise para a gênese, quando eles próprios, não mais imitando, já são capazes de criar seus textos e falas. (MENDES; SOUKI, 2015, p. 145-146).

Elas defendem que a imitação é

uma prática pedagógica eficaz como um instrumento de desenvolvimento da aprendizagem e como um instrumento de recuperação dentro de uma pedagogia da escrita centrada no aluno.

[...]

Imitando uma variedade de modelos bem escolhidos e internalizando os diversos padrões de linguagem, os aprendizes tomam consciência de formas alternativas de expressão e tornam-se, ao fim do processo de aprendizagem, verdadeiros estilistas e escritores criativos, com pensamento independente. (MENDES; SOUKI, 2015, p. 147).

Partindo-se da observação e análise de textos modelo, o aluno será preparado para a gênese, isto é, para a criação do seu próprio texto. Nessa análise, faz-se uma dissecação do texto base, o que vai possibilitar a imitação inteligente desse modelo. Assim, "a análise retórica começa com a escolha apropriada de um dado modelo, e tal seleção deve ser feita, por um lado, focando-se o conteúdo, e por outro, especialmente, o estilo do autor, levando-se sempre em conta valores morais" (MENDES, 2010, p. 105).

No caso da redação do ENEM, sugere-se que o professor use, como texto modelo, uma redação que tenha obtido nota máxima em alguma edição desse exame. No guia do participante (BRASIL, 2013), por exemplo, podem ser encontradas redações que foram avaliadas com nota 1000 no ENEM 2012, as quais podem ser usadas para estudo em sala de aula. Feita a escolha de um modelo, proceder-se-á a uma análise minuciosa do conteúdo e da forma que justificam a excelência do texto.

Ainda na perspectiva da imitação como estratégia didática, a Pedagogia Retórica propõe exercícios de variação e amplificação:

A variação é um tipo de exercício que pretende ensinar como uma mesma sentença pode tomar inúmeras diferentes formas, mantendo-se o mesmo significado. Com isso, buscava-se a copia uerborum, a abundância de alternativas de expressão. É, portanto, também um exercício de imitação do conteúdo.

A amplificação, na Retórica, às vezes tinha o significado restrito de incrementar o apelo patético de uma dada fala, uma figura de linguagem (clímax, hipérbole). Mas, na Pedagogia Retórica, amplificação é um tipo de exercício que consiste numa atividade de composição situada entre a imitação e a criação; uma atividade de compor, dado um texto-modelo, amplificando um aspecto do mesmo texto, acrescentando a ele uma parte

criada pelo aprendiz. Em suma, é uma criação dirigida e contextualizada. (MENDES, 2010, p. 109-110, grifos da autora).

No trabalho com gêneros textuais do tipo argumentativo, um interessante exercício de variação consiste em pedir aos estudantes de alterem o ponto de vista defendido em um texto modelo. Se o tema em debate é aborto, por exemplo, e o autor do texto modelo defende que o mesmo seja legalizado, ao aluno caberá construir uma contra-argumentação, ou seja, deverá defender o ponto de vista da proibição do aborto. Nesse tipo de atividade, muda-se o conteúdo do texto modelo, mantendo-se a sua forma.

Em uma aula particular de redação, em 9 de setembro de 2015, um aluno que já tinha concluído o Ensino Médio, mas ainda se sentia bastante inseguro com a sua capacidade de produzir um texto argumentativo, disse que pretendia seguir um modelo de boa redação e me questionou se isso era errado, ou se ele deveria criar o próprio modelo. Respondi, com base nos princípios teóricos da imitação, dizendo que um marceneiro, hoje em dia, não consegue fazer um guarda-roupa, por exemplo, com estrutura totalmente nova, diferente das que já existem no mercado. Ele, certamente, vai criar, recriar, transformar a partir de uma base que já exista na indústria mobiliária.

Essa analogia traz um outro conceito importante, a emulação (aemulatio),

um procedimento de imitação em que o imitador quer "fazer melhor", superar, ou buscar um resultado diferente. Nesse caso, o imitador é motivado por um gosto extremado pela obra que quer não só imitar, mas superar. [...] A emulação que aqui interessa, no escopo da Pedagogia Retórica, embora motivada por uma emoção, é o processo de criação que, através da imitação, busca a superação do modelo. (MENDES, 2010, p. 168, grifo da autora).

Outro aspecto central da Pedagogia Retórica são os exercícios retóricos preliminares chamados progymnásmata. Segundo Mendes, "os progymnásmata são um conjunto de exercícios básicos de dificuldade progressiva com o objetivo de preparar os estudantes de Retórica para a criação e apresentação de discursos práticos completos, os gymnásmata" (2010, p. 15). E ainda acrescenta:

Esse sistema consiste de uma série de exercícios rudimentares, estruturados de forma interdependente, de complexidade progressiva. Os exercícios iniciais consistem de paráfrases, traduções, amplificações etc., de mitos, fábulas, narrativas, histórias, anedotas e máximas; os intermediários trabalham com modelos relativos à refutação e confirmação, ao lugar- comum, ao elogio, à injúria, à comparação, à personificação e à descrição; e os finais são a composição de teses e a proposição de leis. Cada exercício segue uma série de passos que o aprendiz deve seguir para elaborar o seu

texto. Esses exercícios levam os estudantes de simples paráfrases e traduções (retextualizações) a produções mais elaboradas, discursos completos,

gymnásmata – declamações. (Ibid., p. 147).

Trata-se de um conjunto de 14 exercícios que se apoiam na imitação dos melhores modos de expressão, que serão apreendidos pelos discentes de forma controlada e graduada. São eles, segundo Mendes (op. cit., p. 148):

1. Fábula 8. Encômio

2. Narração 9. Vituperação

3. Anedota 10. Comparação

4. Provérbio 11. Personificação

5. Refutação 12. Descrição

6. Confirmação 13. Tese ou tema

7. Lugar-comum 14. Defesa de (ou ataque a) uma lei

Destaca-se, também, que, nessa abordagem, a escrita é considerada como um processo complexo e que demanda um ensino sistematizado. Por essa razão, o ensino é feito obedecendo-se aos graus de complexidade da produção textual, começando-se por atividades mais simples e baseadas na imitação de textos modelo até chegar à invenção, quando o aluno já vai adquirir a capacidade de produzir seus próprios textos com a devida autonomia.

Quando o aprendiz já se encontra em um nível de proficiência mais avançado, tem-se as ferramentas da inuentio. No prefácio da obra Invention in Rhetoric and Composition (In: LAUER, 2004), Charles Bazerman defende que a invenção "chama a atenção para perguntas mais básicas que um escritor se faz: Sobre o que eu devo escrever? Para quem? E por quê? Que materiais eu posso usar? Onde posso encontrá-los? O que vai incitar e persuadir meus leitores? Como posso, de fato, começar a pensar sobre o que eu devo escrever?"5 (BAZERMAN, 2004, p. xv, tradução da autora).

Mesmo os autores mais experientes se deparam com os desafios de terem sobre o que escrever - um assunto a tratar - e sobre como fazê-lo. Basta imaginarmos a angústia que certamente acompanha os colunistas de jornais e revistas, cuja incumbência é produzir matérias novas semanalmente, por exemplo. Para auxiliar nesse processo de criação das ideias e de produção textual, a invenção retórica "fornece orientação sobre como começar a

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Tradução para: "it addresses one of the most basic questions a writer asks: what should I write about? To whom? And why? What materials can I use? Where can I find them? What will move and persuade my readers? How can I even begin to think about what I might write?" (BAZERMAN, 2004, p. xv).

escrever, explorar ideias e argumentar, estruturar insights e examinar a situação de escrita"6 (LAUER, 2004, p. 1, tradução da autora).

Quanto aos desafios inerentes à invenção, Mendes (2010) indaga: "Mas quais são as fontes que o escritor tem quando precisa 'inventar' seu material?" e responde: "Suas melhores fontes serão sempre os frutos de sua formação, suas leituras, observação e reflexão." (p. 115).

Neste trabalho, defendo a tese de que a capacidade de produção de textos se desenvolve de forma processual, isto é, não ocorre "da noite para o dia". Por isso, é preciso haver um trabalho sistematizado de ensino da produção escrita, envolvendo tanto o conteúdo – o assunto sobre o qual se deseja escrever – quanto a forma – o modo como o texto será construído.