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3 AIR E PROPORCIONALIDADE: PROBLEMAS, CRÍTICAS E ALGUMAS

3.1 Proporcionalidade: problemas e críticas

3.1.2 Sobrerracionalidade e a exigência de conhecimentos extrajurídicos

Uma crítica menos explorada em relação à racionalidade da ponderação afirma, numa inversão de eixos, que o que poderia se notar, ao contrário de problemas de déficit, é a presença de pretensões hiper-racionalistas por trás dos métodos que buscam orientar o exame de proporcionalidade189. O perigo “não estaria na impotência da ponderação, mas na crença em

sua onipotência para lidar com problemas jurídicos concretos”190. No limite, quanto mais se

investisse na formalização adequada das condições de argumentação da ponderação, “maiores

185 HABERMAS. Faktizität und Geltung, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1998, p. 316 apud LEAL, Fernando. Racional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 58, p. 177-209, out./dez. 2014, p. 178.

186 SCHLINK. Der Grundsatz der Verhältnismäβigkeit, In: BADURA P.; DREIER, H. (Org.). Fertschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Bd. 2. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 460 e ss apud LEAL, Fernando. Racional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 58, p. 177-209, out./dez. 2014, p. 179.

187 LEISNER. “Abwägung überall” – Gefahr für den Rechtsstaat, – Gefahr für den Rechtsstaat. NJW, 1997, p. 6 apud LEAL, Fernando. Racional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 58, p. 177-209, out./dez. 2014, p. 179. 188 LEAL, Fernando. Racional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 58, p. 177-209, out./dez. 2014, p. 181. 189 É o que pretende problematizar Fernando Leal, em LEAL, Fernando. Racional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 58, p. 177-209, out./dez. 2014.

seriam os incentivos para a sua aplicação, e mais indeterminação poderia ser gerada, já que as propostas metodológicas não seriam capazes de constranger completamente o processo decisório”191.

Três argumentos suportam esta objeção da sobrerracionalidade da ponderação. Primeiro, o de que a teoria dos princípios partiria “de uma visão ingênua das predisposições e do comportamento de tomadores reais de decisão” – o paradoxo, aqui, decorreria da tentativa de orientar tomadores de decisão a não fazer o que, desde o início, reconhece-se que provavelmente vão fazer, por se acreditar que o investimento em mecanismos de racionalidade seria capaz de impedir a aplicação estratégica do método ou, ao menos, incentivar a sua manipulação adequada192.

Além disso, a teoria dos princípios seria por demais otimista “em relação aos potenciais dos métodos de decisão para trazer racionalidade, ao afirmar a existência de similaridades estruturais entre a subsunção e a ponderação”, mesmo que reconheça que elas não são idênticas193. O risco da aproximação estrutural entre estas formas de raciocínio jurídico seria

permitir que decisores ignorem os limites textuais dentro dos quais opera a subsunção, o que deixaria em suas mãos uma tarefa que deveria ser desempenhada, fundamentalmente, pelas

regras incidentes no caso concreto: a seleção das características relevantes do problema para a

atribuição da resposta jurídica apropriada194.

O terceiro argumento que suporta a crítica de sobrerracionalidade da ponderação é o de que a teoria dos princípios seria “excessivamente exigente em relação às capacidades epistêmicas dos aplicadores desses métodos”195. Isso porque a realização de princípios em

colisão relativamente às possibilidades jurídicas exigiria, nos termos demandados pela proporcionalidade e pela fórmula do peso, uma série de informações de difícil obtenção e processamento196. O problema estaria, nesta hipótese, em um suposto descompasso entre o

“possível” vislumbrado pela teoria e o “possível” efetivo197.

Se, na utilização da fórmula do peso, a dificuldade de trabalhar com as variáveis “grau de restrição entre os princípios” e “relação de peso abstrato entre os princípios” já parece evidente, o manejo adequado da “confiabilidade das premissas empíricas que sustentam a realização de um princípio e a não realização do outro” tenderia a aumentar perigosamente os

191 Id. Esta relação é chamada, por Leal, de o “paradoxo da determinação” na Teoria dos Princípios. 192 Ibid., p. 187. 193 Ibid., pp. 187/188. 194 Id. 195 Ibid., p. 187. 196 Ibid., p. 197. 197 Ibid., p. 198.

níveis de incerteza de processos decisórios reais198. A solução de uma questão jurídica passa,

com esta terceira variável, a “exigir conhecimentos extrajurídicos, cuja validade ou confiabilidade estão sujeitas aos critérios fixados pela ciência”199. Isso porque são esses

critérios fixados pela ciência que permitirão a atribuição, à confiabilidade das premissas empíricas, dos predicados “certo/seguro”, “plausível/defensável” ou “não evidentemente falso”, os parâmetros de valoração sugeridos para a utilização desta variável (em mais detalhes, a fórmula do peso e suas variáveis foram vistas em 2.3.4).

A questão complexa de fundo, aparentemente não resolvida pela teoria, segundo Leal, diz respeito à composição adequada das relações, inevitáveis, mas necessariamente problemáticas, entre direito e ciência. De fato, como indica Schuartz, “o significado de expressões como verdade, certeza, plausibilidade etc. quando empregadas para referências a premissas utilizadas em inferências jurídicas não é igual ao significado dos mesmos termos quando empregados para referências a premissas utilizadas em inferências científicas, e os critérios de correção de inferências de um desses tipos não servem como critérios de correção de inferências do outro tipo”.98 Essa constatação impõe o

desenvolvimento de mecanismos propriamente jurídicos capazes de permitir uma transição minimamente controlável entre os discursos jurídico e científico, sob pena de o direito ser inundado pelas incertezas típicas da construção e evolução do conhecimento científico. Quando isso não é feito, o que parece ser o cerne do pedido de “tomada de consciência” sugerido pelo autor, coloca-se não apenas a utilidade do direito como mecanismo de estabilização de expectativas normativas em xeque, como o tomador de decisão na desconfortável posição de um pretenso conhecedor e mediador — quase sempre como um árbitro despreparado — de disputas não apenas jurídicas, mas também científicas. O problema estrutural entre direito e ciência se une, aqui, ao problema das capacidades epistêmicas de “juristas” quando são chamados a lidar com questões enfrentadas por “cientistas.”200

A respeito desse risco, cerne do terceiro argumento apresentado que embasa a crítica de sobrerracionalidade da ponderação, pode-se fazer um acréscimo: também as etapas da adequação e da necessidade poderão exigir conhecimentos extrajurídicos, cuja validade ou confiabilidade estão sujeitas a critérios fixados pela ciência. Isso porque serão esses critérios que guiarão os juízos sobre inferências causais que precisam ser tomados em referidas etapas, seja para concluir-se (i) que o ato em exame fomenta ou não o objetivo pretendido, ou (ii) que as medidas alternativas ao ato estatal são ou não ao menos tão aptas quanto ele à promoção do objetivo buscado, bem como restringem ou não em menor intensidade o direito atingido pelo ato estatal.

198 Ibid., p. 201. 199 Id.