• Nenhum resultado encontrado

Sociabilidade e construção do significado de grupo

No documento 2009AndreaBonaUghini (páginas 99-103)

3 ESSÊNCIAS FENOMENOLÓGICAS E SEUS SIGNIFICADOS

3.2 Dança de rua e estratégia gestual

3.3.3 Sociabilidade e construção do significado de grupo

Esta essência emergiu quando, por meio das observações durante os encontros, notei muito claramente a existência de uma relação de grupo entre os sujeitos da pesquisa. É evidente que, quando trabalhamos com atividades como a dança, que favorecem o trabalho em grupo, as relações e vínculos de amizade são despertados e, de certa forma, até mesmo induzidos.

Cada época tem suas idéias obsedantes [...]. Essas são encontradas de diversos modos em todas as expressões societais como a literatura, os modos de vida, as múltiplas formas culturais, sem esquecer as ideologias, sejam elas políticas, jornalísticas ou eruditas. Uma dessas idéias obsedantes [...] está no sentido do termo vida moral. Em outras palavras, o que é que fundamenta ou permite o estar – junto?De minha parte eu formularia essa obsessão da seguinte maneira: às vezes, ela exprime-se enquanto morale strictu sensu, isto é assume a forma de uma categoria dominante, universal, rígida, e privilegiada com isso, o projeto, a produtividade e o puritanismo, numa palavra, alógica do dever ser. Às vezes, ao contrário, vai valorizar o sensível, a comunicação, a emoção coletiva, e será então mais relativa, completamente dependente dos grupos (ou tribos) que estrutura enquanto tais, será então uma ethica, um ethos que vem de baixo. (MAFFESOLI, 1996, p. 25).

É possível dizer que a tribo que se estruturou a partir da oficina de dança de rua apresentou a característica retratada na citação acima, formando-se com base no gosto, num modo de vida, numa cultura similar, possibilitando, assim, o diálogo, estabelecido de diferentes maneiras. Isso facilitou o comungar de conhecimentos e vivências entre as micro tribos que se constituíram.

Quando as pessoas se inserem em grupos, buscam se reconhecer no interior destes, procurando traços de identificação. À medida que a socialidade se configura, busca outros valores (imagem, aparência, o sensível), pois o grupo pode viver o momento, compartilhando um imaginário coletivo, motivando o surgimento da cultura na vida social prazerosa. (NOVELLO, 2007, p.102).

Considerando as palavras de Novello e relacionando-as com a realidade presenciada na oficina de dança de rua, é possível dizer que os adolescentes que participaram dos encontros se reconheceram no interior desse grupo. Desse modo, puderam construir, repensar e vivenciar valores como o respeito em grupo e as suas normas, a solidariedade e organização. Nesse sentido, Maffesoli (2006) destaca que uma lógica futurista de economia- política, o pensamento racionalista, não mais fundamenta as relações sociais; ao contrário, estas passam a ser estruturadas cada vez mais para o que é da ordem da proximidade, para as ações cotidianas nas quais o laço social torna-se emocional.

Considerando o grupo de adolescentes que participou do estudo, posso dizer que a sociabilidade que se estabeleceu entre os diferentes grupos estava fundamentada, ou permitia no estar-junto, com base na valorização de uma ação educativa que traduzia aquilo que os afirmava como sujeitos, no caso, a dança de rua. No entanto, outras relações se fortaleceram a partir do sentimento de pertencer, deixando claro que, embora estivessem ali como uma tribo, carregavam consigo histórias diferentes, marcadas por características específicas que lhes

permitiam se manter, ao mesmo tempo, como integrantes de suas microtribos e pertencerem à tribo que se estabelecia na oficina de dança de rua.

3.3.4 Microtribos de uma tribo

Durante os encontros pude perceber que os adolescentes sujeitos da pesquisa se identificavam com o contexto construído desde o primeiro encontro na oficina. Neste grupo, falavam sobre dança, sobre suas realidades de vida, sobre suas necessidades e mostravam, por meio de sua aparência, características específicas da tribo que integravam.

Quando vinham para os encontros, chegavam em grupos de três a quatro sujeitos, ou, em alguns momentos, em duplas, mas sempre mantendo um mesmo estilo de vestir, de falar e até mesmo de andar. Novello explica:

Do nascimento até a morte nossa vida é um permanente exercício de sociabilidade. Somos, por natureza psicológica, seres sociais, mais exatamente, seres grupais, pois estamos em contínua interação com o outro. Daí sermos um ser de relações, de diálogo, de participação e de comunicação. Portanto, um ser social que se traduz no cotidiano, através da vida em grupo e, por meio dessa convivência, passa a concretizar a sua existência, produzindo-se, recriando-se nas suas relações com o outro. (2007, p. 67).

Durante a realização das atividades, os adolescentes sempre permaneciam em pequenos grupos, mesmo quando os movimentos que realizavam eram individuais, parecendo querer se mostrar para o outro e necessitar de sua aprovação. Também era percebível que, mesmo realizando as atividades num determinado grupo, estavam sempre atentos ao que acontecia a sua volta, ao que os outros grupos realizavam.

Embora mantivessem o respeito, o vínculo entre si, a relação de troca parecia superficial. Eles dançavam juntos, criavam movimentos juntos, mas, passados esses momentos, voltavam a se reunir com os seus, demonstrando claramente, por meio de suas ações e de suas falas, que sabiam de onde cada grupo provinha. Esse foi um fator para que se mantivessem em suas microtribos. Os adolescentes sabiam que a região de onde provinham fornecia, de certa forma, aos outros grupos informações em relação a sua vida e ao contexto onde se desenvolvia. Em várias situações, ao invés de chamar os colegas pelo nome, quando se referiam a um deles, forneciam a sua característica física seguida do bairro onde residia.

Outras vezes, relataram em suas conversas informais fatos relativos a brigas de tribos de um bairro e outro.

Essa perspectiva do olhar do outro a partir do lugar de origem de cada um, ressaltada como um rótulo, também se mostrou em uma pesquisa realizada em diferentes bairros de um município do norte do estado do Rio Grande do Sul. No relato de um morador do bairro, ele enfatiza o fato da a cidade onde foi realizada a pesquisa dispensar um olhar negativo ao seu bairro de origem, o que cria diferentes estigmas sobre os próprios moradores. Como citado por Morretto, Fioreze e Fonseca, o morador não identificado.

Aqueles que conhecem como o nosso bairro no início foi muito difamado. Muitos ainda dizem:” Ah, o teu bairro é o único que eu não quero conhecer”. E aí eu digo assim: “Mas por quê?” “Não, porque lá assaltam, lá matam, lá roubam,” E eu acho que não é assim, eu acho que a pessoa, em vez dela criticar, ela vim visitar, procurar saber, ela vai saber que o nosso bairro se desenvolveu muito, desenvolveu pra frente, né. (2008, p. 138).

Corroborando com o dizer desse morador de bairro, um dos meninos da oficina, em conversa informal, perguntou-me se eu conhecia seu bairro, retratando esse pensamento incorporado e difundido na sociedade. Na ocasião, sem esperar a resposta da pesquisadora, outro colega se antecipou e disse: “Capaz que a professora vai conhecer, ela deve ter medo de ir lá, ser assaltada”. Os dizeres desse adolescente confirmam o estigma que sofrem por parte da sociedade. Embora nem todas as pessoas pensem dessa forma e o estigma divulgado não seja totalmente verdadeiro marca, fere e impede muitas vezes o desenvolvimento dos sujeitos como cidadãos. Isso é evidenciado quando os próprios adolescentes atribuem a outros grupos o mesmo rótulo, como característica de edificação de identidades.

Dessa maneira, pude perceber que, no contexto desenvolvido na oficina, os adolescentes participavam de uma mesma tribo, pois nesse momento o estar junto era fundamentado pelo sensível, pela comunicação, pela emoção coletiva, como afirma Mafesolli. (1996, p. 25). Assim, deixaram claro, por meio de suas ações, que nesse grupo, de certa forma, mantinham os mesmos interesses, criando uma forma de conviver, uma forma de sociabilidade do grupo, o que não se mostrou tão fortalecido pelos laços de amizade, mas sim, pelo respeito.Assim, é possível fazer uso das palavras de Maffesoli, o qual afirma que é o caso da estética, que garante a sinergia social, a convergência das ações, das vontades, permitindo um equilíbrio, mesmo que conflitual, dos mais sólidos. (1996, p. 32).

A expressão “tribo” é definida como “cada um dos agrupamentos em que estavam divididos alguns povos da Antiguidade. (FERREIRA, 2001, p. 686). Atualmente, notamos o disseminar desse conceito na corporeificação de diferentes grupos que se reúnem segundo um estilo de vida comum. Nesses grupos há uma forma de ser-estar que, de certa maneira, torna- os homogêneos em sua forma de pensar, traduzida em sua maneira de vestir, de falar, de se expressar corporalmente. Novello registra:

De um modo geral, as tribos têm características marcantes que as diferenciam umas das outras e do restante das pessoas. O critério para denominá-las geralmente é um atributo, que tanto pode ser um estilo musical (EMO) como o excessivo consumismo de informações da mídia e de outros canais que lhes forneçam conhecimento (Nerds, UPV Brothers), ou o jeito de vestir (mauricinhos, patricinhas). Até os que buscam a solidão, o sombrio (góticos) podem ser considerados uma tribo. Como a linguagem é um dos principais sinalizadores das tribos, suas expressões e termos sequer são entendidos por quem está de fora. Outros sinalizadores são os elementos visuais, que, dependendo da forma como são usados, ou se os tem, indicam a que tribo pertence como é o caso de roupas de marcas, indicando a tribo das patricinhas e mauricinhos. (2007, p. 51).

Dessa forma, o grupo de adolescentes que participou da oficina de dança de rua caracterizou-se como sendo uma tribo, pois mantinha um mesmo estilo de vida, evidenciado pela forma de vestir, de falar, de manifestar-se corporalmente, como, por exemplo, assumindo a linguagem da dança de rua como meio de expressão e edificação de personalidade.

Considerando o que foi exposto, percebemos que, quando os adolescentes assumem a dança de rua como meio de expressão e edificação da personalidade, podem sofrer com os estigmas que a sociedade e outras microtribos lançam sobre eles, já que esse estilo de dança se associa à rua e à cultura que se desenvolve nesse mundo.

No documento 2009AndreaBonaUghini (páginas 99-103)