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O campo social: fronteiras entre educação formal e não formal frente à crise do modelo escolar da Modernidade

O problema de fronteiras entre a educação formal e não formal esbarra em outra questão nem sempre lembrada, mas presente, de uma forma ou de outra, mesmo quando ocultada, nas tentativas de reinventar práticas educacionais: a questão social dos espaços educacionais em experiências conhecidas como ―educação popular‖.

Numa leitura de primeira hora, podem emergir, no leitor, algumas indagações: a educação não formal fica relegada às experiências populares de educação? Ou colocando de outro modo: pelo fato de os países que não conseguiram acumular capital social e, portanto, não alcançar ―qualidade‖ para a educação escolar, a educação popular vem suprir tal lacuna?

Não é fácil responder, quando buscamos compreender essa relação formal e não formal no âmbito da crise do paradigma moderno, portanto, por extensão, na crise de um modelo de escola que também os países ricos (ou matrizes do capitalismo) reproduziram. É claro que o Brasil jamais teve uma escola do nível da Suécia, da Dinamarca e, em todo momento, tais ―qualidades‖ de escola, pelo ensino que oferecem, são cobradas em forma de cifras nas avaliações de siglas do tipo: PISA, IDHs etc.

Pensar nesses termos implica, no mínimo, do ponto de vista estrutural do capitalismo hegemônico, pensar a escola moderna – a que temos e a que os países ricos têm – como reprodutora de seu próprio entorno e das políticas que lhe dizem respeito. Internamente isso implica, como já lembrado em páginas anteriores, recair no velho dualismo que põe a escola dos ricos, estes formados para comandar a sociedade, num patamar, e a dos pobres, noutro, onde a escola pública, ―danificada‖, torna-se a expressão mais candente30.

Uma reflexão sobre a educação popular, evidentemente, implica resistências sociais, seja do ponto de vista da constituição de um núcleo de ―saber negado‖ às classes subalternas, seja de reparação do que as políticas não oferecem nem mesmo ao mínimo do modelo, por conta, evidentemente, do esgarçamento das

30 É o que o estudioso da relação escola e trabalho, Gaudêncio Frigotto, chamou de: ―A produtividade da escola improdutiva‖ – título de uma de suas obras críticas das políticas públicas de educação. (Vide referência)

condições dessas classes sociais, carentes de outras políticas. Ora, um olhar ―em rede‖ supõe uma articulação ―interdisciplinar‖ das próprias políticas que se fazem necessárias: onde não há escola pública de qualidade, em geral não há saúde de qualidade, transporte de qualidade, moradia de qualidade, disponibilidade dos bens culturais, condições para os pais trabalharem, escola integral etc.

Cumpre ressaltar que, quando falamos em Educação Popular, não o fazemos sem mencionar, necessariamente, o Campo Popular em que ela acontece. E ela acontece, por via de regra, na resistência e na própria invenção, possível, da educação que as classes subalternas – no dizer de Florestan Fernandes, ―os de baixo‖ (citado de memória) – necessitam, nos limites conhecidos. E tais experiências, quando acontecem sob a forma de ―resistência‖, em que setores sociais organizados (ONGs, CEBs, sindicatos, associações etc.) acabam assumindo projetos alternativos de oferta de educação no interior de seus movimentos. Por mais ―ideológicas‖ que possam ser acusadas tais experiências, há de convir que tais investidas na construção de alternativas de educação não formal, ou até mesmo formal, dentro do Campo Popular criam o que não é propiciado ou recria o que não é contemplado no modelo de escola, de cuja herança ―dualista‖ aqui lembramos.

Fica registrado, portanto, que, quando falamos em educação, sobretudo a não formal, o Campo Popular de suas respectivas experiências ou práxis pedagógicas surge como um terreno fértil. E cada vez mais nesse conjunto de experiências, a despeito do próprio poder público, de suas ausências ou do teor de engessamento do modelo de educação formal, tais investidas resistentes são reconhecidas, e mesmo assumidas, pelo próprio poder público, a partir de uma ressignificação e refundamentação do que pode e deve ser transformado, no programa da própria luta popular, com seus avanços e malgrado seus impasses, em sua finalidade precípua de transformação social. Exemplo mais candente disso é a experiência pedagógica do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – tão ―demonizado‖ pela mídia, sobretudo a televisiva – com propostas pedagógicas alternativas e de profundo mergulho na real utilidade social da educação que oferecem, a partir de uma ―leitura de mundo‖ (FREIRE, 1989, p. 2005) já tão marcada pela carência.

Essa entrada em cena de frentes sociais resistentes são o indicativo de uma inusitada, nova e rica mescla de experiências, que tendem a fundir o binômio em foco e tornar ainda mais ―complexa‖, vale dizer, rica em dados, a compreensão das fronteiras entre educação formal e não formal.

A autora Conceição Paludo, em artigo intitulado ―Educação popular: dialogando com redes latino-americanas (2000 – 2003)‖, partindo de três indagações do CEAAL e da leitura de documentos e buscando a refundamentação da Educação Popular no Campo Popular como alternativa ao vanguardismo, ao doutrinarismo, em relatos de experiências como alternativa ao que há de hegemônico na oferta da educação para e não necessariamente com o Campo Popular, algo, segundo ela, ainda em processo de gestação, afirma:

E a articulação das diversas organizações do povo político, com seus aliados, como parte das ONGs, parte das Igrejas, partidos, personalidades, intelectuais comprometidos que formam o Campo Popular, que, apesar das contradições e matizes, é plural e tem como referencial a transformação das sociedades (p. 49).

E completa:

Um elemento que aparece nas leituras e que complexifica a definição do popular é decorrente da ressignificação/refundamentação do que deve ser transformado. O qual, além da esfera da economia, cuja primazia remete à divisão de classes social, abarca as relações de gênero, éticas, étnicas/raciais, geracionais, entre outras, que são transversais às classes, visto que, por exemplo, as discriminações de gênero dizem respeito às relações entre todos os homens e mulheres. (p.49).

Como se vê, no campo popular, com suas pedagogias resistentes, a Educação popular, formal ou não formal, contribui de forma decisiva não só para a compreensão desse binômio que aqui perseguimos, como, principalmente a partir dessa ressignificação da experiência de educação escolar, aponta para um futuro ultrapassamento de seu antigo modelo, quiçá pela quebra da dualidade que não desejamos. Futuro que, de certa forma, já é presente nessa fruição dialética em que saltos qualitativos do confronto tese-antítese esperam por uma solução, uma

síntese. Contudo, como se vê, nos movimentos resistentes às mudanças, ainda estamos longe de um consenso sobre noções que, como lembramos, o tempo se encarrega de amadurecer31.

Retomando os estudos de Maria da Glória, de uma Sociologia da Educação e a autora citada acima, não há como pensar a educação não formal fora do que aqui designamos de Campo Popular da Educação, não só quando as políticas públicas, por várias razões, não dão conta de assegurar direitos à educação – muitas vezes partindo para programas puramente compensatórios –, mesmo quando apontam para um desejado sentido de complementaridade entre a educação formal e a não formal.

A educação não-formal designa um processo com várias dimensões, tais como: a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que possibilitem aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo do ponto de vista de compreensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e pela mídia, em especial a eletrônica etc. (GOHN, op. cit. p. 28)

31

A autora, ao referir-se a relatos de experiência nos países latino-americanos no Campo Popular, mesmo sofrendo ainda resistências – diferentemente do uso que aqui fazemos dessa palavra, fala em resistência no sentido de oposições aos projetos –, aponta alguns eixos. A saber: (a) ressignificação/refundamentação da Educação Popular, do horizonte utópico e de um projeto que se coloque, nesse momento histórico, como alternativa ao hegemônico (...); (b) na revalorização da educação do povo, em que a Educação popular parece estar sendo retomada com grande intensidade; (c) na refundação do papel do Estado, e sua democratização, com ênfase na participação popular, na democratização das políticas e dos espaços públicos e na ampliação concomitante a outras políticas: saúde, educação, teto, trabalho e terra, entre outras; (d) na construção cotidiana de alternativas de desenvolvimento sustentável, comunitário, local e regional em ―outro projeto‖ de desenvolvimento, de enraizamento e da produção de novas alternativas tecnológicas, são nova concepção de ciência e conhecimento. (vide referência a 7 pontos, na referência à experiência ―Desenvolvimento rural: um enfoque geracional‖, apresentada por Rigoberto Concepción e Milton Martínez, na Revista Internacional Fé y Alegria, 2002, citado sem indicação de página à nota 10 do texto); finalmente, embora, segundo a autora, não relatada em experiências, mas expressa em alguns textos, a atenção voltada a uma mobilização mundial como alternativa de um outro projeto global para a humanidade, cuja expressão mais patente é a realização dos Fóruns Sociais Mundiais. (citação aqui feita com algumas modificações ao texto de Conceição Paludo para efeito de nota de rodapé).

Visando explicitar com maior profundidade a natureza e sentido da educação não formal, Maria da Glória propõe uma série de questões inerentes à natureza diferenciada dessa modalidade, de modo a dar conta de entender sua própria profundidade. Assim, questões, tais como a identidade do educador e do educando, o lócus propriamente territorial dessa modalidade, os métodos em jogo, as situações, contextos, objetivos e finalidades, atributos próprios e resultados esperados e alcançados, são questões inerentes à compreensão por dentro da educação não formal (op. cit. p. 28-30), o que dá o indicativo de uma frente nova em busca de consolidação de seus próprios caminhos