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PARTE I: Enquadramento teórico

2. Abordagem da Família

2.2 Complexidades do grupo familiar

2.2.2 Socialização e Habitus

Independentemente da sua forma, a família é a base das experiências sociais e culturais do sujeito. Ela é o primeiro e principal agente de socialização e é através dela que o sujeito adquire competências e mecanismos para ingressar no mundo social. A interação entre o ambiente familiar, escolar, e o mundo, vai socializar o sujeito e defini-lo enquanto indivíduo.

Para Bourdieu, o indivíduo é um ator socialmente constituído e que carrega consigo uma bagagem social e cultural que se diferencia de pessoa para pessoa. Ao indivíduo, Bourdieu dá o nome de “agente”. Um dos objetivos deste estudo prende-se em compreender o comportamento das famílias dependentes do RSI com crianças em risco e a sua repercussão na vida dos seus filhos. Perceber as dinâmicas e hábitos sociais destas famílias e compreender

33 de que forma isto poderá condicionar a vivência dos seus descendentes. Mostra-se por isso relevante, neste trabalho, analisar o conceito de “habitus” explorado por Bourdieu.

O conceito de habitus é uma noção filosófica antiga, da escolástica medieval, que foi recuperada e trabalhada por Pierre Bourdieu depois dos anos 60. “Em Bourdieu (1984, 2002),

o conceito de habitus é definido como conjunto de disposições com dimensão ética, de princípios práticos (ethos) que somos capazes de acionar, mesmo que não sejamos capazes de questionar e interrogar os valores que os sustentam. As pessoas podem mostrar-se incapazes de responder aos problemas éticos, e na prática serem capazes de responder às situações que lhes correspondem. Permite, pois, dar conta do paradoxo contido no facto de as condutas serem dirigidas para fins, sem que os indivíduos que as sustentam tenham consciência desses fins.” (Marques, 2014:27). Ou seja, poderá dizer-se que o habitus é o

modo como a sociedade se “deposita” nas pessoas, sob a forma de disposições duráveis, capacidades treinadas e tendências estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados. Podemos dizer que o habitus constitui a nossa maneira de perceber, fazer, julgar e valorizar o mundo, condicionando a nossa forma de pensar e agir, quer corporal quer materialmente.

É o habitus que nos permite compreender como é que a necessidade, ou o constrangimento das condições e dos condicionamentos sociais, se transferem para o interior do indivíduo. É um conjunto unificador e separador de pessoas, bens, escolhas, consumos, práticas, etc. O que se veste, o que se come, o que se bebe, e que música se ouve, constituem práticas distintas e diferenciadoras: são princípios classificatórios, de gostos e estilos diferentes. Ou seja, o habitus de cada indivíduo irá fomentar um esquema classificatório do que é bom e do que é mau, do que se gosta e do que não se gosta. Um exemplo disso é o gosto musical, que não se trata apenas de uma subjetividade direta, mas também, de uma objetividade interiorizada condicionado também pela estrutura social.

Segundo Loïc Wacquant (2007), o habitus transcende a oposição entre objetivismo e subjetivismo, na medida em que se trata de uma noção mediadora entre a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade, ou seja, a sociedade torna-se depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir, que então as guiam em suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações de seu meio social existente (Wacquant, 2007).

O habitus é adquirido socialmente, através das práticas do dia-a-dia, desde que nascemos e acompanha-nos até morrermos. É por isso variável através do tempo, do lugar e da distribuição do poder. É transferível entre vários domínios, como é o caso dos domínios do

34 consumo (música, desporto, alimentação, etc.), mas também nos domínios políticos e patrimoniais. O habitus é durável mas não estático ou eterno, pois as disposições sociais podem ser modificadas ou rompidas por novas forças externas. Os esquemas implantados na infância têm um peso maior aos esquemas subsequentes, que vão sendo filtrados tendo por base o esquema adquirido durante a infância. A transformação do hábito social dos indivíduos é sempre um processo extremamente lento, pois as estruturas da personalidade social são duradoras e resistentes à mudança. Resistem às inovações múltiplas requeridas pela passagem para um novo nível de integração (Wacquant, 2007).

Bourdieu defendia que a família tinha um importante papel na constituição e formação do indivíduo, visto que é através do habitus familiar que se adquire as primeiras e principais competências sociais e culturais. É necessário existir um contato prolongado e efetivamente significativo entre os membros da família e o sujeito, garantindo desta forma condições favoráveis à vida escolar e à sua passagem para a vida adulta. A relação primária na família, e posteriormente na escola, são espaços da formação do sujeito, onde este adquire a sua bagagem social, cultural e linguística. O habitus familiar estrutura todas as experiências futuras, regulando e controlando os impulsos e as emoções.

Através desta análise compreende-se que o meio familiar e escolar irá condicionar todo o percurso do indivíduo. Embora o habitus seja adquirido ao longo de toda a vida, é na altura da infância que vai implantar as bases socioculturais do indivíduo, sendo posteriormente mais complexo criar novos habitus. Este processo explicita em parte a questão da reprodução social, em que os indivíduos reproduzem situações semelhantes às dos seus progenitores, desenvolvendo uma história de vida similar a dos seus pais. Mas o conceito do habitus também se mostra relevante para explicitar o reverso da reprodução social, ou seja, em que os indivíduos alteram o curso da reprodução da situação herdada. Note-se que, ao revelar o sistema das condições sociais que tornaram possível uma maneira particular de ser ou de fazer, enunciando os determinismos sociais das práticas, é-nos permitido esclarecer as possibilidades de ação libertadora em relação a esses determinismos. Para isso, mostra-se relevante também compreender o processo de vulnerabilidade.