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2 Desenvolvimento Sustentável

2.1 O consumo inserido nos discursos sobre Desenvolvimento Sustentável

2.2.1 A Sociedade de Consumo

As primeiras explicações com viés mais economicista sobre a origem da propensão ao consumo concentraram-se nas mudanças decorrentes da Revolução Industrial com a implantação de novas técnicas de produção e a busca pela inovação. Nesse sentido, muitos autores consideraram o consumo como um reflexo das relações de produção. Mas, em uma retrospectiva histórica constata-se que a cultura de consumo fez parte da própria construção do mundo moderno.

Campbell4 (2001) esclarece que a abordagem que considera a cultura de consumo como consequência da modernização industrial superenfatiza as mudanças nas técnicas de produção e deixa de lado as mudanças na natureza da procura. Alerta-se que a compreensão da Revolução Industrial como processo de transformação dramática das formas de abastecimento pressupõe que houve um concomitante aumento e desenvolvimento da demanda, o que requer uma compreensão análoga sobre as forças que provocaram essas mudanças. Considera-se, portanto, que o aumento na propensão ao consumo, chamado de Revolução do Consumo, deve ser considerado como elemento decisivo para a Revolução Industrial, o que possibilita compreender o surgimento da base econômica das sociedades modernas.

A resposta à questão sobre em que época e onde ocorreram as mudanças significativas de propensão ao consumo remonta à Inglaterra do século XVIII. A Revolução do Consumo emergiu na classe média ou comercial da sociedade inglesa, juntamente com os artesãos e pequenos produtores rurais, os quais possuíam fortes tradições puritanas e religiosas, mas se engajaram em uma “nova procura5” por produtos considerados, à época, de luxo, tais como:

brinquedos, sedas, roupas da moda, botões e alfinetes. Isto se constituiu uma contradição (CAMPBELL, 2001), sob a seguinte perspectiva:

Como explicar que justamente os puritanos tenham sido os primeiros a considerar moralmente correto adquirir bens de luxo, modificando sua propensão a poupar pela propensão a consumir, motivados por um desejo de

4 Campbell embasa suas análises sobre a origem da propensão ao consumo principalmente nas obras de Harold

Perkin (The origins of modern English society. London: Routledge, 1969) e de Neil McKendrick (The birth of a consumer society: the commercialisation of eighteeth-century England. London: Europa Publications, 1982).

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prazer hedonista estranho entre os herdeiros da perspectiva protestante? (PORTILHO, 2005, p. 83)

Campbell (2001) contesta as teses tradicionais apresentadas para explicar a Revolução do Consumo. A primeira tese contestada é que o aumento no tamanho do mercado provocado pelo crescimento da população causou o aumento da procura, uma vez que a consequência desse fenômeno foi, ao contrário, a probabilidade de que os aumentos da população geravam uma maior pobreza, sem provocar nenhum aumento da procura. Voltou-se, então, a atenção para o aumento do poder aquisitivo resultante de uma elevação no padrão de vida, tese que também apresentava dificuldades, pois havia indícios claros de que os consumidores tradicionais estavam mais inclinados ou a poupar, ou a converter sua riqueza extra em lazer, do que a investí-la para satisfazer novas necessidades. O autor também contesta a tese que relaciona o aumento da propensão ao consumo ao crescimento na oferta de novos produtos, que foi também rejeitada pelos historiadores econômicos ao reconhecer que sua disciplina foi marcada por uma tendência a dar maior ênfase aos fatores do abastecimento na explicação da origem das formas de consumo nas sociedades modernas.

O autor demonstra a dificuldade teórica de se explicar a Revolução do Consumo na Inglaterra do século XVIII com base nos argumentos apresentados naquelas teses. Isto indica as fragilidades daquelas teses no nível de teoria, considerando que elas não se constituíam em modelos convincentes de relação causa e efeito. A mudança de valores e atitudes desempenhou papel central na emergência da propensão ao consumo, porém não foi explorada pelos teóricos de forma apropriada para justificar as alterações resultantes na conduta dos consumidores. Campbell (2001) defende que a explicação para esse fenômeno deve ser encontrada nas mudanças culturais que ocorreram na época.

Uma das primeiras explicações que consideram a mudanças culturais na origem da Sociedade de Consumo se baseia na teoria de emulação social, de Thorstein Veblen6, que trata do consumo conspícuo das classes ociosas. Entretanto, Campbell (2001) ressalta que esta abordagem não era nova e nem exclusiva daquele período e, portanto, não poderia ser considerada como a explicação para o aumento da demanda por bens no século XVIII. Considera também que esta teoria não consegue explicar a mudança de valores que ocorreram nas classes médias burguesas que tradicionalmente eram inclinadas ao puritanismo e à antipatia pela aristocracia e, por outro lado, tornaram-se os principais agentes do capitalismo

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A teoria da emulação social apresentada por Thorstein Veblen defende que o aumento da procura é decorrente da competição distintiva entre as diferentes classes sociais. Os ricos conduzem a nova era do consumo, enquanto as classes sociais intermediárias procuram imitar os ricos nas extravagâncias.

moderno, enfrentando e subjugando a classe dominante existente, removendo sua visão de mundo feudal através de uma ideologia moderna e “racional”.

Outra explicação aponta para o desenvolvimento de uma nova “capacidade comercial” e de “técnicas” na esfera mercadológica, da distribuição e da ascensão da propaganda como inovações cruciais que tornaram os motivos de emulação eficazes em estimular o aumento da procura do consumidor. Esta explicação coloca ênfase no controle do mercado através de uma manipulação consciente. Campbell (2001) questiona que anteriormente já existiram esforços por parte dos fabricantes em persuadir os consumidores a comprar os seus produtos, então, por que apenas nas últimas duas décadas do século XVIII é que eles foram mais bem sucedidos no alcance desse objetivo? O elemento-chave da explicação é o surgimento da moda moderna, uma nova abordagem comercial deliberada com o objetivo de controlar o mercado, manter o interesse do consumidor e criar nova procura. Assim, a moda é um fenômeno inseparável do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno ocidental (LIPOVETSKY, 2009).

A moda é um mecanismo social que expressa uma temporalidade de curta duração, pela valorização do novo e do individual, que são características marcantes do consumo nas sociedades modernas (BARBOSA, 2010). Assim, considerava-se que os motivos da emulação social daquela época estavam associados à manipulação da procura por meio do controle da moda como forma de afetar os desejos ambiciosos ou emulativos invejosos dos consumidores. Campbell (2001) critica também esta explicação porque permanece a necessidade de alguma descrição dos motivos que tornaram a moda como fator crucial na mudança da propensão ao consumo apenas em meados do século XVIII.

O autor conclui que as explicações tradicionais fornecem uma especificação dos fatores considerados relevantes para a mudança ocorrida, como aquisição emulativa, moda e tentativas deliberadas de manipular o mercado, mas não fornecem elementos que permitam compreender a relação entre estes ou qualquer afirmação sobre a forma pela qual se possa considerar que a interação desses fatores ocasionou a emergência do aumento na procura. Ademais, permanece a dificuldade em explicar o porquê da classe puritana modificar seus valores morais voltados para a poupança e passar a considerar correto a aquisição de bens luxuosos e a busca pelo lazer.

Desse modo, um exame mais atento da Revolução do Consumo na Inglaterra no século XVIII revela que havia uma revolução cultural mais ampla envolvida nesse processo (CAMPBELL, 2001). O cerne dessa revolução cultural envolve um conjunto de mudanças nos valores, crenças e atitudes da classe média da época que se afastaram das formas de

conduta tradicionais e aprovadas – ascéticas, e adotaram atitudes hedonistas como a procura por bens de luxo e o envolvimento com aprazíveis atividades de lazer como a dança, o esporte e a leitura de romances.

A inserção desses valores e atitudes como inovações socioculturais foram promovidas principalmente pelo Romantismo, um movimento intelectual que produziu o desenvolvimento da ideia de lazer e recreação como necessidade humana, do gosto pelo romance moderno e o surgimento de um público leitor, bem como a ascensão do amor romântico e da moda em sua forma moderna (CAMPBELL, 2001; LIPOVESTSKY, 2009). Esses valores sofreram restrições morais daqueles que aderiram aos valores tradicionais e exigiram sua justificação.

Entretanto, tais valores impulsionaram e justificaram moralmente os benefícios do consumo de luxo, contribuindo para a legitimação de uma nova cultura de consumo que passa a enxergá-lo de uma prática moralmente inaceitável para uma prática virtuosa. A única explicação aceitável é que a revolução do consumo foi conduzida através de uma ética do consumidor especificamente burguesa que serviu para justificar a mudança de valores e atitudes para esse setor da sociedade inglesa (CAMPBELL, 2001). As teorias de comportamento do consumidor comuns nas ciências sociais, a institivista e manipulacionista, bem como a perspectivas veblenescas não são capazes de oferecer explicações satisfatórias para a dinâmica do consumismo moderno, marcado pelo surgimento incessante de novas necessidades (BAUDRILLARD, 1995; CAMPBELL, 2001).

Deve-se voltar para um modelo hedonista da ação humana, no qual o prazer e não a satisfação é o objetivo da conduta humana. Para esclarecer esse posicionamento é necessário fazer uma distinção entre o hedonismo tradicional e o hedonismo moderno. O primeiro está relacionado com a preocupação com uma experiência sensorial, com os “prazeres” assumidos como acontecimentos discretos e padronizados, em busca dos quais o hedonista tende naturalmente para a procura de poderes despóticos. Por outro lado, o hedonismo moderno é marcado por uma preocupação com “o prazer”, idealizado como uma qualidade potencial de toda experiência. É uma forma ilusória de hedonismo, autônoma e moderna, promovida pela dimensão emotiva da consciência que cria e manipula ilusões para construir seu próprio ambiente aprazível (CAMPBELL, op. cit.).

O hedonismo moderno é capaz de promover o entendimento dos aspectos distintivos do consumismo moderno, explicando como o interesse do indivíduo está focado principalmente nos significados e imagens atribuíveis a um produto – na experiência do consumo e não na utilidade em si – o que exige a presença da novidade. Isto explica a dinâmica da criação e abandono das “necessidades” por parte dos consumidores, que se

tornou um ciclo constante de renovação, bem como chama a atenção para o caráter do consumo como um processo autodirigido e criativo, em que ideais culturais estarão fundamentalmente implicados (CAMPBELL, 2001; BAUDRILLARD, 1995). Aos desenvolvimentos culturais é atribuída a capacidade de criar e justificar o hedonismo moderno que foi essencial para o aparecimento e consolidação da economia moderna, com a propensão ao consumo associada a outras significativas inovações socioculturais da época (CAMPBELL, 2001). Portanto, o consumo é definido como um processo de reprodução cultural.

Neste sentido, devido à complexidade da cultura de consumo que caracteriza o surgimento da modernidade e classifica a sociedade atual como “sociedade de consumo”, Slater (2002) apresenta uma lista com algumas características por meio das quais a cultura de consumo tem sido identificada, as quais são descritas no quadro a seguir.

Quadro 2: Características da cultura de consumo

Características Descrição

A cultura do consumo é cultura de consumo

No mundo moderno, a sociedade é descrita em termos do seu consumo, ou seja, as práticas sociais e os valores culturais, ideias, aspirações e identidades são definidos e orientados em relação ao consumo.

A cultura de consumo é a cultura de uma sociedade de mercado

O consumo moderno é mediado pelas relações de mercado, onde as pessoas consomem mercadorias, serviços e experiências que são produzidos exclusivamente por instituições para serem vendidos no mercado a consumidores, sem o evidente interesse em necessidades ou valores culturais, mas em lucros e valores econômicos.

A cultura de consumo é, em princípio, universal e impessoal

As relações de mercado são anônimas e, em princípio, universais, ou seja, os consumidores, em geral, possuem perfis produzidos por uma pesquisa de mercado, um mercado de massa ou um segmento de mercado.

A cultura do consumo identifica liberdade com a escolha privada e a vida privada

Na cultura de consumo a escolha do consumidor é vista sob o ponto de vista de um ato privado de liberdade, fora da intervenção pública e que busca aumentar os confortos e os prazeres privados.

As necessidades do consumidor são, em princípio, ilimitadas e insaciáveis

Na cultura de consumo, as necessidades são consideradas insaciáveis, o que é visto não apenas como normal, mas também como essencial para a ordem e o progresso socioeconômico.

A cultura de consumo é um meio privilegiado para negociar a identidade e o status numa sociedade pós-tradicional

A cultura do consumo trata da negociação de status e identidade para além da tradição das classes sociais, e os bens de consumo são fundamentais para essa nova forma de construção da aparência social.

A cultura de consumo representa a importância crescente da cultura no moderno exercício de poder

Há um debate sociológico que trata da controvérsia constitutiva para determinar se o consumo é uma esfera de manipulação ou de liberdade, se o consumidor é súdito ou soberano, etc.

Após esta breve discussão sobre a origem histórica da cultura de consumo e, por consequência, da sociedade de consumo, a seguir, abordam-se algumas perspectivas teóricas que buscam explicitar os processos que regem o consumo inserido neste contexto.