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STÓRIA DA CIVILIZAÇÃO IBÉRICA 1 0 1 para os proletários, e da qual isentava a conversão ao islão.

As mulheres, os estropiados, os mendigos, os escravos, não pagavam.

Nestas condições, os Árabes, cépticos e interessados em conservar os rendimentos do tesouro, eram naturalmente tolerantes. Com efeito, não houve revoltas na nação subme­ tida porque a invasão, sendo até certo ponto um bem para as classes miseráveis, amparou o desenvolvimento da classe mé­ dia; e ao mesmo tempo que o islamismo se mostrava mais benigno para com os seus escravos do que o fora o catoli­ cismo toledano, dava aos escravos dos cristãos o direito de se libertarem desde que, fugindo, se fizessem muçulmanos.

Além disto os Árabes consentiam aos vencidos o regerem­ -se pelos seus usos e leis, por meio de condes e juízes nacio­ nais, consentindo-lhes também o exercício da religião cristã, livremente praticada e publicamente professada; e por este sistema preparavam a formação de uma população híbrida que, sob o nome de moçárabes, é um dos principais fenóme­ nos desta nova época da história peninsular, e do qual nos ocuparemos oportunamente.

Capazes, como o tinham provado, de submeter e dominar a Espanha com esse misto de violência e de astúcia que caracteriza os Orientais, os novos invasores sofriam grave­ mente das desordens intestinas, logo aos dez anos apenas de­ corridos depois do seu feliz desembarque. Os vális ou gover­ nadores das províncias que eram como antigos duques, e os alcaides, espécie de velhos condes, contribuíam para a desor­ dem prevaricando e resistindo à autoridade central. Por ou­ tro lado, os xeques mouriscos, chefes das tribos berberes que tinham vindo à Espanha numa correria um pouco mais longa, continuavam nela a sua existência nómada e tur­ bulenta, mantendo um estado de insurreição permanente contra os generais árabes e de constantes lutas entre si. Eram grandes as rivalidades e os ódios entre berberes e árabes. Os primeiros consideravam-se com razão os verdadeiros con­ quistadores da Espanha: Musa e os Árabes tinham vindo quando tudo estava feito, e apesar disso tinham tomado a melhor parte do despojo, o governo, e as terras mais férteis. Dividindo entre si a bela Andaluzia, tinham desterrado os

Berberes, os companheiros de Taric, para as charnecas da Mancha e da Estremadura, para as montanhas agrestes de Leão, das Astúrias, da Galiza, cometendo-lhes o duro encargo da defesa da fronteira contra os cristãos. Tais foram as causas das insurreições sucessivas que os Árabes só pu­ deram sufocar com o auxílio de sírios que por seu turno deram a lei aos iemenitas.

Neste momento, isto é, na segunda metade do VIII século, duas circunstâncias impedem porém a dissolução rápida do domínio muçulmano. A dinastia Omíada fora expulsa do califado pelos Abácidas (730); e o primeiro Abderramen, protestando contra a usurpação, conseguiu criar na Espanha um califado independente, unificando o poder muçulmano e submetendo, ainda que momentaneamente, as diversas raças que sob o estandarte do Profeta nela tinham vindo acampar: árabes do I émene, modaritas, egípcios, sírios, berberes. A unificação do poder que os Omíadas conseguiam na Es­ panha assentava sobre a ortodoxia, mais viva no Ocidente do que no Oriente. Quase um século de governo (661-750) tinha consagrado em Damasco a dinastia Omíada, cuja primitiva impiedade se corrigira. Omar II ( 7 1 7-720) já não chorava a perda dps rendimentos do Egipto, respondendo aos que a lamentavam que era um apóstolo e não um cobrador de im­ postos. Para os verdadeiros crentes, a usurpação abácida, le­ vada a cabo por uma dessas tragédias de sangue frequentes no Oriente, era uma impiedade. Eram os Persas vencendo os Árabes; eram os hereges do Corâsân governando à sombra de uma dinastia sacrílega; era a vitória dos xiitas, dos zoroásti­ cos, e até de ateus. Os Omíadas que ficaram da matança refugiaram-se na Espanha, onde a pureza da fé se manteve; e os ortodoxos perseguidos no Oriente vinham acolher-se ao Ocidente, ou ficavam esperando que da Espanha partisse a reacção para pôr termo à desolação da impiedade. Assim Córdova se tornou uma segunda Damasco; e se o novo cali­ fado não foi restaurar a primeira, pôde ao menos manter a independência, unificando no seio da ortodoxia as raças con­ gregadas na Península sob a bandeira islamita.

Ao mesmo tempo que a dinastia dos Omíadas da Espanha iniciava o governo desses célebres califas de Córdova, um outro facto obrigava os muçulmanos a congregar as suas for­ ças contra novos perigos: eram os ataques dos foragidos das

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Astúrias, que, depois de obscuramente terem combatido sob as ordens de Pelaio ( 7 1 8-737 ou 731-750), esse Rómulo da Espanha moderna, tinham chegado a ganhar força bastante para iniciarem a empresa de uma reconquista sistemática e de uma restauração da antiga monarquia c�istã. Eram tam­ bém os ataques, então mais perigosos embora menos impor­ tantes para a história ulterior, dos Franco-Aquitanos que, transpondo os Pirenéus, vinham retribuir com a guerra a guerra que os Árabes tinham sem êxitó levado para além das montanhas.

Apesar da necessidade de recíproco auxílio, o duelo entre a raça berbere e a árabe prosseguia sem interrupção: tão grande era o ódio entre ambas, que chegava a fazer esquecer o que professavam contra os cristãos. Toledo, Saragoça e um sem-número de cidades da Espanha Central mantinham-se fiéis ao domínio berbere, negando obediência aos emires de Córdova; e é só no primeiro quartel do x século, quando a dinastia Omíada atinge o ápice da glória e do poder, levan­ tando-se como califado independente (929) , que as suas ar­ mas conseguem reduzir à obediência os indómitos africanos. Essa unidade da Espanha muçulmana, momento culminante do império, não vai contudo além do fim do século.

EI-Mansur (977- 1 002) , o lendário e implacável inimigo dos cristãos, levanta sobre os seus exércitos africanos o poder de que dispõe, de um modo absoluto, à sombra de um califa imbecil.

A dinastia Omíada de Córdova extinguia-se na pessoa in­ significante de Hichâm II (91 6- 1 0 1 6) ; e o efémero império de EI�Mansur é, em si próprio e nos elementos em que se apoia, a prova da consumada ruína da unidade da Espanha árabe. Do Oriente tinham os Omíadas trazido para a Espanha a ortodoxia, sim, mas também uma tolerância e um cultismo que o islamita africano não podia aprovar. O seu fanatismo protestava contra a morigeração e contra a filosofia; e os Ára­ bes achavam-se mal colocados entre as duas formas agressi­ vas do fanatismo: islamita nos Berberes, cristãos nos Espa­ nhóis. Não seriam dois aspectos simultâneos de um génio comum, a traduzir uma provável comunidade de origem?

Explorando em proveito do seu poder o fanatismo do clero muçulmano e das plebes de africanos indígenas renegados, EI-Mansur confiava aos teólogos a redacção de um índice

expurgatório, e mandava queimar os livros de ciência e filo­ sofia da biblioteca formada pelo califa precedente, o sábio Hâcan II (96 1 -976) . EI-Mansur, o Fiel, copiava por suas mãos o Corão, e, como um profeta, comandava os seus exér­ citos de africanos, abençoado pelos teólogos, aclamado pelos soldados. Era uma guerra santa. Desaparecera o antigo cep­ ticismo e a antiga tolerância. Sucedia na Espanha o que se vira por toda a parte, isto é, um domínio doce e humano, a princípio, degenerar numa tirania insuportável. Desde o

IX século que o islamismo, sentindo-se consolidado, seguia

à risca o preceito do califa Omar: «Cumpre-nos devorar os cristão, e aos nossos descendentes os descendentes deles en­ quanto houver cristianismo.» Desde o princípio também, se essa religião era livre, não o era porém a sua Igreja. Os direi­ tos regalianos da coroa visigoda, a convocação dos concílios, a apresentação dos bispos, etc., tinham passado para os sul­ tões árabes que abusavam deles vendendo os bispados a li­ bertinos e dando assento nos concílios a hereges e a judeus. O cepticismo árabe do primitivo governo pusera nas mãos do Estado armas que se tornavam instrumentos de perseguição sectária quando o espírito religioso acordava, intolerante­ mente inspirado pelo zelo dos Africanos.

A história do interminável duelo das duas raças islamitas recomeça agora ensopada no sangue dos soldados africanos trucidados às portas de Córdova, na hora da reacção vitorio­ sa do partido árabe contra os soldados de EI-Mansur ( 1 0 1 3) . Deste momento e m diante a queda precipita-se. Córdova presencia as orgias de sangue e devassidão, comuns aos im­ périos desses povos do Oriente, incapazes de achar para a autoridade política outra base além da forçai. O supremo poder passa de mão em mão à mercê das revoluções e guer­ ras civis, das intrigas e dos assassinatos; e à maneira que assim flutua, vai perdendo gradualmente esse único alicerce em que se fundava a força.

Então, a desmembração da Espanha muçulmana, que nos primeiros anos da conquista os ódios das diferentes raças in­ vasoras estiveram a ponto de consumar, mas que a fundação da dinastia Omíada impediu temporariamente, torna-se um facto natural e inevitável. O vá li na sua província, o alcaide

HISTÓRIA DA C IVILIZAÇÃO IBÉRICA 1 05 na sua cidade, o xeque à frente da sua tribo, declaram-se todos independentes, e entre todos começam a declarar-se as guerras. A Espanha apresenta o aspecto de um feixe de na­ ções, que são exércitos em campanha; as fronteiras flutuam permanentemente à maneira que a sorte das armas favorece os chefes militares. No princípio do XI século contam-se cinco emirados principais. O de Málaga, com Algeciras, e Ceuta e Tânger do outro lado do Estreito, era propriedade da família de Aly, o adrisita, à qual as revoluções tinham dado também o trono dos Omíadas de Córdova, afinal ocupado por um filho de raça berbere. Aliados ou vassalos do emir de Málaga ha­ via os vális de Granada, de Carmona-e de Ecija. Sevilha era a sede do segundo dos cinco emirados principais; e Valência a do terceiro que, sob o império dos EI-Ameris estendia uma espécie de suserania até as Baleares de um lado, até Almeria do outro, finalmente até Saragoça e Barcelona. Badajoz e a Lusitânia sob os Beni-Alafftas, formavam o quarto emirado; Toledo, o quinto; e o Algarb mantinha uma independência mais ou menos precária.

Nesta divisão da Espanha falta o Norte e o Oriente: é que aí os Navarros e Aragoneses de um lado, os Asturo-Leoneses do outro, independentes, aguerridos e audazes, tinham já re­ conquistado a terra da pátria. A seu tempo falaremos dessa história; e por agora limitar-nos-emos a dizer que, a não ser principalmente a religião, são curtas as diferenças que distin­ guem o estado social das duas Espanhas. É verdade que na cristã lavra inconscientemente o sentimento de uma futura reconstituição; é verdade que o destino histórico lhe promete uma vitória decisiva e aos seus inimigos uma derrota final. Mas não é menos verdade que, ao fraccionamento, às lutas civis, à anarquia geral da sociedade muçulmana, correspon­ dem iguais caracteres na sociedade neogoda; embora esses caracteres traduzam, num a desorganização da velhice, e na outr.a as violências da mocidade. Nem é menos verdade que, se entre os muçulmanos os ódios partidários se antepunham ao sentimento nacional, esse sentimento era tão pouco defi­ nido entre os cristãos, que a história nos conta as alianças de muçulmanos e cristãos e nos fala de batalhas em que uns e outros reunidos combatiam de ambos os lados. O famoso Cid é o tipo, não da cavalaria poética, fiel a Deus e à Dona, mas sim desses aventureiros audazes, sem lei, sem fé, que aluga-

vam o braço valente a quem lhe pagava melhor. Passou me­ tade da vida ao serviço dos Sarracenos como soldado de for­ tuna; e como passou a outra metade a combatê-los, Abn­ -Bassam, o cronista árabe, chama-lhe «o cão da Galiza», e um salteador sem honra, faltando aos juramentos, mentindo às capitulações. Os Beni-Houd, de Valência, que o tinham tirado da obscuridade, pagavam-lhe para os defender contra os cristãos; e, tão falso como cruel, o cavaleiro voltou-se con­ tra eles, conquistandü-lhes a cidade ( 1 1 04) : queimava os pri­ sioneiros a fügo brando., lançava-üs aos cães de fila para üs despedaçarem, türturandü-üs, matando-os, para confes­ sarem o. segredo dos tesouros escondidos.

A natureza das cüisas fazia, porém, com que esta indi­ ferença, importante para nos revelar o estado do. espírito düs cümbatentes, o. não. fosse para influir prejudicialmente no. re­ sultado. final da cüntenda. Embora unidüs aos muçulmanos, embora intervindo. na suas dissensões intestinas, a conse­ quência de tüda a desürdem era a prügressiva retirada düs Sarracenos e o. cünstante avançar das fronteiras düs reinos cristãüs.

Se entre os diferentes chefes üu reis cristãüs havia mais üu menos conscientemente definida a ideia de uma sülidarie­ dade religiüsa comum, üutro tanto. se não. pode negar que acürdasse no espírito. düs Sarracenüs, quando. se paravam a cünsiderar a crescente ruína do. seu império. e o recuar cüns­ tante da linha das suas fronteiras.

O espírito religioso. das plebes excitadas pelo clero conde­ nava unanimemente a anarquia política e a impiedade que flürescia nos centros aristocráticos düs diversos Estados mu­ çulmanos. As seitas e as heresias, as escülas e üs sistemas fürmigavam à müda üriental nas pequenas cortes herdeiras düs dümínios do. califado. de Córdüva que a reacção. de El­ -Mansur conseguira apenas galvanizar. Os crentes previam e pediam ao. céu um castigo.; e üs príncipes, batidos pelos cris­ tãüs, imploravam um socürrü estrangeiro.

Para as fronteiras da Negrícia, no. Sara, vivia uma tribo berbere cujo. rei, Yahyâ, tinha visões. Um santo., Abdallâh, chegado. de fora, converteu-o à espécie de islamismo. que se­ guia; e juntüs cünstruíram uma râbita, convento e fortaleza, tebaida para ünde se recülheram a orar. Daí começüu a pro­ paganda, e assim nasceu a seita düs Morâbitun, ou habitantes

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