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STÓRIA DA CIVILIZAÇÃO IBÉRICA 79 tórica Se as leis são públicas, e não privatae como no resto da

Europa, é porque a conservação da tradição latina permitiu que se mantivesse a ideia de uma autoridade absoluta, e que acima do poder da força se pusesse a justiça como critério. O rei só pode sê-lo quando obre com justiça: Rex eris si recta facis, si autem 1Ionfacis 11011 eris. Não exager"emos porém o valor

histórico dos monumentos da legislação: entre a lei escrita e a realidade da prática há sempre uma distância notável; e mui­ to maior, agora que, entre o clero erudito redactor das leis e os príncipes e barões seus executores, de nenhum modo fiéis, se abre o abismo.

Ao nosso intento, porém, cumpre registar o facto da exis­ tência dessas tradições jurídicas que, embora conturbadas, não deixam de influir nas disposições do direito positivo. As­ sim vemos que a legislação penal dos Visigodos apresenta um carácter inteiramente diverso do dos códigos dos outros povos germânicos, que só têm em vista punir no crime os prejuízos causados ao próximol, ao passo que entre os Godos a intenção é a base da criminalidade: a lei distingue no homi­ cídio o involuntário, o inadvertido, o provocado, e a existên­ cia ou a ausência da premeditação. A prova testemunhal e o exame racional do facto excluem em princípio a compurgatio, o combate judiciário, e as diferentes formas condições do cri­ minoso - salva a distinção entre livres e escravos - e ape­ nas variam com os graus de culpabilidade. Até em favor dos escravos a lei coarcta e submete a formas de processo, públi­ cas e regulares, o direito de punir que não podia negar aos donos.

Várias vezes, e por via de escritores distintos, se tem ne­ gildo a realidade efectiva deste sistema de disposjções legais, apontando-se exemplos verdadeiros da prática dos processos jurídicos tradicionais dos povos germânicos no seio das socie­

dades neogóticas formadas pela reacção contra os Sarrace­ nos. Tais argumentos só valeriam se, entre essas sociedades e a anterior monarquia visigótica, não estivesse o facto da in­ vasão dos Árabes, cujo alcance para a história da Espanha é enorme. Já dissemos que a monarquia visigótica tem o carác­ ter oficial e efémero de uma tentativa de reconstituição social

dentro dos moldes romanos, semelhante à de Carlos Magno na França. Essa empresa, destinada a fazer parar o movi­ mento de dissolução dá Espanha romana, estava condenada, como o estão todas as tentativas contra a Natureza. Concor­ damos, portanto, em que a legislação filosófica do código vi­ sigótico partilha do carácter artificial de toda a constituição da monarquia, e traduz antes os desejos ou ambições dos conservadores, do que a vida real da sociedade. Entretanto, é facto que o espírito conservador governava a monarquia visi­ gótica; e só quando, com a invasão árabe, a dissolução se tornou um facto acabado, é que as tradições e instintos do povo puderam afinal vingar. Natural é pois que só então viessem também à luz da história tradições de origem germâ­ nica, decerto anteriores nos usos de uma parte da população: o combate judiciário e as outras formas de Juízo de Deus, a wergheld ou remissão das penas a dinheiro, etc.

Dissemos, porém, que a monarquia visigótica pouco vale­ ria para a história da civilização ibérica se apenas represen­ tasse um dos lados que a caracteriza, isto é, o de uma tenta­ tiva conservadora das instituições romanas em via de dis­ solução. Com efeito, assim seria se, entre os Romanos e as nações modernas não estivesse um facto de enorme alcance intimamente ligado à existência da monarquia visigótica - o cristianismo que, por via do clero no.s Concílios, se constitui em intérprete político da nação.

O código visigótico revela da maneira mais eloquente este facto culminante; e o fenómeno de uma legislação geral ou filosófica no meio do sistema de códigos particulares ou pes­ soas das outras nações germânicas, se traz origens da cultura antiga, não assenta já sobre os princípios de direito natural dos juristas romanos, mas sim sobre os dogmas da nova reli­ gião. «A lei, diz o Forum Judicum, é o émulo da divindade.» Por isso, e por nenhum outro motivo, a lei

é mensageira da justiça e soberana da vida; rege as condições e as idades; impõe-se aos homens e às mulheres, aos moços e aos velhos, aos sábios e aos ignorantes, aos cidadãos e aos camponeses; e não defende nenhum interesse, particular, porque protege e defende o interesse comum de todos os homens. (For. Jud.)

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO IBÉRICA 8 1 A preeminência da autoridade religiosa dá incontestavel­ mente à estrutura jurídica da Espanha visigótica uma supe­ rioridade gravíssima no meio da Europa: é a base da unidade da nação, é o fundamento da soberania dos reis que são che­ fes, mas ungidos e pupilos da Igreja. Se essa íntima compe­ netração da autoridade religiosa e da autoridade civil, ou do Estado e da Igreja, é a causa da superioridade da Espanha, ela é também a origem de factos imediatos que mais tarde e em condições análogas haviam de vir a repetir-se. Montes­ quieu disse que os modernos frades não fizeram mais do que copiar contra os judeus as leis outrora feitas pelos bispos: «ao código visigótico, acrescentava, se devem todos os princípios e pontos de vista da Inquisição moderna»'.

Com efeito, os católicos tendo desfrutado, sob o governo dos reis godos arianos, inteira paz e liberdade, podendo não só praticar publicamente a sua religião, como até reunir os seus concílios, pagaram essa tolerância com um tal furor de perse­ guição, que o próprio Santo Isidoro condenava a violência com que Sisebuto (612-621 ), precedendo oito ou nove séculos os reis de Castela, obrigava os judeus ao baptismo. Acor­ dava, como prenúncio de dias futuros, esse ardor de entu­ siasmo religioso que parece inseparável do temperamento peninsular, e como que vinculado a algum elemento consti­ tucional do génio da raça?

A subordinação da autoridade civil à eclesiástica santifica o poder absoluto dos reis, e, por reacção necessária, esse po­ der absoluto constitui-se como protector da Igreja. É deste modo que devemos apreciar as relações da monarquia e dos concílios na Espanha visigótica. A origem eclesiástica da au­ toridade consagrava também outro facto que deve todavia fundar-se primordialmente nas tradições dos Godos e nas ne­ cessidades da sociedade militar: a eleição dos reis.

Efectivamente, a monarquia dos Visigodos, antes e ainda depois do seu definitivo estabelecimento na Península, isto é, durante o v e quase todo o VI século, foi electiva. Mas se as condições da vida da sociedade militar são uma das causas I V. Teoria da História UI/iversal, nas Tábuas de Crol/ologia, pp. XXX­ -XXX I I I , introd.

desses sistema', não admira vê-lo obliterar-se em paz, em­ bora nunca chegue a ser negado em princípio até à conclJlsão do império godo na Batalha de Guadalete.

Alguns historiadores espanhóis, em nosso entender ins­ pirados pelas ideias liberais modernas, imaginaram a exis­ tência de grandes assembleias nacionais em que os reis godos seriam eleitos pelo povo, pretendendo inferir daí uma base histórica para o movimento constitucional da Espanha con­ temporânea: os trabalhos de Marina, tão sábios e interessan­ tes, são o melhor documento desta preocupação política. Para bem esclarecermos o assunto, necessitamos saber o que eram os concílios.

Que antes da conversão de Recaredo (586-601 ) , isto é, durante o período da conquista, houvesse entre os godos as­ sembleias semelhantes ao Wittenagemot dos Anglo-Saxões ou aos PlaGita generalia dos Francos, mallum, dos barões guerrei­ ros presididos pelo rei, seu chefe electivo\ nada há mais na­ tural; que dessas assembleias provém a origem dos Parla­ mentos da Inglaterra aristocrática, é sabido. Mas na Espa­ nha, à medida que a monarquia visigótica se nacionalizava, começando por tomar para si a religião dos vencidos, essas primeiras assembleias foram decerto desaparecendo, perante os concílios de Toledo. Estes são de facto assembleias nacio­ nais, por isso que o clero era então o melhor e até o único digno representante das populações hispano-romanas, e por­ que se ocupavam das questões políticas e administrativas. Se porém à expressão da Assembleia Nacional ligarmos uma significação semelhante à que teve a partir dos séculos XII ou

XIII, isto é, o de reunião mais ou menos regular dos represen­

tantes das três ordens ou classes que constituíam a nação, erraríamos inteiramente.

Nos concílios é o clero que abre à nação a sua própria assembleia, não é a nação que se reúne, mais ou menos fiel­ mente representada, com o fim de coarctar a autoridade do rei. Por isso erra quem supuser nos concílios a origem das modernas instituições parlamentares; embora devamos reco­ nhecer que eles não deixavam de influir sobre a autoridade dos monarcas. Nas assembleias guerreiras dos povos germâ-

I V. Institllições Primitivas, pp. 232-243. ' Ibid, pp. 244-252.

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nicos a força dos barões impunha limites à autoridade dos reis; nos concílios, o poder da monarquia, se não é limitado, é porém dirigido e esclarecido com a superior cultura do clero: daí provém a qualidade da administração e o alto valor das leis da Espanha visigótica.

Desde o reinado de Recaredo (586-60 1 ) até o de Vitiza ( 70 1 -7 10) , imediato predecessor do infeliz Ruderico, reuni­ ram-se dezasseis concílios nacionais a que presidiam os me­ tropolitanos da Espanha - Toledo, Sevilha, Mérida, Braga, Tarragona e Narbona. O facto de ser o rei quem convocava os concílios quando o julgava necessário, está mostrando que a missão deles se reduzia a esclarecer e a sancionar com a sua autoridade moral os actos da Coroa. A força do clero na es­ fera política provinha da consideração que a Coroa lhe dis­ pensava; e esta ganhava, com a adesão da Igreja, uma au­ toridade superior à da força. O concurso de tais circunstân­ cias faz com que a monarquia visigótica adquira uma sobera­ nia e uma independência então desconhecidas do comum dos reis na Europa.

Porventura os concílios viriam com o tempo a transfor­ mar-se em verdadeiras assembleias nacionais, se a invasão sarracena não tivesse abreviado os dias do império dos Go­ dos. Efectivamente, desde o V Concílio convocado por Suin­ tila (62 1 -63 1 ) aparecem os nobres reunidos ao clero na as­ sembleia; sendo verdade, porém, que esta regra não se reali­ za em todos os concílios posteriores, embora a partir do VIII

século não haja mais excepções.

Os nobres congregavam-se, como o clero, por convite do rei, e não por direito de classe. Tão-pouco a intervenção do povo era regular. Tudo o que a esse respeito se pode dizer, é que as sessões do concílio eram públicas; e ima­ ginar uma representação ou intervenção das classes po­ pulares é ilusório, porque o povo nem deliberava, nem votava, nem sequer era regularmente convocado. Como diz um canon, o povo assistia, não para prestar sufrágio, mas

«para defender a fé comum, até com as armas se tanto fosse mister».

Vimos o papel da monarquia perante essa espécie de Par­ lamento, se assim é lícito chamar aos concílios. Apoiados so­ bre a autoridade moral do clero, os reis, embora não reco-

nheçam poderes independentes nos barões, têm também na Aula regia uma instituição por via da qual conseguem agre­ miar junto a si os principais dos nobres, e derivar em proveito próprio a força de que eles dispõem, partilhando ou afectando partilhar uma soberania que não consentem ver dividida. O Oificium palatinum ou Aula regia fora criado no Império Romano por Diocleciano; e do Império os Godos tinham re­ cebido a instituição, conservando-lhe o carácter e até o pró­ prio nome. A Aula regia compunha-se dos principais oficiais da corte, dos magistrados superiores do Governo, civis e militares, e além disso dos favorecidos pela escolha do rei. No seu seio se encontravam as duas aristocracias --.:.. a burocrá­ tica dos Romanos e a militar dos Godos - reunidos em volta do trono. Espécie de Conselho de Estado, a Aula regia exercia pela categoria dos seus membros uma influência activa e per­ manente nas decisões do rei; chegando até a impor-se-lhe, como sucedeu quando levou a cabo a deposição de Vamba (672-680).

Entre outras causas, porém, a falta de homogeneidade que necessariamente devia dar-se na reunião dos nobres hispano­ -romanos e godos, e a faculdade absoluta que o rei tinha de chamar para o seio da Aula qualquer que favorecesse com a sua escolha, tiravam força política a este corpo. Com efeito, a fidalga assembleia desce ao ponto de os reis introduzirem até servos no seio dela, como se vê quando o Concílio XII decla­ ra que só os fiscais (adiante definiremos esta expressão) po­ deriam exercer oficios pala tinos, com exclusão de todos os outros servos e libertos.

Colocada entre estes dois poderes do Estado - o Oficio palatino e os Concílios - a monarquia tinha naturalmente indicada como marcha política a dominação de ambos, opondo-os um ao outro, aproveitando dos conflitos, e levan­ tando sobre eles o fundamento de uma autoridade soberana. Ainda neste ponto são os Concílios que dão a originalidade política à Espanha, depois de lhe terem dado a superioridade social. São eles os ponderadores da influência desse nobres - que em França, depois da queda dos carlovingianos, gra­ dualmente usurpam a autoridade real e por fim a absorvem de todo'.