código promulgado. Os executores da lei eram mais toleran tes do que ela; e quase sempre o modus vivendi das populações cristãs provinha de tratados especiais como sucedeu na Es panha. As suas condições eram tão singularmente benignas, que muçulmanos e cristãos chegavam a dividir a meio a igre ja, ficando a metade oriental aos primeiros, a ocidental aos
segundos: em Córdova, em muitos lugares, sob um mesmo tecto se adoravam Alá e Jeová, Mafoma e Cristo.
Não é só à tolerância dos Árabes que devemos atribuir este resultado: é também à rudeza do cristianismo peninsular. Deste lado do Mediterrâneo sucedia coisa semelhante ao que se dera do oposto com as colónias bizantinas: as expressões de um governo corrupto abriram as portas aos invasores - como o prova, na Espanha, a rapidez com que ela foi con quistada - e a intolerância da Igreja visigoda levava a con sic!.erar o novo regime como uma espécie de liberdade. O cristianismo espanhol era ainda no VII século semipagão; e a Península, quase toda politeísta pelo tempo em que Cons tantino fez do cristianismo a religião do Império, era-o ainda em considerável parte no momento da invasão dos Árabes. Assim, não nos causará estranheza o facto da nímia benig nidade para com as populações vencidas, nas quais, do alto do seu orgulho literato, os crentes viam seres inferiores, inca pazes de perceber a sublimidade das palavras do Profeta e a beleza particular da língua do Corão. O sentimento desta superioridade, intelectual e não guerreiramente aristocrá tica, devia ser a origem dessa benignidade onde se vê à mis tura um certo desdém.
Sabemos que os vencedores respeitaram as instituições dos vencidos, e que entre estes se conservaram, sob o domínio sarraceno, as hierarquias civis e eclesiásticas. Continuaram a existir, como dantes, dioceses, paróquias e mosteiros. Nos municípios as autoridades godas conservaram os seus cargos; e nos paços dos califas de Córdova viam-se godos nobres in vestidos em lugares superiores da corte - provavelmente aqueles donde pendia a administração central do sistema das instituições peculiares aos naturais. Já noutro lugar fizemos sentir o facto da pequena repugnância que nos cristãos havia em servir os chefes árabes: basta recordar as alianças dos emires muçulmanos com os Leoneses no reinado de Afonso VI; o caso do mesmo rei quando foi a Sevilha e perdeu a
jornada por a jogar com o vizir numa partida de xadrez; e as aventuras do Cid, o lendário condottiere, combatendo, ora os cristãos à frente dos Sarracenos, ora estes à frente daqueles. Muitos nobres godos se alistavam nos exércitos sarracenos; e se vimos o primeiro emir de Espanha desposar a viúva do infeliz Roderico, vimos também o guerreiro Afonso VI tomar por sua mulher a sevilhana Zaida. E se o filho de ambos, Sancho, não tivesse morrido na Batalha de Ueles ( 1 1 08), provavelmente se teria visto no trono de Leão um filho de mulher sarracena.
Este concurso de circunstâncias demonstra o facto já hoje conquistado da população hispano-romana, congregada nos municípios e mantida no regime do cristianismo.
Se as perseguições de uma conquista exterminadora têm como resultado o aniquilamento mais ou menos completo da população e a destruição formal das instituições, é facto que isso mesmo determina uma como que depuração afirmativa das ideias tradicionais nas relíquias das populações disper sas. O contrário acontece sob o império de uma religião e de um governo diverso, mas benignos: insensivelmente se dá uma penetração, e, com o tempo, a antiga fisionomia das instituições subalternizadas modifica-se no aspecto, e até na própria essência. É o que sucede à Espanha sob o domínio sarraceno: as populações ficam Moçárabes, isto é, como que árabes.
O primeiro documento que testemunha este facto é a ara bização das denominações dos cargos municipais (al-kaid, al -wasir, al-kadi, al-mohtrib) que sob essa forma, e não já sob a romana, passam para a história da moderna Espanha: alcai de, alcaide, alvazil, almotacé.
Efectivamente, a invasão árabe nem determinou uma al teração de regime religioso e civil das populações hispano -romanas, nem sequer em grande parte uma expropriação de terras como se tinha visto por ocasião da vinda dos Godos. O espírito do proselitismo islamita não fez mais do que dar aos renegados foros de muçulmano; e a conquista afirmou-se socialmente na autoridade política e militar apenas, e na impo sição de tributos, iguais em sistema aos visigodos: a contri buição predial (kharâdj), e a capitação (djzihed) . Satisfeitas
H ISTORIA DA C IVILIZAÇÃO IBÉRICA 1 1 7 estas condições, os súbditos cristãos só podiam ser esbulha dos da posse das suas terras quando deixassem de as culti var, e tinham plena liberdade de se reger pelas suas leis civis; conservando, além das hierarquias eclesiásticas, segundo se disse, as distinções nobiliárias.
Esta natureza de ocupação, se por um lado· não podia dar a unidade social que quase sempre resulta das conquistas violentas, dava por outro, especialmente numa sociedade onde a coesão diminuía em virtude da decadência antiga e constante, um resultado até certo ponto novo: o da assimila ção dos costumes da nação vencedora pelos vencidos. Esse facto é a origem das populações moçárabes cuja importância é enorme para a verdadeira compreensão da história social da Espanha moderna. A arabização dos cristãos não se tra duz apenas nos hábitos exteriores: chegavam a perder o co nhecimento da língua pátria, trocada pela árabe, até o ponto de os bispos reconhecerem a necessidade de mandar traduzir as Escrituras na língua do Corão. Abandonavam os Santos Padres e teólogos cristãos, abandonavam o latim, pela leitura dos literatos árabes, a ponto de, quando Eulógio trouxe de Navarra para Córdova, em 848, a Eneida, de Virgílio, e as Sátiras, de Horácio e Juvenal, tais obras serem novidade na própria terra que produzira Marcial. E os cristãos, fora o grupo de clérigos fanáticos que deu de si Eulógio e Álvaro, não se queixavam, pois não eram perseguidos, nem incomo dados: pelo contrário, serviam no exército, exerciam empre gos na corte e nos palácios dos grandes e não lhes repugnava sequer terem haréns. A circuncisão chegou também a tornar -se uso geral entre os cristãos.
Qualquer que tivesse sido a penetração das duas raças pelo contacto íntimo, pelo uso da língua, e pela adopção dos costumes, exagera, porém, em nosso entender, a gravidade do facto quem julgar encontrar nele a formação de uma nova raça. Sem entrarmos em considerações sobre o valor exacto desta palavra, e sobre a possibilidade da formação de raças naturais nos períodos históricos' devemos contudo observar que há uma circunstância, decisiva ao que nos parece, contra semelhante opinião. Dizem-nos os monumentos que muçul-
manos e cnstaos cruzavam, e de estranhar seria que assim não sucedesse; mas não nos está mostrando o próprio facto da conservação do cristianismo, num estado ainda relativa mente puro no que nele havia de essencial, que tais cruza mentos não podiam ter tido um carácter suficientemente geral para dar lugar a uma fusão de raças? Por tolerante que fosse em princípio o islamismo, seria negá-lo como religião o supor que uma fusão de raça não correspondesse a oblitera ção da religião dos vencidos. Ora o principal facto que distin gue o Moçárabe do árabe puro é exactamente o ter uma reli gião diversa, embora não tenha diferença nos costumes, nos nomes, nem até na língua falada.
Se não podemos, pois, ver na moçarabização das popula ções espanholas um facto de ordem etnológica, tudo nos in duz a considerá-Ia como um dos acontecimentos mais impor tantes para a história social da Península. A ele se deveu a conservação de um povo livremente congregado nos conce lhos, e daí proveio o carácter e importância especial que o
municipalismo tem na história da Espanha moderna. A me
dida que a Reconquista avançava nos territórios sarracenos, os reis cristãos iam encontrando esses núcleos de população laboriosa e rica, e cuidadosamente os amparavam e prote giam. Este facto, desconhecido na Europa Central, onde as invasões de bárbaros mais cruéis do que os Árabes tinham revolucionado de um modo profundo população e riqueza, é a principal causa da excepção que se dá na história penin sular, isto é, da ausência de um feudalismo sistemático, por isso que os reis encontram logo nas populações moçárabes e nos seu municípios pontos de apoio enérgicos para contrariar as pretensões dos barões guerreiros.
Colocando nas fronteiras, ou dos Estados cristãos, ou dos sarracenos - e, durante anos, as algaras e fossados de uns e outros, estendendo-se até o coração de todos, punham o Cen tro e Sul da Península na condição comum de fronteiras - o Moçárabe vacilava entre os dois partidos que disputavam o império. De um lado tinha os amigos, de outro os avós; de um lado tinha os costumes, de outro a religião. Indiferente ou estranho à luta, o Moçárabe era por isso mesmo, e pelas raízes que o vinculavam a ambas as sociedades, bem aceite e protegido por aquela que a sorte da guerra lhe dava por so berana.
H I STÓRIA DA CIVILIZAÇÃO IBÉRICA 1 1 9