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CAPÍTULO 1 – NEOLIBERALISMO E MIGRAÇÃO NORDESTINA EM SÃO

1.3. Subjetividades do sujeito migrante e relatos de si

Ao abordamos a evolução do movimento migratório nordestino, buscamos compreender como a dimensão coletiva dessa imigração ocorreu ao longo dos anos. Entretanto, um dos objetivos desse trabalho é expandir a compreensão sobre o sujeito imigrante, analisando seu processo migratório a partir também do seu itinerário individual, ou seja, das suas trajetórias e experiências singulares.

Para isso, devemos considerar que o estudo sobre o sujeito imigrante precisa contemplar “uma simpatia sem pathos, uma cumplicidade sem inocência, uma compreensão sem complacência ou condescendência” (BOURDIEU,1998, p.10). Além disso, ele complementa apontando que “os princípios da epistemologia e os preceitos do método são de

pouca utilidade neste caso, se não puderem se apoiar em disposições mais profundas, ligadas, em parte, a uma experiência e a uma trajetória social” (BOURDIEU, 1998, p.11).

Os estudos sobre imigração, durante muito tempo, abordaram o movimento migratório principalmente do ponto de vista geográfico e demográfico. Ou seja, estudavam os deslocamentos e as populações sem se aprofundarem em aspectos mais subjetivos, como, por exemplo, os motivos que provocavam a migração ou as experiências de vida dos imigrantes longe dos seus lugares de origem. Porém, conforme destaca Sayad (1998, p.15):

O espaço dos deslocamentos não é apenas um espaço físico, ele é também um espaço qualificado em muitos sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente (sobretudo através das duas realizações culturais que são a língua e a religião), etc.

Além disso, segundo o mesmo autor, devemos considerar a imigração como “um fato social completo”, isto é, devemos analisá-la desde as condições de emigração (movimento que o imigrante faz ao deixar o seu lugar de origem) até as formas de inserção e sobrevivência dele no país de destino (imigração). Afinal, “o imigrante só existe na sociedade que assim o denomina a partir do momento em que atravessa suas fronteiras e pisa seu território; o imigrante "nasce" nesse dia para a sociedade que assim o designa” (SAYAD 1998, p.16).

Apesar de reconhecermos a importância de estudar o processo migratório em sua totalidade, nessa dissertação priorizamos analisar a trajetória da imigrante nordestina Janaína a partir do seu lugar de imigração. Apesar de também buscarmos entender os motivos que a fizeram migrar para São Paulo e sua relação com o estado de origem, o nosso enfoque principal são as experiências individuais e coletivas que ela viveu e continua a viver na capital paulista.

A reflexão de Sayad nos conduz a analisar essa trajetória de Janaína na perspectiva da a compreensão de que o ser imigrante tem, em sua essência existencial, uma dupla contradição, pois “não se sabe mais se se trata de um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente, ou, ao contrário, se se trata de um estado duradouro, mas que se gosta de viver com um intenso sentimento de provisoriedade” (SAYAD, 1998, p.45). Essa dualidade, que se apresenta como uma característica determinante da condição de imigrante, fomenta a existência de um estado com políticas de caráter provisório, ignorando a necessidade de criação de políticas públicas para amparar esses indivíduos recém-chegados, acreditando que eles voltarão para o lugar de origem a qualquer momento. Além disso, faz com que os próprios migrantes acreditem também que esse abandono e as dificuldades vividas na chegada seja algo transitório e necessário, como se fossem provações que a sua nova realidade impõe.

Complementando essa ideia, o mesmo autor afirma que:

Só se aceita emigrar e, como uma coisa leva à outra, só se aceita viver em terra estrangeira num país estrangeiro (i.e.. imigrar), com a condição de se convencer de que isso não passa de uma provação, passageira por definição, uma provação que comporta em si mesma sua própria resolução. (SAYAD, 1998, p.57)

Nesse contexto, devemos destacar que o migrante é composto, sobretudo por duas motivações: o interesse econômico e a emoção da esperança (MOULIN, 2012), sendo que a primeira dimensão estaria vinculada a uma dimensão coletiva, enquanto que a segunda estaria substancialmente enraizada em uma realidade mais individual. Esse sentimento faz com que o processo migratório seja visto como uma busca por melhoria financeira, mas também como o desejo de uma vida melhor em outros âmbitos.

Devemos ressaltar também que, ao decidir migrar, o sujeito está tomando uma decisão voluntária e que seus vínculos com o lugar de origem não precisam ser, obrigatoriamente, cortados completamente, reconhecendo assim uma possibilidade de retorno (MOULIN, 2012). Porém, as singularidades de cada processo migratório podem revelar realidades diferentes. No caso dessa dissertação, Janaína é atravessada por diversas motivações, entretanto, se fossemos sintetiza-la em uma categoria maior, denominaríamos como a luta por sobrevivência.

Primeiramente, Janaína se vê lutando para sobreviver à violência de gênero praticada pelo seu ex-marido que quase levou à morte. A violência sofrida a mobiliza para migrar para São Paulo e, ao chegar aqui, se ver tendo que lutar para sobreviver na cidade grande. Posteriormente, nesse contexto, a busca por emprego e por moradia se tornam sua principal luta em um contexto neoliberal que faz com que a imigrante se submeta a condições de precariedade em busca de superação e vitória.

Essa multiplicidade de motivos para migrar, bem como as diferentes dimensões que definem os movimentos migratórios, também estão em conexão com as reconfigurações das subjetividades contemporâneas. Conforme destaca Arfuch (2010), estamos vivendo um “retorno do sujeito”, que desde a pós-modernidade foi apontado como o declínio da cultura pública e a ascensão do social. No que refere à América Latina, este crescente protagonismo atribuído ao indivíduo ganhou ênfase a partir da década de 80 a partir da quebra de regimes totalitários (Chiara, 2007).

Nesse contexto, iniciam-se também as discussões sobre os conceitos de público e privado, que, durante muito tempo, foram considerados partes de uma relação paradoxal, na qual um (público) teria um caráter positivo, e o outro (privado), negativo. Contudo, com o

passar dos anos e a evolução das teorias sobre essas dimensões, passou-se a estudá-las por meio de uma relação dialógica.

Em relação a isso, Arfuch (2010, p.95), afirma que:

O tempo transcorrido e, sobretudo, as transformações políticas das últimas décadas, o novo traçado do mapa mundial e o desdobramento incessante das tecnologias, que foi além de qualquer previsão, transformaram definitivamente o sentido clássico do público e do privado na modernidade a ponto de essa distinção se tornar frequentemente indecidível. Sob essa luz de historicidade, a configuração atual de tais espaços se apresenta sem limites nítidos, sem atribuições específicas e submetidas a constantes experimentações.

As novas configurações atuais possibilitam a manifestação de uma pluralidade de vozes que “faz com que já não seja possível pensar o binômio público/privado no singular” (ARFUCH, 2010, p.101). Desse modo, admitimos a existência de diversos espaços públicos e privados, “o que é também uma maneira de dar conta das diferenças – e desigualdades – que subsistem na aparente homogeneização da globalização” (ARFUCH, 2010, p. 101).

Atualmente, podemos dizer que as formas canônicas do discurso biográfico, por exemplo, as biografias e as correspondências, convivem com diferentes formas de relato, tornando cada vez mais amplo o que Arfuch (2010) chama de “espaço biográfico”. Apesar das diversas formas de apresentação, elas têm uma coisa em comum: “elas contam, de diferentes modos, uma história ou experiência de vida” (ARFUCH, 2010 p. 111, grifo do autor). Além disso, os gêneros são expandidos e o foco se dirige também às narrativas, com suas características e peculiaridades que são influenciadas, principalmente, pelas temporalidades.

As temporalidades da narrativa se desenvolvem mesclando três tempos: os tempos do mundo da vida, do relato e da leitura. Sendo essa junção responsável por uma das grandes questões que envolvem as narrativas: Quem é o sujeito da história? O que está contando ou aquele que a viveu? Diante dessas indagações, Ricouer (apud Arfuch, 2010) defende substituir o “mesmo” por um “si mesmo”. De modo que,

Sendo a diferença entre idem e ipsem a que existe entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa, sujeita ao jogo reflexivo, ao devir da peripécia, aberta à mudança, â mutabilidade, mas sem perder de vista a coesão de uma vida. A temporalidade medida pela trama se constitui, desse modo, tanto em condição de possibilidade do relato quanto em eixo modelizador da (própria) experiência. (ARFUCH, 2010, p.106)

Cabe destacar também que a importância das narrativas, conforme destaca Richard Rorty (apud Arfuch, 2010, p.107), consiste no seu caráter plural que

(...) na medida em que amplia o conhecimento dos outros – e, consequentemente, do si mesmo -, tem um papel preponderante na afirmação de novos parâmetros articuladores do laço social e de um ideal de

comunidade, diante do debilitamento dos valores do universalismo e da fragmentação política, cultural e identitária da cena contemporânea.

Ou seja, as narrativas que possuem um caráter de relato de si promovem uma identificação dos outros com histórias que poderiam ser consideradas únicas e singulares. Assim, a publicização da experiência torna possível a ampliação do (re)conhecimento sobre práticas e valores individuais, bem como a multiplicação de identidades em contraposição à homogeneização promovida pelo estilo de vida neoliberal.

A partir dessa perspectiva, é possível compreender a relevância que assumem as narrativas para os imigrantes na medida em que elas estão presentes em diversos espaços, seja por meio de relatos públicos das experiências migratórias em livros e periódicos, ou por meio de mensagens trocadas entre aqueles que migraram e os que ficaram no lugar de origem.

Além de dividir o espaço geográfico, os migrantes compartilham sua cultura, seus modos de ser e de resistir. Quem migra, não migra sozinho, traz consigo sua história, suas vivências e as saudades daqueles que ficaram na cidade de origem. Como, inicialmente, as condições financeiras não permitiam o regresso à terra natal, uma das principais formas de comunicação dos imigrantes nordestinos eram as cartas.

Conforme afirma Croci (2008, p.14 e 15) a carta possui um lugar de destaque nos movimentos migratórios, pois:

Entre todos os elementos que caracterizam o universo simbólico do fenômeno migratório, a carta é o que reúne um potencial evocativo e de fascínio de apelo excepcional, pelo simples fato de ser um documento privado e pessoal que, pelo menos virtualmente, nos transporta de improviso bem para o meio do evento emigração, permitindo-nos observar internamente alguns aspectos ou momentos, inclusive, particularmente íntimos, sob o ponto de vista dos protagonistas.

Sobre esse caráter intimista e pessoal das cartas, Arfuch (2010, p.147) complementa que:

As cartas vão além da informação precisa – biográfica, histórica, científica – que possam prover, para delinear, através da modalidade de sua enunciação, um perfil diferente do reconhecível em outras escritas e talvez mais “autêntico”, na medida em que não respondiam inicialmente a uma vontade de publicação.

Em sua pesquisa de mestrado em Ciências Sociais, defendida em 2014 na UNESP, Cinthia Silva estudou os modos como os imigrantes nordestinos transmitiam as experiências migratórias que viveram na década de 60. Dentre os resultados encontrados, a autora destaca que os meios de comunicação eram uma das formas utilizadas pelos imigrantes para reviver

essa memória e manter contato com os familiares. Nesse espaço, se destacam as fotografias e as cartas.

Os avós mantêm guardadas fotografias de quando moravam na Bahia, ou de épocas recentes a sua chegada ao lugar de destino, mas principalmente, foi interessante notar que eles trocavam fotografias junto com as cartas. Antes do uso generalizado do telefone, os migrantes enviavam cartas aos parentes no Nordeste. Os migrantes tanto enviavam quanto recebiam junto às cartas fotografias dos parentes e das casas dos parentes. As fotografias explicavam quem eram os filhos, quem havia se casado, como estavam as casas. (SILVA E PAIT, 2016, p. 72).

Com a transformação nos meios de comunicação e o advento das tecnologias digitais, escrever cartas se tornou uma prática rara, pouco utilizada e até desconhecida, especialmente entre as gerações atuais. A instantaneidade em falar por aplicativos de mensagem, ou até mesmo por e-mail, e ter uma resposta quase que imediata, fez com que a escrita se tornasse um processo demorado, custoso e complicado.

No contexto de usos da carta por imigrantes nordestinos, o coletivo teatral Estopô Balaio desenvolveu, na cidade de São Paulo, um projeto de realização de oficinas de narrativa e memória. Inicialmente, o projeto tinha como objetivo resgatar, refletir e dar visibilidade a essa forma de comunicação na trajetória da imigração nordestina em São Paulo. Posteriormente, algumas cartas foram escolhidas pelo coletivo para serem produzidas e ressignificadas em outros dispositivos e espaços midiáticos e culturais, como, por exemplo, o teatro e o cinema.