CAPÍTULO IV ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA
4.3 Os Direitos Sucessórios do Cônjuge na Sucessão Legítima
4.3.1 Sucessão do Cônjuge
O Direito das Sucessões sofreu significativa alteração trazida pela Lei n.
10.406/2002, por conta do artigo 1.829, que inseriu o cônjuge na concorrência
com os herdeiros tradicionais das primeiras classes.
O cônjuge continua a ocupar o terceiro lugar na ordem de vocação
hereditária, recebendo a totalidade da herança na falta dos descendentes ou
ascendentes. Herdeiro privilegiado passa a concorrer com herdeiros da primeira
classe, condicionado ao regime de bens do casamento e com herdeiros da
segunda classe, independente do regime de bens.
Ademais, elevado à categoria de herdeiro necessário
209, passa a ter
assegurado o direito à legítima, que compreende a metade dos bens do autor da
herança.
Sua ascensão foi considerada por muitos como vertiginosa, do modesto
quarto lugar na ordem de vocação hereditária, que ocupava no início do século XX
e ainda, na raríssima hipótese se convocada depois dos colaterais de 10º grau.
Seguida pela alteração do Decreto Lei n. 1.839, de 31 de dezembro de 1907, que
inverteu a ordem de vocação hereditária, colocando o cônjuge na terceira classe
dos sucessíveis e limitando a sucessão dos colaterais até o 6º grau, critério este
mantido inclusive no texto original na promulgação do Código Civil de 1916, sendo
modificado posteriormente pelo Decreto Lei n. 9.461 de 15 de junho de 1946, que
limitou o grau de parentesco dos colaterais sucessíveis até o 4º grau
210, mantidos
pela legislação vigente.
209 O cônjuge passa à categoria de herdeiro necessário (art. 1.845 do CC), não podendo ser afastado da sucessão por
simples disposição testamentária, o que antes era possível pela disposição testamentária de todos os bens na inexistência de descendentes e ascendentes.
210 Art. 1.612 do CC de 1916. “Se não houver cônjuge sobrevivente, ou ele incorrer na incapacidade do art. 1.611, serão
O cônjuge supérstite é convocado a recolher à herança em parte ou no
todo, condicionada aos requisitos legais genéricos que envolvem a todos os
herdeiros
211e mais, a verificação de certos pressupostos para legitimar a
presunção do afeto, na vida matrimonial, bem como a conquista patrimonial, esta
última direta ou indireta, para tanto exigido o casamento fático e jurídico,
observado o artigo 1.830 do Código Civil, se ao tempo da morte do outro, as
partes não estavam separadas judicialmente ou de fato há mais de dois anos,
salvo, neste caso, se o cônjuge comprovar que a convivência se tornou impossível
sem culpa sua.
As razões que se seguiram a tal alteração, valorizando o cônjuge na
sucessão hereditária, vão de encontro à orientação seguida por vários países
ocidentais
212213.
211 “Artigo 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” 212 O Código Civil argentino no art.3.545 estabelece a seguinte ordem de vocação: a) descendentes em concorrência com o
consorte sobrevivente; b) ascendentes em concorrência com o consorte sobrevivente, da seguinte forma: quanto aos bens próprios do falecido, será dividido ao meio, cabendo metade aos ascendentes e a outra metade ao cônjuge, quanto aos bens gananciais, o consorte recebe sua meação e os 50% restantes serão divididos 25% para cada um dos ascendentes; c) consorte sobrevivente; d) colaterais até o 4º grau; e) fisco. Cf. ZENO VELOSO. “Na Argentina, o Cônjuge é herdeiro necessário, concorrendo com filhos e ascendentes do falecido (CC, arts. 3.570 e 3.571). Cessa, porém, a vocação hereditária dos cônjuges, entre si, se estiverem separados de fato, ou provisoriamente separados, por sentença judicial. Se a separação for imputável à culpa de um dos cônjuges, o inocente conservará a vocação hereditária (art. 3.575).” (Direito de
Família e a necessidade de alteração no Direito Sucessório).
Cf. EUCLIDES DE OLIVEIRA. “Assim, em concurso com filhos deixados pelo falecido, na sucessão o cônjuge terá a mesma quota de cada um deles, salvo quando à parte dos bens comuns (gananciais) que tocaria ao cônjuge pré-morto. No concurso com ascendentes, o cônjuge viúvo terá a metade dos bens próprios e também a metade dos bens comuns que corresponda ao falecido. A outra metade ficará com os falecidos.” (Direito de Herança, p.45)
Confrontando a legislação italiana, no trato sucessório do cônjuge, assim escreveu: EUCLIDES DE OLIVEIRA. “No concurso com os descendentes, o cônjuge tem direito à metade de herança, se há um filho, e a um terço, nos outros casos. Concorrendo com ascendentes ou com irmãos do falecido, o cônjuge fica com dois terços da herança “.(Direito de Herança, p.41).
Cf. ZENO VELOSO. “Na Suíça, por sua vez, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes, tendo nesse caso, direito à metade da herança. Em concurso com o pai, a mãe, os seu descendentes, têm direito a três quartos do espólio. Na falta desses parentes, recolhe a herança, por inteiro”. (CC, art. 462).
Confrontando a legislação alemã, no trato sucessório do cônjuge. CF. EUCLIDES DE OLIVEIRA. “O cônjuge não consta de uma ordem sucessória específica, mas tem seu tratamento como herdeiro legítimo concorrente, recebendo: a) a quarta parte da herança, se concorrer com parentes de primeira ordem, b) metade da herança se concorrer com parentes de segunda ordem ou com avós”. (Direito de herança, p. 44).
“O cônjuge tem participação concorrente na herança com os filhos naturais, com os ascendentes e também com irmãos do de cujus, num complexo sistema de atribuição diferenciada de quotas.” (Direito de herança, p.46).
213 Em posição contrária, o direito francês e o espanhol mantêm similitude no tratamento sucessório do cônjuge com o
nosso revogado Código. Cf. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE: “No direito francês, a redação do artigo 767, pela lei de 3 de janeiro de 1972, afirma que a posição sucessória do cônjuge sobrevivo, em concurso com os filhos, com os ascendentes e até com irmãos e irmãs do de cujus, continua a limitar-se ao direito de usufruto sobre uma quota da herança, que será de um quarto, no caso de concurso com os filhos. (...), e de metade no concurso com ascendentes, irmãos ou irmãs e seus descendentes (...). E no direito espanhol, a lei 13 de maio de 1981, que continuou, no artigo 944 do Código Civil espanhol, a chamar o cônjuge sobrevivente a recolher a herança do de cujus só na falta de descendentes e ascendentes”. (Comentário
Na evolução da sociedade contemporânea, os vínculos de parentesco
(principalmente dos consangüíneos distantes), foram paulatinamente perdendo a
importância sucessória, paralelamente foram sendo concedidos maiores e
melhores benefícios à família em sentido estrito, aquela formada pelos pais e seus
filhos.
Disserta GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
214:
“(...) diante das transformações operadas no curso do Século XX nos
valores culturais, econômicos, políticos e sociais, logicamente a família
não poderia deixar de ter recebido os impactantes reflexos das mudanças.
No sistema jurídico brasileiro, em particular, a Constituição Federal de
1988 provocou vital remodelação dos vínculos jurídicos diante dos valores
e dos princípios fundamentais alçados ao ápice do ordenamento jurídico e,
logicamente, que numa mudança de perfil do Direito das Sucessões, a
sucessão legítima recepcionou inúmeros valores e princípios como os da
dignidade da pessoa humana dos integrantes da família, da igualdade
substancial entre homens e mulheres, da especial proteção às famílias, do
pluralismo dos modelos familiares, da cidadania e da democracia no
âmbito das relações intersubjetivas – notadamente entre os próprios
familiares”.
Interpretando a vontade social e reconhecendo os valores existenciais na
família, o legislador concedeu maior importância à conjugalidade, à afetividade, a
vida em comum mantida pelo casal até o último momento da vida. Poderia pensar
que o cônjuge é o único herdeiro legítimo e necessário escolhido pelo autor da
herança. Ainda que teorias adotem como verdadeiras, que a ordem de vocação
hereditária é a vontade presumida do autor da herança, os demais herdeiros
necessários (descendentes e ascendentes) não são da escolha do autor da
herança.
Prossegue o autor, “(...) ao inserir o cônjuge ao lado dos descendentes e
dos ascendentes, valorizando em perfeita sintonia com os postulados
constitucionais, a afetividade e a transparência das relações matrimoniais. O
casamento e as demais formas de constituição e de manutenção da família
passam a ser fundamentados na afetividade e na solidariedade material,
reformulando completamente os institutos de Direito de Família e,
conseqüentemente, de Direito das Sucessões na parte em que este se relaciona
com as famílias tuteladas juridicamente
215”.
Na vigência do Código Civil de 1916, ao ocupar o terceiro lugar na ordem
de vocação hereditária, o cônjuge somente era chamado à sucessão, na falta dos
herdeiros precedentes; a existência de um único herdeiro da classe anterior
(descendente ou ascendente), o cônjuge era afastado da sucessão, operando em
uma verdadeira ordem preferencial e excludente,
216umas sobre as outras. E
sendo o cônjuge, herdeiro facultativo, poderia ser afastado da sucessão, por ato
de disposição de última vontade, ainda que na inexistência dos herdeiros
precedentes.
Para EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE
217, as alterações resultantes do
Código Civil de 2002, no trato sucessório do cônjuge, se justificam pela alteração
do regime legal (supletivo) do casamento, da comunhão universal para a
comunhão parcial. Modificada pelo artigo 50 da Lei n. 6.515/77, (Lei do Divórcio)
que alterou o artigo 258, do Código Civil de 1916, passando a vigorar com a
seguinte redação: “Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos
bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial”. O regime supletivo
passou da comunhão universal para o regime da comunhão parcial.
215 Ibidem, p.116.
216 Cf. lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, na vigência do Código revogado. “Só se convocam ascendentes
se não houver descendentes; por sua vez, o cônjuge sobrevivente só é chamado se não existirem descendentes ou ascendentes e assim por diante. Uma classe tem, portanto precedência sobre a outra, sendo essa precedência fundada em razões muito especiais”.(Curso de Direito Civil, Direito das Sucessões, p. 214 e 215.
217 "A razão primeira de tal mudança remonte à alteração radical no tocante ao regime de bens, antes prevalecendo o da
comunhão universal, de tal maneira que cada cônjuge era meeiro, não havendo razão alguma para ser herdeiro". (Comentário ao novo Código Civil, p.216).