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Super-8mm e grupos de trabalho

No documento O campo cinematográfico no Rio Grande do Sul (páginas 141-162)

Festivais, diversificação temática e trabalho coletivo: a formação do campo

3.4 Super-8mm e grupos de trabalho

Para Flávia Seligman, um filme ou espetáculo definido como “alternativo” ou não empresarial pouco diria sobre o que estava sendo apresentado no começo dos anos 80, pois a denominação empresarial não encontraria muita aplicação na Porto Alegre dos anos 70. A costumeira falta de recursos que marcava o meio artístico permitiria por si mesma essa rotulação. Fazer questão de se definir como alternativo era um fenômeno da época (Seligman, 2003). Contudo, quando lidamos com o cinema gaúcho do período, é importante termos em conta que o supe-8 não foi uma escolha estética, como seria nos anos 90, inclusive em trabalhos comerciais que desejavam um efeito “retrô / vintage” em sua realização. No final dos anos 70, o super-8 era o formato economicamente viável para os novatos (Seligman, 2003). Jovens que iam constituindo suas turmas e suas posições, algumas delas já definidas e em processo de fortalecimento.

Dentre essas posições havia a ocupação da Mostra de Super-8 exibida no Festival de Cinema de Gramado, que era organizada pela Associação Gaúcha de Cinematografia (Agacine). Um evento cujo baixo orçamento disponível era compensado pela “boa vontade” dos dirigentes, que mais não eram do que os próprios diretores dos filmes em competição. Uma turma que tentava levar a organização da mostra até o final “sem estrelismos e surpresas desagradáveis”.

Em sua divulgação inicial, a mostra em Super-8 no Festival de Gramado foi incentivada nas páginas dos jornais da Caldas Júnior por Ney Gastal, filho de P.F. Gastal. Ney Gastal chegou inclusive a fazer parte da comissão de pré-seleção dos filmes a serem exibidos. E o crítico Tuio Becker, além de divulgador, era um dos competidores (Nadotti, 2002).

O preâmbulo dos trabalhos era iniciado com uma chamada nacional para os interessados em se inscreverem no evento. O júri era composto sem um critério fixo. Geralmente faziam parte do grupo um diretor de filmes super-8 premiado em edições anteriores, um representante da Funarte ou da Embrafilme, um crítico de cinema gaúcho, um cineasta profissional e um representante da própria Agacine (Gerbase, 1987, p.546-547).

A criação de uma mostra competitiva de filmes em Super-8mm inserida no Festival de Gramado em 1977 surgia como reflexo da produção observada em outros Estados. Mas os filmes apresentados num primeiro momento eram muito desiguais. Curtos, mudos por dificuldades de sincronização, podiam ter alguma pretensão artística, ou causavam constrangimento e aborrecimento por retratarem a vida pessoal de seus realizadores. Mesmo a pré-seleção realizada pela Agacine, devido à demanda de inscritos, não impedia de todo essas situações. Além dessa seleção, os filmes em Super-8, assim como aqueles em bitola profissional, eram submetidos à Censura Federal (Gerbase, 2002).

Expressando um entendimento sobre o que seria a autonomia criativa daqueles cineastas, para Nadotti, não tendo futuro comercial, os filmes em Super-8mm possuíam “liberdade de expressão”. A despeito dos critérios da pré-seleção, os filmes que eram exibidos na Mostra de Super-8 demonstravam “um painel mais democrático da produção brasileira” quando comparados aos filmes curtos e longos apresentados nas mostras oficiais de Gramado. (Nadotti, 2002).

Na opinião de Nelson Nadotti, o festival precisava daqueles jovens cineastas, assim como aquela vitrine lhes era indispensável. Em 2002 o cineasta já radicado no Rio de Janeiro percebia isso como um dos motivos que os levara a investir na confecção de um longa em

bitola amadora. Uma atitude que mudaria a perspectiva dos indivíduos envolvidos: “Aí, sim, a história foi bem outra: acabara a inocência, e partíamos na conquista do mundo” (Nadotti, 2002).

Carlos Gerbase, por seu turno, apontou a posição secundária ocupada comumente por essa mostra de filmes em Super-8mm no Festival de Cinema de Gramado. Pouco atrativas a um público voltado aos filmes em competição nas mostras oficiais, as exibições, além de esvaziadas, não eram seguidas de debates acalorados, o que frustrava os jovens diretores. Em depoimento escrito em 1987 sobre a estrutura e a trajetória do Festival de Gramado, Gerbase retratou o isolamento e a própria dúvida levantada pelos cineastas sobre pertinência de se manter um evento paralelo ao Festival de filmes profissionais:

Este fato, aqui apresentado sobre a ótica da maioria dos participantes do Festival de Gramado, causa uma grande frustração ao super-oitistas, principalmente àqueles que sobem a serra pensando numa semana cheia de discussões, entrevistas e troca de ideias. Mas os dias passam, e ninguém pergunta nada sobre os filmes que produziram, pouca gente os assiste, não entram nas festas, não há garantia de ingresso para as sessões da noite. Enfim, um sentimento inicial de revolta com o menosprezo à bitola é totalmente justificável, e bastante comum, o que já levou muita gente a afirmar que seria melhor transferir o Festival (de Super-8, é claro) para outro lugar, ou data, ou ambos (Gerbase, 1987, p.545).

Mesmo assim, Carlos Gerbase não deixou de afirmar a importância de existir a brecha para um contato dos amadores com os profissionais estabelecidos fora do Estado. Momentos em que um determinado episódio podia se tornar um lance de sorte para a visibilidade de certos filmes, como aconteceu com Deu pra ti, anos 70:

Walmor Chagas, como outras personalidades famosas presentes em Gramado-82, assistiu a Deu pra ti, anos 70 e surpreendeu-se com o que viu: uma nova forma de fazer cinema começava a aparecer por aqui. Walmor espalhou a novidade e, quando o filme foi reprisado como o vencedor do festival, no sábado, uma plateia cheia de estrelas e nomes importantes da cinematografia nacional trocava a piscina por uma boa dose de Super-8 (Gerbase, 1987, p.545-546).

Gerbase chegou a afirmar que o público vivenciou com Deu pra ti, anos 70 um “espetáculo inovador”, que rompeu preconceitos e fez com que se cumprisse o que seria a função de um festival: abrir caminhos. Conforme o cineasta, teria sido justamente por ocorrer

concomitantemente ao Festival de filmes profissionais que a mostra em Super-8 teria conseguido chamar a atenção da imprensa nacional. E não só isso: a visibilidade em Gramado serviria como importante chamariz de bilheteria. Lançado em Porto Alegre logo após o Festival de 1982, Deu pra ti, anos 70 contou com aquela recente e positiva repercussão, algo que no geral não aconteceria com os filmes em 35mm, que muitas vezes eram lançados comercialmente muito após o final do festival. Isso quando conseguiam articular um circuito exibidor (Gerbase, 1987, p.546).

Essa espécie de publicidade teve seu ponto de partida na opinião de Walmor Chagas, um ator reconhecido e prestigiado, nascido no Rio Grande e radicado em São Paulo. Valeu para Deu pra ti, e boca a boca semelhante, cada vez mais ampliado pela imprensa porto- alegrense, valeria ainda para Coisa na roda, Inverno e Tempo sem glória, nos três anos seguintes. No Festival de Gramado a promoção era feita na base da distribuição pessoal de informações impressas pelos próprios realizadores dos filmes, que, nas palavras de Goida em

Zero Hora, superavam “com garra a importância relativamente menor do seu cinema”

(ZH/SC, 23/3/1982, p.3).

Também contava para toda a repercussão a quantidade de filmes feitos. A presença gaúcha era predominante no concurso de filmes em super-8 do Festival de Gramado, considerada também a força da produção paulista, que contava com um festival expoente, realizado pelo Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais (Grife). O certame de Gramado de 1982 teve 59 inscrições iniciais, e dezesseis filmes selecionados: 7 do Rio Grande do Sul, 5 de São Paulo, 2 do Distrito federal, 1 do Paraná e 1 da Bahia. O júri de seleção foi composto por um representante da Agacine (Lycurgo Leite Cesarino), um do Foto Cine Club Gaúcho (Arthur Cariboni), um do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa (Antônio Carlos Senna). Já a mostra foi julgada pelos dois últimos mais um representante da Embrafilme, um novo representante da Agacine (Jayme Leite de Sá), e o diretor de filmes em super-8mm Abrão Berman, um dos criadores do Grife (FT/LU, 15/3/1982, p.63).

No início dos anos 80, os filmes super-8 premiados em Gramado era exibidos em Porto Alegre em mostras promovidas pela Agacine. Em 1982, a mostra ocorreu na Sogipa, e incluiu uma seleção dos filmes premiados no festival Grife, que ocorria na paulista (FT/LU, 20/4/1982, p.32; CP, 20/4/1982, p.15). Além do circuito constituído na capital gaúcha, o interior do estado era acionado em exibições em escolas e faculdades. E para além da divisa estadual, contatos poderiam ser acionados em mostras como a Lyra Paulistana, focada nas

apresentações alternativas, em exibições universitárias, ou em eventos de interesse específico. O que aconteceu durante o Congresso Nacional de Semiologia de 1982, que acertou uma exibição de A palavra cão não morde, de Roberto Henkin e Sérgio Amon (FT/LU, 30/4/1982, p.central).

Entre as mesadas ganhas dos pais e a remuneração por alguns trabalhos, os jovens cineastas iam levando seus projetos – ou a vontade de engendrar projetos – adiante. Naquele final de década, Giba Assis Brasil comprou uma câmera sonora à prestação, e mostrou o equipamento para Nelson Nadotti. Resolveram que iriam fazer um filme... mas sobre o quê? Encontraram a resposta tratando sobre as suas experiências, a sua geração (V6, 2007).

Referindo-se a isso ao recordar Deu pra ti, anos 70, Giba Assis Brasil afirmou que o filme valia menos como cinema e mais como catarse, como reflexão para o público. Uma moldura para o sentimento de desilusão e descrença na possibilidade de sucesso do engajamento político direto (Reis, 2007, p.11 e 19). Um panorama de uma geração que teve por vivência comum a experiência da repressão do período ditatorial brasileiro pós-1964, especialmente violento a partir da decretação do Ato Institucional número 5 (AI-5) em fins de 1968. Um período em que se tornara comum, lembrava Giba Assis Brasil em entrevista para Nicole Reis, o medo de ser parado, de se reunir em locais públicos, de trazer livros consigo, de mostrar um conhecimento que invariavelmente era tomado como perigoso pelo regime (Reis, 2007, p.5-6).

Note-se que o distanciamento político dos primeiros filmes de Nelson Nadotti já era relativizado. Somando-se a essa postura, havia de se lidar com o arbítrio. Em 1980 a intervenção ditatorial incidiu sobre os próprios filmes em super-8. O curta Sexo e Beethoven, teve uma sequência suprimida pela censura, somente sendo exibido na íntegra aos jurados em sessão clandestina. Já a mostra de 82 marcou o rompimento de uma censura a um filme em super-8 pela via judicial. Encruzilhada Natalino, realizado por Airton Centeno e Guaracy Cunha retratava o acampamento de um grupo sem-terra durante o ano de 1981. Vetado pelo escritório da Censura Federal estabelecido no Rio Grande do Sul, o filme tinha ameaçada a sua exibição pela Agacine, entidade que organizava o concurso de super-8 em Gramado. Liberado pela Justiça, pois o certificado de censura não era exigido expressamente pelas regras da mostra, o filme foi exibido e se inseriu na tradição de polêmicas que o Festival de Gramado vinha acumulando no início da década, com muitos episódios de ameaças de veto e reclamações pelo conteúdo dos filmes (FT/LU, 22/3/1982, p.53; FT/LU, 24/3/1982, p.31; CP, 25/3/1982, p.15).

Essa imbricação de uma noção de inovação com a perseguição política dava aos jovens cineastas ares de vanguarda cultural. Para Gilberto Velho, a noção de vanguarda é auto-avaliativa, o que implica no reconhecimento de vanguardas, no plural e muitas vezes em competição pela primazia. Seus membros seriam aqueles que exercitariam ao máximo o projeto de estranhamento e revisão de si, o que permitiria se colocar no lugar da alteridade, postura essa que quebraria regras e normas. Conforme o antropólogo, isso transcenderia o plano estético-cultural e abarcaria o comportamento, que visaria a “consistência existencial”. Assim, a atitude iconoclasta tenderia a se espalhar pela existência íntima desses indivíduos:

A pesquisa de fronteiras ao nível do trabalho é, muitas vezes, pararela a incursões ao nível da biografia propriamente dita, as diferentes fronteiras simbólicas da sociedade, em termos de opções, comportamentos, gostos, etc. Desta forma os membros da vanguarda recorrentemente incidem no desagrado de grupos mais conservadores, sendo alvo de acusações de desvio e anormalidade (Velho, 1977, p.27-29).

No contrapelo dos possíveis ataques conservadores, a vanguarda estabelecida pelos filmes em super-8 poderia estabelecer laços com grupos mais amplos. E a criação de um público específico para esse cinema foi pontuada por Flavia Seligman. As temáticas abordadas pelos filmes (escola, universidade, uso de drogas) eram candentes para os jovens da época, assuntos que antes não haviam passado por discussões do modo que então principiava a acontecer. Seligman aponta ainda o ambiente festivo desses encontros artísticos, onde quase todos se conheciam de algum modo, e em boa medida possuíam um grau de acesso econômico que permitia que frequentassem os espaços culturais e consumissem aquela produção (Seligman, 2003). Tuio Becker chegou a visualizar em Porto Alegre até mesmo um certo aspecto que lembrava o modelo de estrelismo cinematográfico de Hollywood e afins:

Cria aquele negócio: Tu vês a realidade refletida através de um filme, que tu tinhas visto no teatro, com as pessoas que de repente aparecem em comerciais. Criou assim uma pequena mitologia, um ‘star system’ assim, que tu já identificavas o [ator] Pedro Santos com isto, a fulana com aquela outra coisa, o outro como o sacana da história (Becker apud Seligman, 2003).

Essa emergência geracional não era expressão exclusiva dos gaúchos realizadores de super-8mm que se faziam representar em Gramado. No Festival de 1982, o jornalista Ivo Stigger observava que dos dez filmes selecionados para a mostra principal daquele ano

(longas em 35mm), seis eram produto de cineastas estreantes, alguns oriundos das primeiras turmas de cineastas formados pela USP: Ivan Cardoso (O segredo da múmia), Djama Limongi Batista (Asa Branca, um sonho brasileiro), Luiz Alberto Pereira (Jânio a 24

quadros), Sérgio Resende (O sonho não acabou), Uberto Molo (Tormenta), Zé Antônio

Garcia e Ícaro Martins (O olho mágico do amor). Cineastas que, lembrava o crítico, tiveram sua formação sob o AI-5, e de quem agora se esperava o que tinham a dizer (FT/LU, 23/3/1982, p.31).

Já vimos que o conceito de geração foi objeto de várias reflexões teóricas, sendo que a sua aplicação nos estudos historiográficos foi questionada tendo em vista a dificuldade em se definir o marco de referências que teria presença comum ao grupo de pessoas que se define como uma geração. Contudo, arrisco-me aqui a aplicá-lo, entendendo o grupo de cineastas rio-grandenses surgido em meados da década de 1970 como uma geração pautada pela mudança de inflexão, por uma relação muito específica com as artes, e por uma série de tomadas de posição em relação ao modo de se produzir cinema. Algo que, se não permite entender um projeto explícito num primeiro momento, a posteriori nos permite analisar uma experiência em comum ao grupo em questão e que pode ser entendida como uma “fratura geracional” que comporta uma nova expectativa frente ao futuro.

Ao se referir ao que poderiam ser as características pré-lingüísticas que “guiariam” quaisquer padrões de escrita, Reinhardt Koselleck, partindo do escopo teórico heideggeriano - que trabalha a idéia de finitude do homem que caminha para a morte -, fez menção sobre a importância das experiências únicas que são vivenciadas no tempo geracional. A finitude temporal seria fundamental para a possibilidade de “novas histórias”:

La sucesión inevitable de generaciones, en su reengendradora superposición fáctica y temporal, lleva siempre a nuevas exclusiones, a determinaciones diacrónicas de lo interno y lo externo, al antes o al después respecto a las unidades de experienxcia especificas de cada generación. Sin estas exclusiones ninguna historia es pensable. Los cambios e choques generacionales son constitutivos por antonomasia del horizonte temporal finito, por cuyo respectivo desplazamiento y solapamiento generativo acontecem las historias (Koselleck, 2002, p.82).

Koselleck ao se referir a essas fraturas geracionais, que comportam as alterações de ordem jurídica, política ou social, está se lastreando em seu já clássico enunciado acerca dos “campos de experiência e horizontes de expectativa”, a diferença entre o passado e o futuro

que é dada a cada tempo presente, com o remetimento mútuo das dimensões temporais de passado e futuro (Koselleck, 2002, p. 83). A cada presente o passado é evocado em recortes que elegem, privilegiam ou ressignificam certas temáticas, em uma relação que projeta, espera, um determinado futuro.

Nesse sentido de construção e valorização de um significado, nas muitas vezes que

Deu pra ti, anos 70 surgiu em evocações de memória, foi normalmente tomado como grande

referência geracional por ter encarnado a possibilidade de abertura de um espaço à produção cinematográfica rio-grandense. Muitas vezes o filme voltaria a centralizar atenções e discussões num tom saudosista pela epopeia de sua realização, como aconteceu em 2001, ao ser lançado em vídeo através de uma associação entre a Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e sua atual distribuidora, a Casa de Cinema de Porto Alegre.

Nesse momento tornavam-se propícias algumas ordenações sobre a época de sua produção. Deu pra ti anos 70 (1981, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti), conforme essas recordações, surgiu de uma ideia “boêmia”. Giba Assis Brasil tratou a gênese do filme como uma necessidade inventariante sobre o período em que se vivia:

Uma madrugada, caminhando pelo Bonfim [bairro de Porto Alegre], vi numa parede a pichação ‘Deu Pra Ti Anos 70’. Gostei daquela mistura: uma gíria nova, um jeito porto-alegrense de falar, mais o sentimento de que aquela década estava acabando e precisava ser inventariada sem os preconceitos de quem ainda vivia os 60. E, depois soube, a música era de Nei Lisboa e Augusto Licks. Achei que dava um filme. O Nelson achou o mesmo e a gente começou (com o Álvaro Teixeira) a escrever o roteiro que nunca acabava (ZH/SC, 12/12/2001).

O final dos anos 70 era época em que o cenário musical se tornara fortemente influenciado pelos artistas vinculados à Música Popular Gaúcha (MPG)52, dentre eles Bebeto

52

Esse fenômeno dividia espaço com o que acontecia com a música regionalista. Nas páginas dos jornais editados em Porto Alegre no final dos anos 70 e início da década seguinte é possível perceber que a defesa de uma cultura alternativa perpassava também o teatro e a música, observando-se também em relação à valorização da cultura regional. Isso porque entre o final dos anos 70 e começo dos 80, boa parte dos jovens citadinos de classe média “descobriu” as tradições gaúchas. O regional entrara em alta e se tornara tema de intensos debates. Em sua grande maioria sem vinculações pessoais com a vida campeira da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina, esses jovens passaram a consumir produtos culturais gauchescos, tomar chimarrão, usar bombachas e ouvir música regional. A estimagtização de uma cultura atribuída às camadas populares de origem rural (incluindo aquelas que migraram para as cidades) foi substituída pelo culto do que seriam as reais tradições dos gaúchos, mesmo que os envolvidos fossem descendentes de italianos, alemães, ou de outros grupos étnicos. Nesse contexto aconteciam os festivais de música – como a Califórnia da Canção de Uruguaina –, espaços onde surgiam inúmeras e intensas polêmicas entre os defensores implacáveis dos valores de uma tradição criada, conservadora e cristalizada em temas passadistas (os tradicionalistas) e aqueles que criticavam a reprodução dos

Alves, Jerônimo Jardim, Nei Lisboa e Nelson Coelho de Castro. Por outro lado, o rock se expandia pelo Anchieta, IPA, Israelita e Rosário, algumas das mais influentes escolas privadas de Porto Alegre (Grazziotin, 2006, p.18). Nicole Reis diferenciou o cinema porto alegrense da virada dos anos 70 e 80 das manifestações musicais, que permitem certa pessoalidade, e do teatro feito em Porto legre, marcado pela aproximação ou pelo afastamento do modelo acadêmico representado pelo DAD-UFRGS. Ainda assim, a autora identificou relações de cooperação e participação em projetos em comum entre os seus pesquisados, relacionados diretamente a cada uma dessas áreas (Reis, 2005, p.121-122).

A frase “deu pra ti, anos 70” estava em uma das músicas do show apresentado pelos artistas no Teatro Renascença na última semana de 1979. Era uma gíria que queria dizer “chega!”, “para!”. Uma referência ao cansaço sobre uma década que ninguém mais queria viver, o que, para Giba Assis Brasil, justificava a utilização da fala (Seligman, 2003). Conforme o compositor Augusto Licks, na cozinha do apartamento do também músico Nei Lisboa na rua Cauduro, no Bairro Bonfim, fronteiriço ao auditório Araújo Vianna, “muitas ideias rolaram permeadas pelo cafezinho da Dona Clélia, mãe do Nei”. Teria sido graças a essas sessões, onde se ouvia o cantor Gelson Oliveira repetir as expressões “deu pra isso”, “deu pra ele”, que o título Deu pra ti, anos 70 ficou definido para o espetáculo planejado. Por

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