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Vento norte e o flerte com o modelo industrial de produção

Configurações prévias de um campo: cinefilia e experimentos

2.3 Vento norte e o flerte com o modelo industrial de produção

No interregno entre o advento do cinema sonoro e a década de 1970, um único filme de longa-metragem se apresentou como um exercício de estilo. Inspirado nos modelos do “cinema de arte”, mas dissociado dos apelos comerciais e, portanto, fracassado nas bilheterias, Vento Norte, foi lançado em 1951 pelo fotógrafo Salomão Scliar. Após uma curta permanência em cartaz o filme somente voltaria a reapresentado em 1985, durante uma Restrospectiva do Cinema Gaúcho promovida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul.

À época dessa reexibição, o crítico Luiz César Cozzatti, além de procurar remeter o filme a uma história ancestral do cinema gaúcho, ressaltava a sua importância e a mazela que teria sofrido por ter sido realizado numa posição periférica:

Tão importante quanto Limite, de Mário Peixoto, e Ganga bruta, de Humberto Mauro, Vento norte merece ser redescoberto pelas novas gerações. Realizado em um centro como Rio e São Paulo, teria permitido a continuidade da carreira cinematográfica e o reconhecimento crítico de seu autor. Infelizmente, o isolamento gaúcho, nosso próprio provincianismo, conspirou contra o filme e seus autores (ZH/SC, 20/9/1985, p. 4).

Não vou aqui me alongar nos exageros do jornalista. Mas veremos que o pesquisador Glênio Póvoas comprovou que Salomão Scliar teve seu filme assistido e analisado pelas pessoas que poderiam ser consideradas a “nata” do cinema brasileiro no início dos anos 50. O próprio cineasta Salomão Scliar, em entrevista ao mesmo jornal Zero Hora, por ocasião da mesma mostra saudada por Luiz Cesar Cozzatti, recordava que Vento norte caíra no agrado do crítico paulista Paulo Emílio Salles Gomes e dos cineastas Glauber Rocha e Alberto Cavalcanti34. E mais: chegara a impressionar Danilo Trèlles, diretor da Cinemateca do Sodré de Montevidéu, que levou uma cópia do filme para o Congresso Internacional de Cinematecas, onde foi considerado “como tendo nível para ser exibido” nessas salas voltadas aos cinéfilos e aos pesquisadores. O que, em se tratando de filme feito no Brasil, somente ocorrera com Limite (1931), de Mário Peixoto (ZH/SC, 16/9/1985, p.3).

Isso posto, fato é que a contextualização da produção de Vento norte indica que pela primeira vez se esboçaram os elementos que iriam se agregar para a formação de um efetivo campo cinematográfico do Rio Grande do Sul, ainda que sem a força necessária para consolidar esse campo naquele momento.

Pode-se dizer que Salomão Scliar cresceu em meio a um universo de relações inseridas em diversos graus no campo cultural de Porto Alegre. Na casa de seu pai, o alfaiate Henrique Scliar, havia a frequência de jornalistas como Josino Campos, Justino Martins, Rivadávia de Souza e Egídio Squeff (Póvoas, 2002, p.20). Alguns deles com simpatias ou militância pelo comunismo.

Interessado em cinema desde a infância, quando chegava a improvisar projetores e filmes desenhados quadro a quadro, Scliar passou a realizar experiências em fotografia. Uma série de fotos sobre os grupos de ciganos e marginais que frequentavam o Parque da Redenção em Porto Alegre despertou o interesse do então secretário de redação do jornal

Folha da Tarde. Josino Campos teve contato com as fotos numa de suas visitas à casa da

família Scliar em 1943. Gostou tanto do trabalho do jovem Salomão que publicou o material no jornal da Companhia Jornalística Caldas Júnior. Era o segundo dos filhos de Henrique Scliar a colaborar para aquela empresa. Carlos Scliar, além de pintor, era desenhista do

Correio do Povo (Póvoas, 2002, p.20-21).

34 É importante observar que, talvez, Salomão Scliar estivesse compilando nessas recordações manifestações positivas obtidas por seu filme em momentos diferentes. Até porque sabemos que Glauber Rocha somente ganharia projeção nacional cerca de dez anos após a primeira exibição de Vento norte.

Logo após a ida de Carlos para o Rio de Janeiro, Salomão lhe seguiu os passos. Na então capital federal travou contato com Ruy Santos, cinegrafista do Cine jornal brasileiro, editado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo varguista. Esse contato valeu um convite para integrar a redação da revista Diretrizes, voltada para o mundo político-intelectual. Ali conheceu o cineasta José Carlos Burle, integrante do primeiro corpo diretivo da recém-fundada Atlântida Cinematográfica, que seria a maior referência na produção das pejorativamente denominadas chanchadas. Naquela empresa Salomão Scliar seria uma espécie de “faz tudo”, indo da limpeza do chão do estúdio até a assistência de direção, algo comum àquele tempo em que as funções atribuídas aos trabalhadores do cinema eram pouco definidas.

As preocupações sociais presentes nos primeiros filmes da Atlântida, dirigidos por José Carlos Burle e Moacyr Fenelon35 possivelmente consoaram com a visão do jovem fotógrafo dos grupos marginalizados de Porto Alegre, que de um modo ou outro teve participação naquelas produções (Póvoas, 2002, p.21-25). Além de uma aproximação por gosto de temas abordados, deve-se levar em consideração, nessa passagem pela Atlântida, o contato de Salomão Scliar com profissionais como o fotógrafo Edgar Brasil, diretor de fotografia consagrado pelo trabalho que realizou em 1931 para a feitura do filme Limite, de Mario Peixoto, e por sua longa atuação nos estúdios da Cinédia e da própria Atlântida (Silva Neto, 2010, p.38).

Após essa primeira passagem por um estúdio de cinema, Salomão Scliar aprofundaria sua vinculação como fotógrafo profissional de imprensa. Como free lance, trabalhou para a Revista Rio, editada por Roberto Marinho e que tinha Fernando de Barros na chefia de redação. Pouco tempo depois Fernando de Barros seguiria carreira como diretor de cinema e daria importante oportunidade a Salomão Scliar. Nesse meio tempo, Salomão Scliar iniciaria uma frutífera colaboração como fotógrafo da revista O Cruzeiro, ligada ao braço carioca dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, e como fotógrafo da Revista do Globo, editada em Porto Alegre pela família Bertaso.

Em 1944 Salomão Scliar estreou a direção cinematográfica com o curta-metragem

Homens do mar (Enterro do pescador), definido pelo próprio cineasta como uma “reportagem

cinematográfica” sobre as precárias condições de vida dos pescadores de Capão da Canoa, no

35 Refiro-me a Moleque tião (1943), de José Carlos Burle, É proibido sonhar (1943), de Moacyr Fenelon e Tristezas não pagam dívidas (1944) de José Carlos Burle e Ruy Costa.

litoral do Rio Grande do Sul. Dessa experiência resultaria a ideia que anos depois serviria ao argumento de seu primeiro longa-metragem, Vento norte (Póvoas, 2002, p.25-26).

Provavelmente como fotógrafo de cena, o chamado still, Salomão Scliar iniciou durante as filmagens de O cavalo 13, de Luiz de Barros (1948), uma relação profissional com o fotógrafo húngaro George Fanto, que tinha experiência de trabalho com Orson Welles e em produções brasileiras. Logo a seguir, passagens de Scliar foram registradas nas equipes de cinegrafia de mais dois filmes. Primeiro em Inocência, também de Luiz de Barros e lançado em 1949. Filme que contou também com a participação de George Fanto e Ruy Santos nas funções de fotografia. Já em Inconfidência ou morte, de Carmen Santos, Scliar participou da fase final. Assim fez conjunto com mais de uma dezena de profissionais que se responsabilizaram pela fotografia do filme em cerca de dez anos de atribulada realização, até que fosse lançado em 1948.

Ainda em 1948, Scliar voltou para o seu estado natal para trabalhar em um novo filme. Com produção carioca e direção de Fernando de Barros – com quem Salomão trabalhara na redação da Revista do Rio –, Caminhos do sul foi rodado em Uruguaiana e lançado no ano seguinte. Nesse filme, Scliar foi responsável pelo still, além de retomar a sua parceria com George Fanto e auxiliar Hélio Barrozo Netto na equipe de cinegrafistas (Póvoas, 2002, p.31- 35).

Trazendo toda essa experiência acumulada na fotografia de produções cariocas e na realização de seu curta-metragem sobre os pescadores gaúchos, Salomão Scliar fundou a Horizonte Filmes. Empresa que se propunha a construir um estúdio em terras de sua família localizadas em Viamão, município contíguo a Porto Alegre (Pfeil, 1995, p.27). O pesquisador Glênio Póvoas recuperou uma carta encaminhada ao crítico de cinema Pedro Lima, publicada em A Cena Muda. Nessa correspondência, Salomão Scliar apresentou as pretensões da Horizonte Filmes.

O objetivo principal inicialmente proposto para a empresa era a realização de cinco filmes num prazo de dois anos. Pensava-se realizá-los com o maquinário Gaumont-Kalee que estava sendo adquirido junto ao fabricante inglês J. Arthur Rank. Além disso, Scliar afirmava a importância da aproximação dos produtores de cinema com a imprensa no que tange a divulgação de seus assuntos. E também se referia ao quanto essa aproximação contribuía para a aprimoração técnica e artística das produções.

Num primeiro momento, a Horizonte Filmes chegou a atrair a atenção de figuras renomadas no universo do cinema brasileiro. Alex Viany, crítico de cinema com longa atuação chegou a recusar um convite para trabalhar em São Paulo na Cia. Vera Cruz em benefício da Horizonte. Possivelmente aproximações políticas tenham feito Alex Viany pender para o lado de Salomão Scliar. Viany era vinculado ao Partido Comunista Brasileiro. E a Horizonte chegou a filmar o congresso de escritores ligados ao PCB, que pode ter apoiado financeiramente (Póvoas, 2002, p.49). Mas após algumas vindas do crítico a Porto Alegre, as péssimas condições financeiras da Horizonte Filmes acabaram por frustrar as expectativas iniciais (Póvoas, 2002, p.40-41) 36.

Mesmo antes dessa fracassada “aquisição”, algumas das intenções iniciais da diretoria da Horizonte não prosperaram. Na mesma correspondência citada, Scliar, que tocava o projeto da empresa a partir de uma herança recebida de sua mãe, apresentava como seu sócio o ator Alberto Ruschel. Quando a produtora efetivamente entrou em operação, o nome de Ruschel já não constava de seus trabalhos. Surgiram, então, os nomes de dois sócios: o empresário, jornalista e político udenista Adel Carvalho e o proprietário do Jornal do Comércio, Jenor Jarros, um aficionado pelo cinema. Além disso, os quatro argumentos iniciais aventados pela empresa não foram filmados. E os estúdios planejados para construção em Viamão não passaram dos alicerces do primeiro prédio. Vento norte surgiu, então, como uma “mudança de ação”, concentrando as atividades da Horizonte num filme que poderia ser rodado plenamente em exteriores (Póvoas, 2002, p.36-39 e 48-49).

Glênio Póvoas identificou em suas pesquisas o trabalho de aproximação da Horizonte filmes com a imprensa. Um noticioso com as atividades da companhia era produzido e disponibilizado às redações, algo que seguia ao que vinha sendo feito nos estúdios paulistas, especialmente com o departamento de publicidade da Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Póvoas garimpou notícias provenientes da Horizonte Filmes na imprensa porto alegrense, na revistas fluminenses A Cena Muda, Carioca e O Cruzeiro e na mineira Alterosa. Além disso, em formato de anúncios da Horizonte, Salomão Scliar publicou no Correio do Povo uma série de oito textos sobre as especificidades da produção cinematográfica (Póvoas, 2002, p.37-38 e Galvão, 1981).

Além dessa produção de press releases, é importante observar que a “simpatia” da imprensa especializada sobre os intentos da Horizonte Filmes era evidente. Essa simpatia se

36 Na sequencia, Alex Viany dirigiria Agulha no palheiro (1953) e Rua sem sol (1954), dois filmes fortemente influenciados por temáticas realistas (Miranda, 1990, p.353-354).

concentrada especialmente na figura do jornalista Paulo Fontoura Gastal, crítico de cinema que comandava no Correio do Povo e na Folha da Tarde as páginas onde se faziam as coberturas das artes e espetáculos. Figura emblemática, P.F. Gastal, conforme já vimos, foi um dos fundadores do Clube de Cinema de Porto Alegre e, conforme veremos, um dos principais promotores do Festival de Gramado. Sempre que pôde, Gastal incentivou nas páginas que editava nos jornais da Cia. Caldas Júnior o desenvolvimento da produção cinematográfica local. Inclusive procurando disponibilizar a estrutura física da empresa onde trabalhava.

Quando Alex Viany veio a Porto Alegre para trabalhar na Horizonte Filmes, a sua recepção pela equipe da empresa e pelo Clube de Cinema de Porto Alegre recebeu cobertura do Correio do Povo. Em março de 1950, ao palestrar em Porto Alegre num desdobramento da empolgação pela possibilidade de uma cinematografia rio-grandense, o cineasta Alberto Cavalcanti pronunciou sua fala no auditório daquele jornal a convite do Clube de Cinema. Entidade que também promoveu a primeira exibição de Vento norte para a imprensa (Póvoas, 2002, p.40-41, 45-46, 48 e 55).

Tuio Becker associou a temática de Vento norte ao neorealismo italiano, aos filmes de origem praieira, a influência de Sergei Eisenstein e aos seus seguidores mexicanos. E assim como se pôde verificar em O vento, de Victor Sjöstrom (1928), Vento norte apontou a utilização da natureza não como ilustração cenográfica, mas como força dramática da estrutura narrativa (Becker, 1986, p.103-106).

Contudo, mesmo que plasticamente bem acabado e tendo o apoio da imprensa de Porto Alegre, o filme não obteve êxito em bilheteria. Talvez em virtude de sua ingenuidade interpretativa e de um roteiro frouxamente amarrado, a despeito do argumento que apresentava o drama coletivo dos pescadores de uma colônia em Torres (RS) pela escassez de peixe em decorrência do vento norte. Malefício sempre contraposto à tragédia iminente que ennvolvia o “quadrilátero amoroso” vivido pelos protagonistas.

Absorvendo o fracasso econômico de Vento norte e a “indiferença dos produtores locais”, Salomão Scliar retornou ao Rio e mais tarde seguiu para São Paulo37. A despeito de alguns curtas e documentários, sua atividade se concentrou na fotografia (Póvoas, 2002, p.39; Miranda, 1990, p.312-313).

A constituição das redes de relação por ofício até aqui observadas tem um caráter que transita entre o exógeno e o endógeno. O primeiro desses aspectos é a busca de legitimação e apoio num meio não ligado diretamente à produção do filme, através da publicação de informações, comentários e críticas nas páginas dos periódicos e das revistas especializadas. Do ponto de vista endógeno, procura-se receber dos colegas de profissão uma espécie de reconhecimento que valide a entrada naquele meio. E Salomão Scliar soube operar nessas duas pontas. Sua experiência profissional e o convívio com os jornalistas se constituíram numa espécie de garantia de que obteria a atenção da imprensa para a sua atividade como produtor e diretor cinematográfico.

Dentro do próprio meio profissional, não bastava apenas o reconhecimento local, até porque a ausência de um efetivo campo de produção cinematográfica no Rio Grande do Sul o incitava a procurar o necessário reconhecimento nas esferas onde a produção estava consolidada ou se encaminhava para esse estágio. Isso explica porque mesmo antes de projetar Vento norte para a imprensa de Porto Alegre, Salomão Scliar, promoveu sessões para a apresentação de seu filme no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Rio, após a sua montagem e sonorização, a fita foi exibida junto ao Círculo de Estudos Cinematográficos, que era liderado por Alex Viany. Dias depois, em sessão no Museu de Arte de São Paulo (MASP),

Vento norte foi assistido pela critica, por artistas, técnicos e diretores vinculados às

companhias cinematográficas Vera Cruz e Maristela (Póvoas, 2002, p.54-55). Conforme veremos no capítulo seguinte, esses aspectos exógenos e endógenos perderão em parte a sua dicotomia, pois para além de relações entre cineastas e jornalistas o que se verificará em muitos casos será a divisão profissional dos agentes entre a imprensa e o cinema.