• Nenhum resultado encontrado

Verdes anos e a produção profissionalizada

No documento O campo cinematográfico no Rio Grande do Sul (páginas 164-170)

Festivais, diversificação temática e trabalho coletivo: a formação do campo

3.6 Verdes anos e a produção profissionalizada

A produção de longas e médias em bitola amadora ficaria para trás com o lançamento em 1984 do primeiro longa-metragem profissional realizado por alguns daqueles cineastas:

Verdes anos foi um filme para o qual foram contratados para fazer e do qual ninguém daquele

grupo gostaria muito (Schunemann, 1989, p.9). Diferentemente da espontaneidade de Deu pra

ti, anos 70 e dos filmes que o seguiram, Verdes anos surgiu de uma planificação empresarial,

modelo que seria característica a partir de então. Além da perda de um certo romantismo, do ponto de vista econômico também havia uma mudança nos resultados econômicos. A renda das exibições de um filme em super-8mm podia garantir a maior parte do dinheiro necessário à sobrevivência cotidiana dos cineastas, mesmo que isso não implicasse em “ganhar dinheiro” num sentido de enriquecimemto. Quando ocorreu a entrada na bitola profissional, foi retirada desses realizadores o controle sobre a renda dos filmes, que ficavam em boa parte com os distribuidores e os exibidores (Reis, 2005, p.112 e 115).

Verdes anos foi produzido pela empresa Z, fundada em 1980 para atuar na área de

publicidade. Organizada a partir da Teoria Z de administração cooperativada e descentralizada56, que dividia a empresa em quatro setores (Mercado, Arte e Divulgação, Administração e Produção Cinematográfica), a Z se propunha a ir além do que era comum, ou seja, a realização de uma experiência cinematográfica. A intenção era manter uma sequência de produção de modo estruturado.

Em 1982, a Z partiu para as realizações cinematográficas, tendo a frente o produtor Sérgio Lerrer. Alguns anos depois, à pedido de Lerrer, Luiz César Cozatti, escreveu um prefácio à publicação do roteiro do filme Me beija. O pedido não era para comentar o roteiro, mas, nas palavras de Cozatti, “o movimento do qual o filme e o roteiro são reflexo”. Cozatti definiu Lerrer como “o big-boss da Z Produtora”, “com aquele seu jeito de David Selznick em início de carreira”. Selznick era o diretor da 20th Century-Fox nos chamados anos dourados de Hollywood. Na cidade de Porto Alegre do início dos anos 80, Cozatti acreditava que Lerrer seria “o cérebro planejador que faltava”, capaz de modular as necessidades do mercado “com as necessidades de expressão de nossos jovens e entusiasmados talentos” (Cozatti, 1983).

56 Alguns dos preceitos dessa teoria de administração envolvem a ideia de manutenção do emprego a longo

prazo, a avaliação de desempenho e as trajetórias de carreira desenvolvidas com a atuação do trabalhador em diversas funções. Parâmetros pontuados por escolhas definidas coletivamente a partir de valores pré- estabelecidos. Teoria de origem japonesa, viveu seu auge na década de 1980, e foi contestada pelo que alimentaria de ilusão sobre a integração entre os funcionários das empresas que a adotassem (Garcia, 1984, p.67- 71).

A ideia dos administradores da Z era tentar incluir a produção de longas rio- grandenses em âmbito nacional, o que teve início com o filme Verdes anos (1984), que envolveu boa parte da equipe de Deu pra ti anos 70:

Assim, antes de lançar-se à produção, a empresa fez uma pesquisa de mercado a fim de definir o assunto e o público a se atingir com a primeira fita. A pesquisa verificou que a faixa etária carente de produção cinematográfica situava-se entre os 18 e os 32 anos de idade, e que este público compunha 75% da freqüência dos cinemas do Brasil (Rossini, 1996, p. 40).

Para atingir seus objetivos, a Z Produtora se propunha a intercambiar relações com profissionais de outros estados, ocupar espaço no mercado nacional e desenvolver uma estrutura que permitisse a realização de filmes em escala contínua. Além disso, entendia-se que a produtora representava uma autonomia e uma qualidade almejada pelo público e pelos profissionais de cinema no Rio Grande do Sul. Para valorizar essa assertiva, contrapunha-se o momento anterior:

Por muito tempo, o que o Rio Grande colocou além de suas fronteiras, foram filmes que levavam a marca do grotesco e do rançoso, onde a expressão máxima ficava por conta de Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha. Para uma grande parcela das pessoas, ele era o representante da arte cênica do Estado, pois seus filmes, todos de um mau gosto tremendo, eram largamente consumidos. Os tempos passaram e as mudanças ocorreram [grifo meu] (Carrion, 1987, p.359-360).

Em Verdes Anos, mais uma vez, a busca pela identificação com o modo de ser da juventude local se fez presente, desta vez com uma pretendida profissionalização do discurso, que não se absteve dos instrumentos de marketing necessários: pesquisa, publicações afins ao lançamento do filme (como o roteiro de produção), e a presença dos atores em sessões de lançamento (artifício já utilizado por Teixeirinha).

Ao estrear em 24 de maio de 1984 em Porto Alegre (fora rodado entre agosto e setembro do ano anterior em Porto Alegre e são Leopoldo), Verdes anos já ostentava o título de revelação do Festival de Gramado. Quatro meses depois, o filme já contava com 150 mil espectadores no Estado, sendo 80 mil só em Porto Alegre, e estreava em Curitiba e no Rio de Janeiro (RVJ, 3/10/1984).

Mesmo que tenha sido baseado em um conto de Luiz Fernando Emediato, o filme assemelha-se com a estrutura fragmentária de Deu pra ti, anos 70. Em três dias na vida de um grupo de estudantes ambientados no interior do Rio Grande do Sul em 1972, conhecemos Nando e sua volúvel namorada Soninha, contraposta pela simples Cândida; o baile de escolha da rainha da escola, comandado por Robertão; o interesse de Teco por Rita; o jornaleco de fofocas de Dudu; a paixão do goleiro do time da turma, Pedro, pela professora; a feminista que escolhe com quem perderá a virgindade. Mais uma vez um turbilhão de situações e relações (namoros, festas, jogos de futebol, amizades) denotam a transição à vida adulta e a confirmação de uma identidade.

A cobertura da crítica demonstrou uma acolhida positiva e simpática, mesmo quando chegou a pontuar objeções pelas simplificações do roteiro. Em nenhum momento se repetiu a implacabilidade da crítica conforme verificada em relação aos filmes de Teixeirinha. Ainda que Verdes Anos tenha caricaturado muitos de seus personagens, e que o tratamento cinematográfico escorregasse, por vezes, em problemas técnicos e de estrutura narrativa, esses componentes foram amenizados pelas análises dos jornalistas, até porque a “garotada” que chegava às telas estava muito mais próxima da intelectualidade do que a os tipos que compunham os filmes do cantor regionalista (FT, 10/4/1984; ZH, 22/5/1984; ZH, 22/5/1984). Mais uma vez, a busca pela identificação com o modo de ser da juventude local se faz presente, desta vez com uma pretendida profissionalização do discurso, que não se abstém dos instrumentos de marketing necessários: pesquisa, publicações afins ao lançamento do filme (como o roteiro de produção), e a presença dos atores em sessões de lançamento (artifício já utilizado por Teixeirinha).

De resto, já se denota a relação de pouco entendimento da periferia com o centro, que tomaria relevo na discuções políticas que logo se institucionalizariam com a criação da APTC. Isso porque, ao mesmo tempo em que o filme buscava espaço no mercado nacional, seus produtores destacam a não reivindicação de financiamento estatal, apostando no modelo proposto à produção (RVJ, 3/10/1984). Nos anos seguintes, o discurso se alteraria, e os pleitos pelo financiamento estatal se faria presente nas produções sulinas.

Após o lançamento de Verdes Anos em 1984, a Z Produtora apresentaria ainda os longas Me Beija, de Werner Schunemann, ainda em 1984, e Aqueles Dois (1985), de Sérgio Aman. Filmes que procuraram, mas não lograram repetir ao menos o relativo sucesso comercial de Verdes Anos, esbarrando em sérias dificuldades de distribuição e na precariedade de suas realizações, ainda que tenham obtido boa recepção junto à crítica.

Mesmo internamente, eram suscitadas reclamações quanto ao que seria a credibilidade dos projetos frente ao mercado.

O último filme deste período, O Mentiroso (1988, de Werner Schunemann) foi produzido por outra empresa de profícua atuação: a M. Schmiedt Produções. O filme por si tem um caráter emblemático para a compreensão do período, pois denota todo o desejo de inserção mais ampla no contexto cinematográfico brasileiro e a constatação do quanto isso era complexo, e penoso, em sua efetivação.

Selecionado em fins de 1985 pela Embrafilme para principiar seu projeto (logo abortado) de incentivo ao cinema rio-grandense, o filme de Werner Schunemann teve 54% de seus custos cobertos pela estatal e o restante de seu orçamento captado junto à iniciativa privada através da Lei Federal n. 7.505. Suas filmagens principiaram em setembro de 1986 em Santa Catarina e arrastaram-se, junto com a pós-produção, por mais de dois anos. A boa recepção junto à crítica e o lançamento no Rio de Janeiro não contribuíram para o sucesso comercial do filme em âmbito nacional. Exibido por suas semanas em Porto Alegre em março de 1989, obteve uma bilheteria de 20 mil espectadores (Carrilo, 2006, p.102). Em crítica publicada pela revista Cinemin, o crítico Ricardo Cota sintetiza a surpresa que o filme causou por sua irreverência:

O Mentiroso foi a maior surpresa do cinema brasileiro em 1988. Depois de ser escandalosamente rejeitado no Festival de Gramado, o filme explodiu no Rio-Cine e no Festival de Brasília. Demonstrando um talento surpreendente para a comédia, o diretor Werner Schunemann, que estreou em 35 mm com o longa-metragem Me beija, narra as travessuras de um grupo de jovens, liderados pelo mentiroso Jonas, que se envolve numa interminável aventura automobilística pelas estradas do sul do país. Dosando o humor escrachado com pitadas de romance e aventura, Schunemann realiza o que muito bem definiu o cineasta Guilherme de Almeida Praso: um Easy Rider dirigido pelo Jerry Lewis (RCN, dez. 1988).

Observando o filme, percebemos como essa reivindicação passava pelas concessões à padrões compreendidos como universais para que a obra fosse aceita, ou seja, o que o cineasta apresenta como desejo de conquistar espaço para a sua identidade exigia, antes de mais nada, ser inserido pelo grupo oposto. O enredo funciona como metáfora dessa pretensão e, paradoxalmente, denota o reconhecimento de um inexorável fracasso, mesmo que não consciente por parte de seus escritores.

A primeira imagem que o filme apresenta é a de um navio que sai de Porto Alegre, cruzando o vão móvel da ponte sobre o Guaíba, transmitindo ao espectador a intenção de conquistar novos espaços. A seguir são apresentados em situações episódicas os quatro protagonistas, todos envolvidos com seus fracassos pessoais: Jonas, o mentiroso, que vive de pequenos serviços, às vezes com expedientes não muito “honestos”, sempre aumentando suas reais possibilidades e qualidades profissionais, financeiras e amorosas, delirando com o sucesso. Kátia, a dona do apartamento vendedora em loja de roupas íntimas, vive frustrada. Amiga de Jonas, Kátia faz a mediação entre este e o casal Wílson e Ana. Ele carioca e jornalista, que amarga o sonho não realizado de seguir carreira em São Paulo, ela insatisfeita com a letargia do marido. O convite para Ana realizar um curso em Santa Catarina surge como a possibilidade do casal se acertar durante a viagem. No contrapeso, os amigos que os acompanham. Ao longo da viagem, o conflito entre Wílson e o mentiroso Jonas se acirra, o primeiro representando o modelo tradicional de busca pelo espaço, enquanto o mentiroso procura infiltrar-se sempre, mesmo que tenha de romper com a ordem estabelecida, como no momento em que desacata o corrupto policial rodoviário, dando início aos percalços que impedem a realização do objetivo da viagem.

Neste ponto o roteiro deixa claro que os protagonistas dão-se mais importância que a realidade lhes oferece, pois não imaginam que a sua fuga ao policial tenha sido desprezada, acreditando-se alvo de grande perseguição. O medo de enfrentar os pretensos obstáculos os leva a percorrer caminhos secundários. As amplas paisagens interioranas (que, diga-se, por vezes evocam o pampa gaúcho) contrastam com os cenários modernosos do princípio do filme, a ponto de uma das personagens lastimar: “se é pra viajar pelo interior eu preferia ter ficado em casa”.

Alguns aspectos ainda chamam a atenção: a utilização da comédia burlesca como um componente de identificação universal, assim compreensível por qualquer platéia; a utilização de alguns atores reconhecidos nacionalmente, notoriamente a fim de contrabalançar o “gauchismo” do filme; e a decadência do sonho, representada pela troca das cores do automóvel que os protagonistas utilizam ao longo do trajeto: branco ao saírem de Porto Alegre, multicolor quando da fuga, mas ainda sob a perspectiva de alcançar Florianópolis, e preto quando do desespero final pela certeza da não efetivação do objetivo.

O último quarto do filme é dedicado a uma solução que salve os protagonistas de um completo fracasso em suas ações. O tom de farsa policialesca se impõe. Os protagonistas descobrem por acaso um crime de “grilagem” de terras envolvendo um potentado local

(caracterizado num meio termo entre um estancieiro, um gângster e um gigiolô) e resolvem chantageá-lo. Na escapada final, ao desafiarem um poder maior, são realmente perseguidos pela polícia: Wílson (o elo com o centro do país) morre com um tiro; os três remanescentes explodem o carro e dispersam-se, simbolizando o fim definitivo do sonho.

Ao fim da já citada entrevista do diretor à Cinemin, em que o desejo de um espaço nacional à cinematografia rio-grandense era anunciado, a última cena do filme é discutida:

CINEMIN – O que sentem as duas personagens femininas, quando, no final do filme, [Jonas] o mentiroso diz, ao policial que as prende, que não as conhece?

WERNER SCHUNEMANN – Alívio. Se ele disser que conhece, vai preso também, e não vai servir para nada. Tem um momento em que não existe heroísmo, não se morre pelas causas, se vive pelas causas. Isso é mais revolucionário (Schunemann, 1989, p. 9).

Tal afirmação pode ser tratada como uma metáfora da situação vivenciada no período. O forçado abandono da produção de longas com o fracasso da veiculação nacional do filme foi um dos motivos que levaram os cineastas rio-grandenses a buscarem alternativas para que a produção fosse mantida, centrando a sua produção no experimentalismo dos curtas- metragens, que geraram inúmeros prêmios em festivais, prestígio junto à crítica, mas limitado reconhecimento (e mesmo conhecimento) por parte do público alheio a esses espaços. Tal “refúgio”, adensado pela crise atravessada pelo cinema brasileiro no final dos anos oitenta, duraria quase uma década, e em muito pode ser historiado através da trajetória de uma produtora.

No documento O campo cinematográfico no Rio Grande do Sul (páginas 164-170)