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O Direito, como ciência dinâmica, acompanha as mudanças na sociedade e o sistema de precedentes, por sua vez, assim também o faz. Desta forma, para que os Tribunais não mantivessem orientações desatualizadas ou incongruentes com o cenário contemporâneo foram desenvolvidos mecanismos de superação de entendimentos passados.132

Adiante serão estudadas duas técnicas de superação dos precedentes: o overriding e o

overruling. 4.1.1 Overriding

129 CAMBI, Eduardo; HELLMANN, Renê Francisco. Jurisprudência: a independência do juiz ante os

precedentes judiciais como obstáculo a igualdade e a segurança jurídica. Revista do Processo, v. 39, n. 231, p. 321-345, maio 2014. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

130 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2004.

131 ALVES, Marília Brezzan Rodrigues. O papel do distinguish na argumentação/fundamentação de pedidos e

decisões judiciais. Revista de Direito Tributário Contemporâneo, v. 18, p. 17-33, maio/jun.. 2019. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

132 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. E-book. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

O overriding, que é uma forma de revogação parcial do precedente, não trata de superação da ratio decidendi e tampouco da construção de uma nova para substituí-la. É um entendimento novo que não tem por objeto a exata questão de direito do núcleo do precedente, mas o influencia, uma vez que diminui as hipóteses fáticas em que poderá ser utilizado.133

Importante destacar que a competência para superação do precedente é atribuída àquele responsável por sua formação, pois somente este poderá dele se afastar legitimamente. Sendo assim, apenas o colendo Supremo Tribunal Federal pode se afastar de seus precedentes constitucionais, e o colendo Superior Tribunal de Justiça de seus precedentes federais. Não cabe às Cortes de Justiça e aos Juízos de Primeiro grau essa decisão, ainda que não concordem com a solução adotada no precedente.134

Ainda sobre o entendimento do conceito de overriding, Marinoni destaca:

O overriding apenas limita ou restringe a incidência do precedente, aproximando-se, neste sentido, de uma revogação parcial. Mas no overriding não há propriamente revogação, nem mesmo parcial, do precedente, embora o resultado da decisão com ele tomada não seja compatível com a totalidade do precedente. Mediante este expediente, a Corte deixa de adotar precedente em princípio aplicável, liberando-se da sua incidência. Assim, a sua aproximação é maior em relação ao distinguishing.

135

Oportuno destacar que as técnicas de distinguishing e de overriding se aproximam, não se equivalem. Enquanto na primeira uma questão de fato impede a incidência da norma, na segunda é uma questão de direito, ou seja, um novo posicionamento que restringe o suporte fático. No distinguishing são os fatos do caso em análise que afastam a aplicação do precedente paradigma, por não terem sido considerados quando da sua formação, ao passo que no overriding, o afastamento provém de um novo entendimento, ou seja, de um elemento externo à regulação jurídica discutida.136

Assim sendo, o que existe é uma nova situação e um novo entendimento dos tribunais, capaz de impedir que uma hipótese substancialmente idêntica seja tratada da mesma forma. A

133 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito

processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13.

ed. Salvador: Juspodivm, 2018. v. 2.

134 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. E-book. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

135 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p.

243.

136 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito

processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13.

distinção realizada é consistente com as razões que geraram o precedente, ou seja, diante de nova situação e novo entendimento justifica-se o tratamento diferenciado. É esta consistência que impede a revogação do precedente. As mesmas razões estão a dar fundamento ao precedente e ao tratamento diferenciado.137

A seguir será tratado a respeito do overruling.

4.1.2 Overruling

O Direito é dinâmico e como tal acompanha as mudanças da sociedade, sendo que da mesma forma deve ocorrer com os precedentes judiciais, que caminham com o Direito em seu processo de evolução. Surge, então, a necessidade de conjugar, de um lado, a necessidade de mudança no Direito e, de outro, a proteção ao planejamento jurídico estruturado com base no conhecimento de determinado precedente.138

Mesmo no common law os juízes podem se utilizar de técnicas interpretativas e de argumentação, dentre as quais o overruling e o distinguishing e, desta forma, deixar de aplicar o precedente paradigma para a resolução da situação concreta em análise.139 O overruling, técnica de revogação total do precedente, prevê o afastamento de uma regra estabelecida anteriormente. Ocorre quando um tribunal que adotava um precedente estabelecido anteriormente para a resolução de uma controvérsia jurídica passa a recorrer a novos fundamentos que conduzem a resultado diverso. Desta forma, é estabelecida uma nova regra jurídica que orientará situações semelhantes ou idênticas.140

O próprio tribunal que firmou o precedente pode modificá-lo em julgamento futuro, de duas formas: a expressa, quando o tribunal declara adotar uma nova orientação, afastando-se da anterior, e a tácita ou implícita, caracterizada pela adoção de tese em confronto com posição anterior, embora sem expressa substituição pela última.141

137 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. 138 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. E-book. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

139 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, v. 199, p. 139, set.. 2011. Acesso

restrito via Revista dos Tribunais.

140 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2020. E-book. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

141 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito

processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13.

O overruling tácito não é aceito no ordenamento brasileiro, uma vez que, de acordo com o art. 927, §4 CPC142, para a revogação de sua orientação o tribunal necessita obedecer alguns parâmetros como: fundamentação adequada e específica (ônus argumentativo), considerando-se os princípios da segurança jurídica, proteção da confiança e isonomia.143 Um precedente poderá ser revogado quando deixar de atender aos padrões de congruência social e consistência sistêmica, assim como quando tiver os valores da isonomia, da confiança justificada e da vedação da surpresa injusta ameaçados. Dessa maneira, não apresentará condições de preservar a estabilidade necessária ao sistema jurídico.144

A congruência social é afastada a partir do momento em que há uma incompatibilidade entre o entendimento exposto no precedente, e a mudança do contexto fático da sociedade. Já a congruência sistêmica, que é a relação entre determinado entendimento e o ordenamento jurídico como um todo, fica abalada quando a concepção contemporânea do direito não é mais capaz de sustentar o precedente a ser superado. Essa percepção foi evidenciada no Enunciado nº 322 do FPPC145, ao ressaltar que a superação de precedentes pode fundar-se, dentre outros motivos, em “[ ] alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida” 146

As alterações nos valores sociais ou no modo de compreensão de princípios jurídicos, que serviram de base à criação de dado precedente, podem levar à sua superação. Revogar um precedente judicial nem sempre significa que a decisão anterior adotada pelo tribunal foi equivocada, pois a superação pode ter ocorrido devido à necessidade de atualizar o entendimento pelas mudanças sociais e tecnológicas supervenientes.147

De acordo com Tucci, embora, em princípio, o precedente deva ser considerado no julgamento futuro de situações análogas, há exceção por meio da superação do precedente que pode ser:

142 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da

República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 jun. 2020.

143 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio

Quinaud. Novo CPC fundamentos e sistematização. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

144 EISENBERG, 1998 apud MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2019.

145 Enunciado 322 FPPC (art. 927, § 4º): a modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros

motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida). (VILLAR, 2015)

146 PEIXOTO, Ravi. A superação de precedentes (overruling) no Código de Processo Civil de 2015. Revista de

Processo Comparado, v. 3, p. 121-157, jan./jun. 2016. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

147 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. São Paulo: Revista dos

a) retrospective overruling: quando a revogação opera efeito „ex tunc’, não permitindo que a anterior decisão, então substituída, seja invocada como paradigma em casos pretéritos, que aguardam julgamento.

b) prospective overruling: precedente é revogado com eficácia „ex nunc’, isto é, somente em relação aos casos sucessivos, significando que a ratio decidendi substituída continua a valer como precedente vinculante aos fatos anteriormente ocorridos.

c) antecipatory overruling: consiste na revogação preventiva do precedente, pelas cortes inferiores, ao fundamento de que não mais constitui „good law’, como já teria sido reconhecido pelo próprio tribunal ad quem.148

A fundamentação da superação antecipada ou antecipatory overruling não está relacionada exatamente com uma anterior revogação do precedente pela Corte superior, mas sim no sentido de que ainda é supostamente válido. No entanto, tende a ser modificado e que, por isso, não deve mais ser aplicado por não estar em consonância com o entendimento do tribunal superior.149

Sendo assim, a utilização da técnica de antecipação da superação é um juízo que prenuncia a potencial alteração do precedente. Em síntese, duas serão as situações em que os juízes e tribunais poderão antecipar a superação do precedente, buscando novo entendimento: (i) quando o tribunal competente para superar o precedente já vem decidindo de forma diferente do estabelecido neste; (ii) o tribunal que editou o precedente dá sinais de que vai superá-lo por sua inadequação atual (sinaling).150

Deve-se ressaltar que a antecipatory overruling não pode ser identificada, com a não aplicação do precedente pela mera discordância quanto ao mérito. Assim, aplicável o precedente, e não sendo a hipótese de superação antecipada, tratar-se-á de decisão em “error

in judicando ou in procedendo”151152

Conforme mencionado, o Tribunal Superior comunica a antecipatory overruling por meio da técnica de Signaling. É o mecanismo de superação do precedente pelo qual o julgador, atento às mudanças na realidade e valores sociais, assim como no contexto jurídico, sinaliza para a possibilidade de o precedente vir a ser alterado futuramente. Considera que as

148 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2004. p. 179-180.

149 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito

processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13.

ed. Salvador: Juspodivm, 2018. v. 2.

150 JOBIM, Marco Félix; DUARTE, Zulmar. Ultrapassando o precedente: antecipatory overruling. Revista de

Processo, v. 285, p. 341-362, nov. 2018. Acesso restrito via Revista dos Tribunais.

151 Error in judicando é a aplicação incorreta do direito material à situação concreta, enquanto o error in procedendo é um desvio em relação ao modelo processual previsto pela legislação. (TUCCI, 2018a) 152 MACÊDO, Lucas Buril de. O regime jurídico dos precedentes judiciais no projeto do novo Código de

bases nas quais foi editado, não se encontram tão rigidamente estabelecidas como antes. Há, assim, uma manifestação oficial acerca da redução da força vinculante do precedente.153

Marinoni ressalta a importância de comunicar que o precedente, cujo entendimento orientava a atividade dos jurisdicionados e a estratégia dos advogados, será revogado, evitando-se, assim, prejuízos na esfera jurídica daquele que atuou de acordo com a ordem estatal vigente. Dessa maneira, os litigantes, no caso concreto em que se faz a sinalização, não serão surpreendidos, em respeito à confiança na autoridade dos precedentes judiciais.154 Pela sinalização, o colendo Supremo Tribunal Federal e o colendo Superior Tribunal de Justiça não utilizam a distinção do caso decidido, e nem tampouco superam o precedente total ou parcialmente, apenas manifestam publicamente preocupação a respeito da adequação da solução nele contida.155

Desta forma, para a superação de um precedente judicial, o julgador deve ponderar entre a necessidade de estabilidade do ordenamento jurídico e a imposição de igualdade de tratamento para situações semelhantes. A utilização de diversas exceções inconsistentes, como alternativa para a manutenção do precedente originário, significa que a igualdade nos precedentes não está mais garantida. Assim, situações semelhantes recebem tratamento diferente, sendo necessária sua reforma para que a isonomia seja restabelecida.156

Descritas as técnicas de superação dos precedentes, a seguir será abordado o tema da alteração do precedente.

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