• Nenhum resultado encontrado

Para os fins do Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, no Art.2, considera-se pessoa surda:

[...] aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.

Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz (BRASIL, 2005).

Na literatura, a surdez pode ser concebida por duas vertentes: a patológica, ou clínico- terapêutica ou organicista, e a cultural, proveniente dos Estudos Surdos e/ou Estudos Culturais (GESSER, 2009; OLIVEIRA, 2011; SKLIAR; 1998). Pela perspectiva clínico-terapêutica, a surdez é compreendida como uma deficiência sensorial, devido à falta ou perda parcial/total da audição. Segundo Oliveira (2011), a surdez pode ser causada por fatores diversos: hereditariedade, infecções e doenças, desnutrição e outros. Ademais, os fatores podem ocorrer antes, durante ou após o nascimento:

Quadro 5. Possíveis causas da Surdez

CAUSAS PERIODO DE OCORRÊNCIA

Pré-natal Perinatal Pós-natal

Genéticas ▪ Anomalias genéticas; ▪ Erros inatos do metabolismo Infecciosas ▪ Rubéola ▪ Sífilis ▪ Citomegalovírus ▪ Aids

▪ Infecção hospitalar ▪ Meningite ▪ Sarampo ▪ Caxumba Mecânicas ▪ Quedas ▪ Traumatismos ▪ Tentaivas de aborto ▪ Partos prematuros ▪ Sangramentos e problemas placentários ▪ Traumas cranianos, musculares e ósseos ▪ Lesões nervosas ▪ Acidentes automobilísticos ▪ Traumatismos ▪ Quedas

Tóxicas ▪ Medicamentos ▪ Drogas legais ou não ▪ Medicamentos ▪ Medicamentos ototóxicos

▪ Oxigenoterapia não controlada Má Alimentação ▪ Desnutrição e anemia materna ▪ Desnutriçao ▪ Anemia ▪ Problemas metabólicos ▪ Desnutrição ▪ Anemia ▪ Problemas metabólicos Doenças ▪ Hipertensão ▪ Problemas cardíacos ▪ Diabetes ▪ Rh negativo ▪ Prematuridade ▪ Deficiência respiratória ▪ Icterícia Fonte: Oliveira (2011).

Sendo assim, quando os fatores causais ocorrem no período gestacional, o bebê já nasce surdo, portanto, a surdez é congênita. Se a ocorrência se dá após o nascimento, a surdez é adquirida (FAISTAUER, 2019). Considerando que unidade de medida sonora é o decibel (dB) e que pessoas sem perda de audição discriminam sons de até 20 dB, os graus de perda auditiva podem ser classificados da seguinte forma:

Quadro 6. Graus de Perda Auditiva

Leve 21-39dB

Moderada 40-70dB

Severa 71-90dB

Profunda Acima de 90dB

Fonte: Oliveira (2011).

Sob o enfoque patológico, o surdo é reconhecido como deficiente auditivo. Lopes (2011) relata que, por muito tempo, na história da surdez, houve a predominância desse enfoque sobre quaisquer outras tentativas de compreensão da surdez fora da ótica da patologia. Por meio da resistência do movimento surdo e da epistemologia provieniente de outras áreas do saber, especialmente da Antropologia, da Sociologia, dos Estudos Culturais e da Pedagogia, aos poucos começa-se a romper com a hegemonia do entendimento da surdez sob o olhar organicista e a fortalecer os discursos pelo reconhecimento da surdez como diferença, identidade e cultura.

Fernandes (2011) explica que, a partir de 1960, líderes surdos, embasados em estudos socio-antropológicos, organizaram movimentos de resistência surda no intuito de “[...] reverter discursos e práticas dominantes, recusando rótulos e estigmas de deficiência e incapacidade que relegam os sujeitos Surdos a uma perspectiva de inferioridade.” (FERNANDES, 2011, p. 55).

Na perspectiva da surdez como deficiência, a referência de normalização é o ouvinte: “[...] a criança ouvinte representa a criança normal, o referencial para se tentar compreender a criança surda, que passará a ser retratada, na maior parte do tempo, como alguém que está ‘a menos’ em relação ao modelo.” Assim, com vistas à resolução do ‘problema’ auditivo, a solução é centrada na reabilitação: “Deve-se tentar a cura do problema auditivo (implantes cocleares, próteses) e a correção dos defeitos da fala por meio da aprendizagem da língua oral.” (BISOL; SPERB, 2010, p. 8).

A perspectiva sociocultural apresenta uma nova forma de conceber a surdez. Nesse viés, surdo é o termo utilizado para designar uma pessoa com surdez. A mudança na nomenclatura não é só terminológica, mas também ideológica: a intenção é evidenciar a diferença e não a deficiência (FERNANDES, 2011; SÁ, 2006). Fernandes esclarece que “[...] as expressões deficiência e deficiente auditivo(a) são pejorativas e carregam o estereótipo da doença incurável, do déficit, da limitação.” (FERNANDES, 2011, p. 61).

O termo deficiente auditivo, segundo Moreira (2016, p. 746), é utilizado pela comunidade surda para caracterizar pessoas que têm perda auditiva e que não se reconhecem como surdos, “[...] não se identificam com a cultura e a comunidade surda.” Nesse sentido, para eles próprios, surdos são pessoas que não são deficientes e que utilizam língua de sinais para se comunicar.

Goldfeld (1997) explica que o conceito de deficiência é culturalmente formado, isto é, para uma criança surda, não ouvir é normal, tanto quanto ouvir é normal para uma criança ouvinte. A deficiência passa a ser instaurada e percebida a partir do momento em que se coloca como padrão o que é tido como normal pela maioria.

A luta contra a concepção da surdez como deficiência, na perspectiva da falta, e da visão do surdo como doente e sofredor, assim como, por conseguinte, a luta pela valorização das culturas, das diferenças e das identidades surdas são contempladas pelos Estudos Surdos, uma ramificação dos Estudos Culturais (SÁ, 2006). De acordo com Skliar (1998, p. 29),

Os Estudos Surdos em Educação podem ser pensados como um território de investigação educacional e de proposições políticas que, através de um conjunto de concepções linguísticas, culturais, comunitárias e de identidades, definem uma particular aproximação – e não uma apropriação – com o conhecimento e com os discursos sobre a surdez e sobre o mundo dos surdos.

Os Estudos Surdos no Brasil são oriundos dos chamados deaf studies – estudos realizados por pesquisadores de outros países, especialmente dos Estados Unidos - e concebem a surdez como diferença; são produzidos através do enfoque culturalista, tendo o sujeito surdo

como centro (LOPES, 2011). Comungando com os Estudos Surdos, a luta do movimento surdo e das comunidades surdas tem se efetivado na busca de evidenciar a questão da identidade linguística e cultural dos surdos e, ao mesmo tempo, secundarizar a questão da perda auditiva. De acordo com Sá (2006, p. 107), a cultura surda é constituída por “[...] pessoas que, pela impossibilidade de acesso natural à língua da comunidade majoritária, formam uma minoria diferente, com características linguísticas, cognitivas, culturais e comunitárias específicas.”

A cultura surda se difere da cultura ouvinte em muitos aspectos, por exemplo, ser fundamentada em uma experiência visual e não auditiva. Nesse contexto, a língua de sinais se estabelece como um traço identitário muito forte da cultura surda. Conforme a definição de Quadros (1997, p. 47),

As línguas de sinais são sistemas linguísticos que passaram de geração em geração de pessoas surdas. São línguas que não se derivaram das línguas orais, mas fluíram de uma necessidade natural de comunicação entre pessoas que não utilizam o canal auditivo-oral, mas o canal espaço-visual como modalidade linguística.

Percebe-se, então, que a língua de sinais não é fabricada, mas sim uma língua natural que se desenvolve no meio da comunidade surda. Sacks (2010) relata que, em meados do início do século XX, época em que se predominava o Oralismo e proibia-se ferozmente a língua de sinais, apesar dos castigos impostos a quem a utilizasse, as crianças surdas insistiam em comunicar-se por sinais na escola, ainda que de maneira escondida, e assim a língua era praticada e desenvolvida. A língua de sinais é uma língua viva e “[...] uma atividade em evolução, assim como o é a identidade.” (SÁ, 2006, p. 130).

As línguas de sinais, conforme afirma Sacks (2010, p. 37), são completas, possuem “[...] sintaxe, gramática e semântica, com um caráter diferente de qualquer língua falada ou escrita [...]”, e, segundo Quadros (1997), complexas, pois constituem-se em sistemas abstratos de regras gramaticais.

A esse respeito, Brito (1997, p. 22) explica que

As línguas de sinais são tão naturais quanto as orais para nós e, para os surdos, elas são mais acessíveis devido ao bloqueio oral-auditivo que apresentam. Porém, não são mais fáceis nem menos complexas. Os surdos são pessoas e, como tais, dotados de linguagem assim como todos nós. Precisam apenas de uma modalidade de língua que possam perceber e articular facilmente para ativar seu potencial lingüístico e, conseqüentemente, os outros potenciais e para que possam atuar na sociedade como cidadãos normais. Eles possuem o

potencial. Falta-lhes o meio. E a língua brasileira de sinais é o principal meio que se lhes apresenta para "deslanchar" esse processo.

A língua de sinais no Brasil, denominada Língua Brasileira de Sinais2 (Libras), foi

reconhecida oficialmente como meio de comunicação e expressão pelo Decreto Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Lopes (2011) argumenta que, a partir desse reconhecimento, a presença da Libras deve ser efetiva em todo e qualquer espaço. Entretanto, existe descompasso entre o disposto na lei e a realidade. Apesar de as legislações garantirem a ampla difusão dessa língua nos diversos espaços, na prática, poucos lugares contam com a presença de intérpretes e, quando eles existem, comumente sua presença é condicionada à solicitação antecipada pelo surdo.

Nesse sentido, diante de uma sociedade predominantemente ouvinte, o desafio da comunidade surda na luta pelo seu reconhecimento é constante. E essa necessidade de se reafirmar cotidianamente evidencia a importância da comunidade surda, que tem lutado com afinco pelo direito dos sujeitos surdos:

[...] - terem uma língua própria;

- se autodeclararem surdos e serem reconhecidos como tal; - [...] terem respeitada a diferença surda no aprender; - se reunirem na associação de surdos;

- [...] terem intérpretes em qualquer lugar e em qualquer momento [...] - participarem de tudo o que acontece em espaços públicos.

(LOPES, 2011, p. 76-77)

As comunidades surdas também têm um papel fundamental na formação das identidades surdas, pois, no meio delas é que acontecem os “[...] encontros surdo-surdo, essenciais para a construção da identidade surda.” (PERLIN, 1998, p. 54). Sá (2006) também afirma que as identidades surdas não se formam no vazio, mas sim com os pares:

No encontro com os outros, os surdos começam a narrar-se, e de forma diferente daquela através do qual são narrados pelos que não são surdos. Começam a desenvolver identidades, surdas, fundamentadas na diferença. Estabelecem, então, contatos entre si e, através destes, fazem trocas de diferentes representações sobre a(s) identidade(s) surda(s). Assim, autoproduzem significados a partir de informações intelectuais, artísticas, técnicas, éticas, jurídicas, estéticas, desenvolvendo, então, certa cultura; é a partir dessa autoprodução que surgem as culturas surdas (SÁ, 2006, p. 126).

2 Importante apresentar o ponto de vista de Sassaki (2002), ao afirmar que a terminologia correta dever ser Língua

de Sinais Brasileira e não Língua Brasileira de Sinais, uma vez que não existe Língua Brasileira. A língua de sinais é que é adjetivada conforme o país: Língua de Sinais Brasileira, Língua de Sinais Mexicana, Língua de Sinais Francesa e assim por diante. Sá (2006) também utiliza o termo Língua de Sinais Brasileira e explica que línguas de sinais são mais relevantes que a localização geográfica, por isso, devem anteceder o termo brasileira.

É preciso esclarecer, quando se aborda cultura e identidade surda, que não existe uma cultura universal dos surdos, assim como não há uma única identidade surda. Diversos aspectos influenciam e estão relacionados à cultura, como condições socioeconômicas, gênero, etnias, regionalidade; os sinais da língua de sinais, inclusive, podem variar de região para região dentro de um mesmo país. Seguindo esse mesmo ponto de vista, existem identidades surdas, que são múltiplas e heterogêneas: há o surdo filho de surdos, o surdo filho de ouvintes, pessoas que nascem ouvintes e após um tempo se tornam surdas, surdos que não se reconhecem na cultura surda e que lutam para se enquadrarem na cultura ouvintista (PERLIN, 1998). Em suma, grupos muito heterogêneos.

É importante evidenciar, também, que dar destaque ao enfoque cultural sobre a surdez não significa negar a condição médica da perda auditiva. Até mesmo porque cada situação é única e, em determinados casos, conforme o grau e a característica da surdez, aparelhos auditivos e implantes cocleares podem ser recomendados e, assim, auxiliarem e modificarem as experiências das pessoas com perda de audição.

Concorda-se com Lopes (2011, p. 52), quando afirma que “[...] não se trata de simplesmente negar a surdez para começarmos a fazer um discurso da diferença surda; trata-se de pensar outras formas de significação que permitem a criação de elos entre semelhantes. É preciso compreender que uma distinção cultural sempre passa pela diferença.”

Trata-se de adotar um outro olhar para a surdez, que deve ser vista “[...] como a presença de algo e não a falta de algo.” (LOPES, 2011, p. 52). Trata-se, conforme Sacks (2010, p. 10), de conscientizar-se de “[...] uma outra dimensão, um outro mundo de considerações, não biológicas, mas culturais[...]”; de não ignorar a condição “médica” dos surdos, mas de “[...] vê- los sob uma luz nova, “étnica”, como um povo, com uma língua distinta, com sensibilidade e cultura próprias.”