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CAPÍTULO II: O SURGIMENTO DOS INCIDENTES E DOS COLEGIADOS

1. Surgem os incidentes

Como se pode perceber no capítulo anterior, até o art. 13 pouco inovou a Lei nº 10.259/2001 em relação à Lei nº 9.099/95: aumentou o valor de alçada para 60 (sessenta) salários mínimos, tornou a competência dos JEF absoluta e tentou favorecer os entes públicos nos artigos 4º e 5º. No mais, apenas adaptou o procedimento aos novos réus: União, autarquias, fundações e empresas públicas.

Ocorre que, ineditamente, a lei previu novas figuras recursais, no âmbito dos juizados, a teor do seu art. 14:

45 Tradução livre: “É certo que, se deve aplicar a lei a todos, de maneira igual para todos, o Juiz italiano

tem poucas escolhas, antes, não tem nenhuma: deve ser eficiente e imparcial. O problema é que o Juiz italiano não é eficiente e em muitas ocasiões não consegue ser nem mesmo imparcial. Não é (totalmente) culpa sua. Se se examina a atividade do Parlamento e aquela da maior parte dos ministros da Justiça que se sucederam nos últimos vinte anos se descobre uma coisa inacreditável: não apenas não se fez nada de substancial para aumentar a eficiência da administração judicial, mas justamente se trabalhou para diminui-la fortemente”. TINTI. Toghe Rotte: La Giustizia raccontata da chi la fa, p.161;

Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei.

§ 1o O pedido fundado em divergência entre Turmas da mesma Região será

julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, sob a presidência do Juiz Coordenador.

§ 2o O pedido fundado em divergência entre decisões de turmas de diferentes

regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será julgado por Turma de Uniformização, integrada por juízes de Turmas Recursais, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal.

§ 3o A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via

eletrônica.

§ 4o Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em

questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça -STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência.

§ 5o No caso do § 4o, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo

fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. § 6o Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos

subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. § 7o Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma

Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias.

§ 8o Decorridos os prazos referidos no § 7o, o relator incluirá o pedido em

pauta na Seção, com preferência sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os habeas corpus e os mandados de segurança.

§ 9o Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no §

6o serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de

retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça.

§ 10. Os Tribunais Regionais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição dos órgãos e os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário.

A origem destes incidentes é esclarecida por RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, dando conta de que, quando da elaboração do projeto que viria a se tornar a Lei nº 10.259/2001, houve diversas reuniões no Superior Tribunal de Justiça com a colaboração e a participação de juízes federais, reuniões do Conselho de Justiça Federal e com a Advocacia Pública. Nestas ocasiões, a Advocacia Geral da União teria expressado “a preocupação da União e de todos os seus órgãos de um modo geral, de que não poderia ela, sendo a ré, nas diversas Instâncias e nos diversos Estados, responder pelo mesmo fato, mas condenada de modo diverso em cada um deles”. Surgiu então a “necessidade de compatibilizar o sistema dos Juizados

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Especiais Federais” com a “necessidade de uniformizar esses julgamentos46”.

Uma das soluções seria admitir o recurso especial diretamente ao STJ, o que significaria trazer para a vala comum, isto é, incluir nas dificuldades próprias do procedimento ordinário, todas as causas em que houvesse a alegação de divergência ou de ofensa à lei. Tal solução nos pareceu inconveniente do ponto de vista do Juizado, porque atrasaria de modo infindo as demandas, e representaria um acréscimo significativo no número de recursos a serem julgados pelo STJ. A solução que nos pareceu mais conveniente, portanto, foi a de, permitindo de algum modo essa uniformização de interpretação da lei em todo o País, mantê-la dentro do próprio sistema dos Juizados, tanto quanto possível. E sob essa perspectiva foi normatizado o incidente na nova lei. [...]

Pode-se argumentar que o procedimento introduz várias fases no processamento do incidente de uniformização dentro do Juizado. Realmente isso acontece, mas foi a única forma encontrada para compatibilizar a

possibilidade da uniformização com a idéia de que poderia ser feita dentro do próprio sistema47. (Sem grifos no original)

E, com efeito, prevê o art. 14 da Lei nº 10.259/2001 três novas figuras recursais no ordenamento jurídico brasileiro, os denominados “incidentes de uniformização”. São eles:

a) Incidente de uniformização regional (art. 14, § 1º, da Lei nº 10.259/2001): cabível quando houver divergência, em questões de direito material, entre turmas recursais de uma mesma região da justiça federal. O incidente será julgado em reunião conjunta das turmas em conflito (na Turma Regional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais – TRUJEF ou, simplesmente, TRU) da respectiva região, sob a presidência do Juiz Coordenador;

b) Incidente de uniformização nacional (art. 14, § 2º, da Lei nº 10.259/2001): cabível quando houver divergência entre decisões de turmas de diferentes regiões da justiça federal ou da decisão proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ. O incidente será julgado pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU), integrada por juízes de turmas recursais, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal;

c) Incidente de uniformização para o Superior Tribunal de Justiça (art. 14, § 4º, da Lei nº 10.259/2001): cabível quando a orientação acolhida pela TNU, em questões de

46 AGUIAR JÚNIOR. O Sistema Recursal nos Juizados Especiais Federais, p. 6-7, passim. 47 Idem, p. 6-7.

direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça.

Posteriormente, em 2009, os incidentes previstos na Lei nº 10.259/2001 serviram de modelos para a criação de incidentes de uniformização no âmbito dos juizados especiais da fazenda pública, permitindo à demanda chegar ao STJ quando, por exemplo, ocorrer de turmas recursais de diferentes estados darem à lei federal interpretações divergentes ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula do Superior Tribunal de Justiça (art. 18, § 3º, da Lei nº 12.153/2009). Em face da ausência de previsão de incidentes de mesma natureza nos juizados estaduais, regulamentou o STJ, por meio da Resolução nº 12/2009, “as reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, suas súmulas ou orientações decorrentes do julgamento de recursos especiais processados na forma do art. 543- C do Código de Processo Civil”, a serem oferecidas no prazo de quinze dias, contados da ciência, pela parte, da decisão impugnada, independentemente de preparo (art. 1º da Res. 12/2009-STJ).

A regulamentação da possibilidade desta Reclamação no âmbito do STJ se deu em cumprimento à decisão do STF, nos autos do RE 571.572 ED/BA.

Com efeito, o STJ até então vinha decidindo pela inviabilidade da reclamação para o fim de compatibilizar a decisão de turma recursal de juizado especial cível estadual à sua jurisprudência. Confira-se, a título de exemplo, o teor da ementa da reclamação nº 3.692, julgada em 14.10.2009 pela Segunda Seção do STJ:

CIVIL. OBRIGAÇÕES. ESPÉCIES DE CONTRATOS. TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. RECLAMAÇÃO. CABIMENTO.

1. Pretende o reclamante a cassação do acórdão proferido pela Terceira Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul ao argumento de que o referido julgado contraria a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, esgotadas todas as vias recursais, já apanhadas pela coisa julgada.

2. O entendimento adotado no Juizado Especial diverge da pacífica orientação desta Eg. Corte de Justiça ao reconhecer que o prazo prescricional é de cinco anos, como reconhecido em julgamento proferido pela Segunda Seção em 12.08.09, no Resp 1.053.007/RS, pacificando o

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entendimento de que nas ações de cobrança objetivando a devolução de valores empregados na realização de obras de expansão de rede de energia elétrica em área rural, por sua natureza de obrigação contratual de empréstimo, ajustado em instrumento firmado pelas partes, em que o prazo prescricional é de 05 (cinco) anos.

3. A Reclamação, portanto, há de ser aferida quanto ao seu cabimento dentro dos estreitos liames dos seus pressupostos constitucionais.

4. Com efeito, o princípio constitucional do art. 105, I, F, da CF não pode se alargado em sua estreita previsão, mesmo em razão da segurança jurídica como entendido, posto que sem previsão constitucional e ou legal.

5. Esta Eg. Corte permissa vênia, não tem igualmente competência para rever decisões dos Juizados Especiais Estaduais por ausência de norma legal, muito menos através de Reclamação quando inexiste qualquer processo decidido nesta Corte, nenhuma decisão violada e, o que é mais grave, em processo apanhado pela coisa julgada.

6. Assim sendo, a pretensão do reclamante mostra-se totalmente incompatível com os objetivos tutelados pelo instituto processual- constitucional da Reclamação, tornando inviável o seu seguimento pela INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À AUTORIDADE DAS DECISÕES DESTA CORTE SUPERIOR, NEM POR AFETAR A SUA COMPETÊNCIA FIXADA CONSTITUCIONALMENTE.

7. Negado seguimento à reclamação48.

Dias antes da decisão acima, todavia, a Ministra ELLEN GRACIE, embora se mostrasse “bastante preocupada”, no julgamento do MS 23.393-1/ES, com “a possibilidade de esta Corte [STF] ser inundada com recursos provenientes desses juizados especiais, que agora se multiplicam pelo País todo”, acabou relatora do RE 571.572 ED/BA. Neste, o STF, pelo seu pleno, vencido apenas o Ministro MARCO AURÉLIO, decidiu que, em face da inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, havia “o risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la”, motivo pelo qual se haveria de se facultar o “cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional”. O acórdão ficou assim ementado:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR.

48 STJ, Segunda Seção, Recl. 3.692/RS, Relator Ministro Honildo Amaral de Mello Castro

1. No julgamento do recurso extraordinário interposto pela embargante, o Plenário desta Suprema Corte apreciou satisfatoriamente os pontos por ela questionados, tendo concluído: que constitui questão infraconstitucional a discriminação dos pulsos telefônicos excedentes nas contas telefônicas; que compete à Justiça Estadual a sua apreciação; e que é possível o julgamento da referida matéria no âmbito dos juizados em virtude da ausência de complexidade probatória. Não há, assim, qualquer omissão a ser sanada. 2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais.

3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização.

4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê- la.

5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional49. (Sem grifos no original)

Consequentemente, foi editada a Resolução nº 12/2009 do STJ e se sinalizou ao legislador a necessidade de se estender legalmente os incidentes também aos juizados estaduais.

Com estas medidas, os JEF que se pretendiam símiles aos juizados estaduais previstos na Lei nº 9.099/95, acabaram se tornando um tanto diferentes. E mais: esta diferença retroalimentou o sistema, que foi contaminado pelos incidentes da Lei nº 10.259/2001, estendido aos juizados estaduais por resolução do STJ e copiados na lei de regência dos juizados especiais da fazenda pública.

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Destinado ao encerramento no âmbito das turmas recursais, o procedimento dito “sumaríssimo”, quer pelo constituinte50, quer por autorizada literatura especializada51,

alçou voos mais altos: atinge (com autorização constitucional52) o STF e (por

ampliação infraconstitucional das suas competências) o STJ.

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