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4 BASES TEÓRICAS DE SUSTENTAÇÃO DO PROCESSO

4.2 SUS, descentralização e gestão

Antes do SUS, ou melhor, antes da Constituição Federal de 1988, que instituiu o SUS no território nacional, o atendimento médico nos serviços públicos de saúde apenas era prestado às pessoas que estivessem inscritas no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).

Felizmente, aquele tempo já passou e agora todos, com registro na carteira de Trabalho ou não, sejam pobres ou ricos, têm o direito a ser atendidos pelo SUS. Essa transformação se deveu à luta pelo direito ao atendimento médico nos serviços públicos de saúde, empreendida por milhares de brasileiros, durante décadas, cuja luta recebeu o nome de

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movimento sanitarista, ou seja: foi uma luta da sociedade brasileira e não dos governantes e nem de partidos políticos ou de organizações internacionais.

Ainda sobre o período que antecede o SUS, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia do Ministério da Previdência e Assistência Social, aplicava nos Estados, por meio de suas superintendências regionais, recursos para assistência saúde, utilizando-se do método da proporcionalidade, referente ao volume de beneficiários e recursos arrecadados.

Nesta lógica, quanto mais desenvolvido o Estado, quer nas relações de trabalho e na economia, maior a destinação de recursos para assistência à saúde. Como o Sul e Sudeste possuíam Estados mais ricos, para lá o INAMPS encaminhava mais recursos. Naquele momento, o cidadão brasileiro com referência à assistência à saúde era classificado em três níveis: os que podiam pagar pelos serviços; os que tinham direito à assistência prestada pelo INAMPS, e os que não tinham nenhum direito, chamados indigentes (SOUZA, 2003).

A primeira e grande conquista do Movimento Sanitarista Brasileira ocorreu em 1988 quando a Constituição Federal, art.196, reconhece a saúde como um direito de todos e um dever do Estado que deve ser assegurado a todos, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Já o parágrafo primeiro do artigo 198 determina que o SUS será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Essa questão é de extrema importância, pois em todo debate sobre o financiamento do SUS enfatiza-se a participação da União, como se fosse a única responsável.

Conforme constatamos o reconhecimento do direito a saúde está revestido de determinantes múltiplos e complexos que vão além da garantia de acesso a serviços e produtos médicos. Tais determinantes requerem a formulação e implementação de políticas públicas abrangentes pelo Estado.

O art. 200 da Constituição Federal complementa a necessidade de implementação de políticas quando estabelece, exaustivamente, as competências do sistema único de saúde que precisam ser implementadas por meio de políticas públicas como, por exemplo, quando dispõe que cabe ao SUS executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador, ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde , participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico,

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incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico e fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumos humano.

A Lei 8.080/93, norma infraconstitucional reguladora do sistema, definiu o SUS com comando único em cada esfera de governo e colocou o Ministério da Saúde como gestor no âmbito da União. No art. 7º do Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes – a lei estabelece entre os princípios do SUS a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência. Tal determinação significou uma mudança da situação até aquele momento vigente. O Brasil passou a contar com um sistema público de saúde único e universal. No entanto, esta determinação gerou questionamentos no sentido de saber se o que preconizava o Estado tinha correspondência com a realidade (ANDRADE; ANDRADE, 2010).

Ainda, na vigência do antigo sistema previdenciário, se formatou um sistema opcional de assistência à saúde do trabalhador para atender a dinâmica das forças produtivas aos interesses do capital. Tal sistema alternativo consistia na implementação das medicinas de grupo e sistema de autogestão pelas empresas, visando à manutenção do trabalhador, em ótimas condições de saúde e por consequência o processo produtivo não sofreria interrupções, na sua linha de produção (ANDRADE; ANDRADE, 2010).

Aquela situação gerou reações dos médicos que, em contraposição ao sistema de medicina dos grupos de produção, construíram um sistema cooperativo de trabalho, qual seja as UNIMED’s, que pretendiam controlar a venda do trabalho médico às empresas interessadas em prestar assistência suplementar aos seus trabalhadores. Com o aquecimento do mercado suplementar, surgiram outros atores econômicos que passaram a perceber um novo mercado bastante lucrativo com o negócio de venda de planos de saúde (ANDRADE; ANDRADE, 2010).

Toda essa movimentação de vendas de plano de saúde aconteceu na vigência do SUS que preconiza a universalidade como princípio que incluiria todo cidadão ao sistema para assistência à saúde. Tal situação expressa uma incoerência do sistema de saúde brasileiro, já que expulsa do SUS a classe trabalhadora e a classe média, as quais buscam os planos de saúde para ter melhor assistência a saúde e muitas vezes dentro de uma perspectiva de subir de classe social, já que aquele que adquire plano de saúde pensa integrar um melhor nível social-econômico (MENDES, 1993).

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Ante esta situação caberia uma pergunta: porque a suplementação da assistência à saúde estaria em expansão se a universalidade e equidade seriam princípios norteadores do SUS? A resposta de partida seria que com a universalização ocorreria um racionamento de serviços e a perda de qualidade, percebida pelo beneficiário, o que resultaria na busca por alternativas (MENDES, 1993).

Assim, a situação exposta expressa a existência das mazelas do SUS e a presença de um Estado Neoliberal que, para dar conta da crise vivenciada pelo capitalismo, (onde é imputada como causa fundamental a crise fiscal), se utiliza de estratégias para sua superação. Neste ponto, surge na cena da saúde pública a questão da suplementação da assistência com a saúde e, mais tarde, a estratégia da Reforma do Estado, tendo para isso sido criado um Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) que apresentou o Plano Diretor da Reforma do Estado (BRASIL, 1995).

Segundo o documento, a Reforma do Estado deve ser entendida no contexto da redefinição do papel do Estado, que deixa de ser responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social para se fortalecer na função de promotor e regulador desse desenvolvimento (BRASIL, 1995).

O documento aponta, também, que o Estado gerou distorções e ineficiência ao tentar assumir funções diretas de execução e neste sentido, "reformar o estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado” (idem).

Para reforçar a ineficiência defendida pelo MARE, foi providenciada pelo Estado uma emenda a Constituição Federal nº 19/1998, no sentido de justificar que diante deste novo cenário da Reforma Estatal, surge o princípio da eficiência, que se traduz como sendo “[...] a melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade.” (MOREIRA NETO, 2006, p. 103). A Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, acrescentou, no caput do artigo 37 da Constituição Federal, entre os princípios da Administração Pública, o princípio da eficiência.

O advento da emenda constitucional nº19, de 04 de junho de 1998, foi o marco legal para que fosse instituída a descentralização por delegação, entregando-se a execução de alguns serviços públicos a pessoas físicas e jurídicas - a particulares; portanto, através de contrato firmado com o Poder Público. “Não mais se aceita que o serviço seja prestado pelo Estado, apenas pelo simples fato de que a legislação o obriga a realizá-lo, mas que tais

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serviços sejam realizados dentro dos parâmetros idealizados, alcançando os melhores resultados.” (DI PIETRO, 2008, p. 83).

Referida transferência, expressa uma preocupação dos estudiosos do terceiro setor, que temem o fenômeno do processo da institucionalização dessas entidades que passarão a exercer a gestão das atividades não exclusivas do Estado. Tal situação pode descaracterizar e comprometer o desempenho de funções de responsabilidade do Estado. A Lei Federal 9.790, de 24 de maio de 1999, que qualifica as entidades em organizações da sociedade civil de interesse público, é um exemplo dessa institucionalização (TENÓRIO, 1999).

O plano de reforma do aparelho estatal brasileiro criou outro documento legal que institucionaliza certas entidades responsáveis pela produção de serviços públicos, isto é, qualifica como organização social as instituições sem fins lucrativos para que possam desempenhar funções delegadas pelo Estado.

Foram as políticas setoriais, nas áreas sociais, que sofreram importantes impactos com a implementação do ideário das propostas de reforma do Estado a partir de 1980. No encaminhamento do ideário reformista, particularmente nas reformas do setor de saúde, o Banco Mundial (BIRD), a Organização Mundial da Saúde (OMS), e a Organização Pan- americana de Saúde (OPAS) revelaram participação bastante ativa, seja financiando, seja fomentando as políticas sociais. O Banco Mundial tem sido um ator importante na implantação de políticas setoriais em vários países, notadamente os da periferia do capitalismo, graças ao seu poder econômico de financiamento de programas sociais bem como ao seu poder de influência política junto aos governos, papel assumido a partir da segunda metade da década de 1980, antes exercido pela OMS (MATTOS, 2001).

Um dos principais instrumentos utilizados pelo Poder Público para transferir a execução de serviços públicos a entidades privadas é o contrato de gestão, instituído pela Lei n° 9.637/98, que visa a "[...] instituir parceria entre o poder público e uma organização não governamental qualificada pelo poder público sob certas condições, para prestar atividade de interesse público mediante variadas formas de fomento pelo Estado." (DI PIETRO, 2008, p. 210).

A Constituição Federal dita em seu Art. 199: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência às entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

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A respeito do tema focado existem críticas formuladas, como a seguinte: É importante realçar que a Constituição, no dispositivo citado (art. 199, § 1º), permite a participação de instituições privadas de forma complementar, o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço (DI PIETRO, 2008).

Neste sentido, não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestada por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.; nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde mas não sua gestão operacional (DI PIETRO, 2008).

Sobre a escolha do contratado para fins de realizar serviços de terceirização, encontramos reflexão crítica no sentido de que a nova forma de gestão é amplamente compatível com as empresas privadas, cuja isonomia não é sempre utilizada, porque o único objetivo a ser aferido é o lucro e, em havendo prejuízos, se ocorrerem, quem somente arcará será a mesma. Por outro lado, diferentemente serão as repercussões que poderão ser geradas pela má escolha de contratado nesse contrato de gestão. A princípio, serão os cofres públicos, mas quem arcará com o prejuízo final será duplamente a sociedade: uma porque será cerceada de tais serviços públicos, vez que não foram oferecidos; noutra, porque terá que contribuir novamente para que o serviço seja prestado (CAVALCANTE, 2008).

O Legislador quando da elaboração de algumas leis que dispensam a licitação para a seleção das entidades que celebrarão contrato de gestão, em especial art. 12 §3º da Lei 9637/98, assim regulou:

Art.12 - As organizações podem destinar recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão.

[...]

§3º. Os bens de que trata este artigo serão destinados às organizações sociais, dispensada a licitação, mediante permissão de uso, consoante cláusula expressa do contrato de gestão. (BRASIL, 1998, p. 4).

Sobre a dispensa de licitação e a concepção do modelo das OSS há as seguintes considerações:

54 É temerária a substituição do princípio jurídico da licitação pública pelo juízo exclusivo de autoridades do executivo na escolha da associação civil a ser qualificada como OS. A presença minoritária do Estado no conselho de administração da OS facilita a influência de interesses individuais na gestão e reduz a sua capacidade de assumir sua responsabilidade social. O duplo regime jurídico dos funcionários da OS consiste em fator de risco para a eficácia e eficiência das novas entidades, prejudicando os funcionários públicos alocados irrecusavelmente à OS, o que pode causar fontes de conflitos com o Estado. (ANDRÉ, 1999, p. 52).

Cavalcante (2008) alinha-se ao pensamento de André por entender ser inconstitucional a possibilidade da dispensa de licitação nos contratos de gestão, porque o princípio da isonomia estaria sendo desrespeitado, podendo ser admitido, excepcionalmente, apenas em situações fáticas restritas. A autora entende que admitir a faculdade da dispensa nesses contratos seria um absurdo. Estarrece-se, ainda, quando a legislação da OSS prevê a possibilidade de disponibilizar servidores públicos para trabalharem nessas entidades privadas, e ainda, às expensas do erário público.

Carvalho Filho (2010) entende que, para que haja o êxito das organizações sociais, por consequência do instituto do contrato de gestão, é necessária uma fiscalização efetiva das entidades e do cumprimento de seus objetivos, porque segundo o autor, a sua ausência poderá gerar situações de descontrole das atividades administrativas, desnorteamento dos objetivos estipulados e facilitação do cometimento de crimes contra o sistema financeiro do país.

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