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CAPÍTULO 1 DESPERSONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS NA

1.1 Ambiente espiritual da sociedade técnico-industrial

1.1.3 Técnicas de Aviltamento

O debate entre o valor da técnica e a consciência existencial nos orienta para a reflexão sobre o modo como os procedimentos técnicos podem se colocar a serviço da opressão e contra a experiência emancipatória das pessoas e os processos promotores da condição humana dos seres. É no incurso desta constatação que a Filosofia de Gabriel Marcel se debruça sobre o modo como as técnicas de aviltamento contribuem para o envilecimento das consciências humanas, através da manipulação da propaganda, ao promoverem uma noção ideológica da história. É mediante o risco de perder-se e a possibilidade de achar-se, humana e existencialmente, que julgamos importante considerar “[...] que não há pior ilusão do que supor determinada organização social ou institucional bastante para desvanecer uma inquietação que emerge do mais profundo Ser” (MARCEL, 1951b, p. 35).

1.1.3.1 O envilecimento do humano na civilização industrial

“A crise do homem ocidental é uma crise metafísica” (MARCEL, 1951b, p. 35). É uma inquietação que, emergindo do mais profundo do Ser, precede a toda forma de estimativa e transcende ao controle das organizações sociais e institucionais (FRIEDMAN, 2012).

No balanço humano, os terríveis acontecimentos, provocados pelas duas Grandes Guerras Mundiais, tendem à neutralização do Ser através de uma ação conjugada, que desencadeia um processo de insularização temporal do homem contemporâneo (MARCEL, 1961, 2003, 2005). Este configura-se como o estado pelo qual o sujeito é tentado a envilecer- se, a perder o contato real com o fato e a reduzi-lo a uma simples noção abstrata.

A pretensão do envilecimento humano é a promoção da consciência abstrata. Envilecer consiste no ato de tornar vil74, de tentar depreciar o humano da sua dignidade, sem que este, necessariamente, tenha consciência disso. Envilecer é agir intencionalmente contra a noção que o outro tem de si próprio. É procurar demover o homem de seu fulcro existencial; é levá-lo à condição de ambivalência sobre seu próprio valor; é pretender aviltá-lo.

No ato de aviltar, o homem é tratado como objeto insignificante, um ser desprezível, cuja honra deve ser transformada em vergonha e ignomínia. A vilania degenera a natureza humana, reduzindo-a ao estado de desprezo, desvalorização e vazio. Quando atrelado à noção da técnica, o ato de aviltar o outro representa agir, com base numa série de métodos, na intenção de desconectar no homem os laços entre a visão poética da vivência e a criação filosófica de sua própria existência, levando-o ao desencanto da vida e de si mesmo. Nas palavras de Gabriel Marcel:

Entendo por técnicas de aviltamento processos intencionais para atacar e destruir em indivíduos de categoria determinada o respeito de si mesmos, transformando-os pouco a pouco em resíduo que se considera tal e só pode desesperar não só intelectualmente, mas até vitalmente, de si próprio (MARCEL, 1951b, p. 39).

A vontade de humilhar é a força motriz do aviltador. Expor seu semelhante ao vexame e à nulidade representa garantir a própria supremacia; significa mostra-se superior, altivo, elevado e melhor. A estas disposições específicas se ligam o uso das técnicas de aviltamento (MARCEL, 1955, 1961, 1987) e um corolário de meios e aparatos criados, única e

74 Conforme Marcel, “vil é o que não tem preço, e aviltar é contribuir para baixar o preço, o valor de uma mercadoria, lançando para o mercado, por exemplo, grande quantidade desta” (MARCEL, 1981, p. 84).

exclusivamente, com o fim de convencer o outro que não passa de um simples refugo da espécie humana.

“É evidente que ao falar de técnicas de aviltamento acode imediatamente o seu emprego maciço e sistemático pelos nazistas, especialmente nos campos de concentração” (MARCEL, 1961, p. 39). Decerto, pode se articular a estas pretensões um corpo de instrumentos e métodos de envilecimentos que foram usados, pelos alemães, no período da Segunda Guerra Mundial.

De acordo com “O Relatório de Buchenwald” (HACKETT, 1998)75, encontramos, entre outras técnicas de aviltar, os atos de violências ignóbeis que se mostram através da repetição exaustiva de cânticos e melodias, o uso de estrelas e disposições anexas, modos de vestirem-se, fardamentos, ferramentas, aplicação classificatória de cores, departamentalização de funções, estratificação de grupos, linguagem verbal depreciativa, tratamento indevido do corpo, monitoramento da rotina, deflagração da intimidade, nulidade da memória dos que se foram, uso de crachás, fichas de presença, realização de chamadas, avaliação de desempenho, aplicação de sanções e castigos físicos.

Mais ainda: o uso de seres humanos como cobaias, exploração de talentos, habilidades e mão de obra, divisão do trabalho, discriminação étnico-racial, intolerância religiosa, processos laboral-escravistas, uniformização dos modos de ser, viver e pensar, condições precárias de vida e higiene, negação dos direitos de ir e vir, cerceamento da liberdade de expressão, discriminação de gênero e exposições a vexames, humilhações e toda sorte de constrangimentos e abusos físicos, mentais e emocionais.

Desde o surgimento das técnicas de aviltamento, seu uso passou a generalizar-se e a tomar corpo e espaço no âmbito das relações profissionais, institucionais e sociais. As noções, relativamente simples, das técnicas de aviltamento tornaram-se a marca e o fundamento, tanto da ordem material como da aquisição intelectual da civilização industrial. Elas aparecem explícitas e/ou veladamente, através dos pressupostos, das formas de tratamento, critérios e exigências da própria ideia de progresso e desenvolvimento técnico-científico da sociedade contemporânea.

Em si, as técnicas de aviltamento se expressam através da própria noção de inacabamento do Ser e da vida. Neste sentido, surge a ação aviltante da técnica, quando

75 Gabriel Marcel cita como exemplo dois ou três testemunhos diretos e reveladores dos sobreviventes, contidos no “Relatório de Buchenwald” (HACKETT, 1998), que foram colhidos e registrados em abril de 1945, como expressões do dia a dia em um dos campos de extermínio na Alemanha, durante o período da Segunda Grande Guerra Mundial.

considera a ideia do inacabamento humano como um estado de imperfeição; a condição deficiente, que requer da Ciência uma intervenção direta, que envolve a construção de regras de desenvolvimento, leis de comportamento e enquadramento das disposições volitivas. Para o homem da técnica, vida e ciência confundem-se e anulam-se mutuamente. Em um mundo onde se afirma o controle absoluto dos aparatos técnicos sobre as incidências do humano, questiona-se: “como não arrogar-se então o direito de intervir até no curso da vida como quem constrói comportas em um rio?” (MARCEL, 1951b, p. 56).

As descobertas científicas e o progresso técnico concedem ao homem a capacidade de exercer, cada vez mais, domínio e controle sobre as diversas regiões do mundo e dimensões da vida (SPENGLER, 1998b). Nesta condição, o técnico se vê, irresistível e irrestritamente, tentado a subverter o sentido dos seus achados, para além da ordem do serviço e da atividade espiritual, que estejam voltadas para fins superiores e benefícios humanos. A verdade, diz Marcel,

[...] é que os progressos da técnica expõem cada vez mais o homem à tentação de atribuir aos seus êxitos um valor intrínseco que não podem ter de modo algum. Poderia dizer-se simplesmente que o progresso da técnica expõe o homem ao perigo da idolatria (MARCEL, 1951b, p. 57-58).

A idolatria se transforma em egolatria à medida que o homem se afirma como alguém que tem o poder de negar a proposição recíproca da relação entre a criatura e o criador. Este é o ato pelo qual o homem exalta-se e autodeprecia-se desmedidamente76. Um movimento que “[...] não impede – e ou ele o não viu ou erradamente julgou poder pô-lo de parte – que no nível da experiência o para além se volva um para aquém [...]” (MARCEL, 1951b, p. 61); é, ainda, o ato pelo qual a valoração da ciência se degenera numa transvaloração da dignidade e capacidade do fazer e modo de ser do humano. A partir desta reflexão

76 Neste sentido, Gabriel Marcel (1981) inclui ao conjunto das técnicas de aviltamento o humanismo de Jean Paul-Sartre, quando não tem intenção de ressaltar sua visão do ateísmo nega totalmente a possibilidade de reconhecer o homem como uma criatura, um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Sobre o que ele diz: “Em linguagem diferente, mas homóloga, podemos dizer que essas técnicas abomináveis só podem exercer-se quando deliberadamente nos recusamos a olhar o homem como criado à imagem de Deus; talvez pudesse até dizer-se simplesmente como um ser criado. Nem vale a pena insistir em coisa tão clara. Mas a proposição recíproca parece-me, pelo contrário, de importância considerável, e digna de toda meditação no nosso momento histórico. Desde que o homem se nega como ser criado, espreita-o um perigo duplo: por um lado – é exatamente o que se vê no existencialismo de Sartre – será conduzido a atribuir a si próprio uma aseidade caricatural, isto é, a considerar-se um ser que se faz a si mesmo e não é senão o que se faz; porque ninguém pode favorecê-lo nem sequer há dom que possa fazer-se-lhe; é radicalmente inapto a receber” (MARCEL, 1951b, p. 62). Na concepção de Joaquim Escola, “este humanismo, gerado na ambiguidade, não deixa de indicar um caminho que desembocará, necessariamente, num humanismo degradado e aviltante” (ESCOLA, 2011a, p. 98-99).

É fácil ver que o recurso a técnicas só é possível em um mundo onde os valores universais são calcados aos pés; e não pensemos aqui demasiado no bem em si, no verdadeiro em si – não gosto muito deste platonismo; mas antes nesses mesmos valores no seu âmbito referencial, isto é, enquanto conferem à existência humana – a toda existência humana – a sua dignidade própria (MARCEL, 1951b, p. 61).

Num mundo onde a reciprocidade entre o homem e a técnica se desvaloriza, é comum encontrarmos discursos em torno do seu aspecto negativo. Conquanto o potencial técnico tenha culminado na invenção dos mais formidáveis meios de destruição, há que se reconhecer seu caráter positivo e suas múltiplas contribuições aos desenvolvimentos das civilizações e dos homens. Com esta discussão, cabe ressaltar que o problema não apenas se refere aos malefícios da técnica ou da defesa por sua total emancipação. Como fala Marcel,

Ainda uma vez, não se trata de incriminar as técnicas em si; pois que quando elas preenchem exatamente a sua função, elas não são em si; o caso é inteiramente diverso se elas reivindicam um como primado relativamente a um pensamento concentrado sobre o ser e não sobre o fazer (MARCEL, 1951b, p. 61).

Numa realidade cada vez mais entregue às técnicas, faz-se necessário discutir sobre a noção de envilecimento, seus pressupostos e as categorias trágicas e aviltantes, da tentativa e do risco. A crença no desenvolvimento técnico-industrial, enquanto impulso, está associada às perspectivas da tentativa e do risco. No entanto, não se limita a eles, enquanto mecanismo provocador de um espírito aventureiro. A tentativa sempre se refere a algo comum da vida, pela qual o homem busca empregar determinados meios para atingir um fim, que é incerto e duvidoso. Ao tentar, o homem prova, experimenta, repete procedimentos e realiza múltiplas experiências (BOLLNOW, 1971). Já, no risco, sua postura é passiva e dependente; no risco, o homem se expõe sem poder prever nem exercer qualquer influência sobre o resultado que espera alcançar. No ato de arriscar, o sujeito pode agir cautelosa ou irresponsavelmente. Ao arriscar-se, o homem degrada sua própria vida e a reduz, tratando-a como se fosse uma coisa ou um objeto qualquer.

De modo geral, entregar-se a estas posturas aviltantes é subestimar a possibilidade de vivenciar uma degradação total. Diante do perigo do alastramento e de suas novas formas de insurgências, cabe-nos ressaltar a necessidade de se problematizar não só seus efeitos como os aspectos constituintes e bases do processo de aviltamento da própria discussão em si. Conviria aqui proceder com rigor sintético e mostrar, em especial, como este tipo de postura se

desenvolve quase invariavelmente em um mundo entregue aos domínios da técnica e da função. Dizemos que

[...] o homem da técnica, tendo perdido no sentido mais profundo a consciência de si, isto é, antes de tudo, das regulações transcendentes que lhe permitem referenciar o seu proceder ou intenções, está cada vez mais desarmado perante as forças destruidoras desencadeadas em torno e perante as cumplicidades que elas encontram no fundo de si mesmo (MARCEL, 1951b, p. 67-68).

Na relação entre o homem e os perigos que envolvem as tentativas de envilecimento, deve-se considerar que a técnica não possui um fim em si mesma e que, isolada dos postulados humanos, poderá se converter num processo de dessacralização da vida, na perda do sentido da existência, da dignidade e da sua própria liberdade. Este é um procedimento aviltante, onde se tenta tornar o nobre vil por meio da atitude degradante de reduzir o valor humano ao nível e ao preço de uma simples mercadoria ou objeto qualquer (MARCEL, 1981).

É mediante os incursos das análises e discussões em torno do processo de envilecimento do humano na civilização industrial que Gabriel Marcel se propõe a refletir acerca das técnicas de aviltamento em seus mais variados aspectos. O teórico procura, num primeiro momento, avaliar o modo como o processo de degradação se coloca a serviço da ideologização da história e, no segundo momento, avalia como seu fluxo se manifesta através dos meios de comunicação de massa e, mais propriamente, por meio da propaganda.

1.1.3.2 A ideologização da história

No aspecto dinâmico, a reflexão filosófico-fenomenológica de Gabriel Marcel, a respeito das insurgências das técnicas de aviltamento sobre o humano, situa-se no âmbito de uma realidade político-social ideologicamente construída. A relação entre técnica, espírito de abstração e sistema político coloca-nos diante dos abismos de uma compreensão dogmático- filosófico da história. Este é um corte conceptual, capaz de comprometer a visão que o homem possui do concreto, quando pretende desarticulá-lo do seu contexto imediato e impedi-lo de perceber suas reais exigências existenciais e metafísicas.

Na peça teatral “Roma ya no está en Roma” (1957), Marcel chama a atenção para as ameaças que pesam sobre o Ocidente. A inseparável relação entre a ambiguidade política e o espírito de abstração aparece como o aspecto central das palavras e sentimentos expressos por

Pascal Laumière, principal protagonista da saga. Através da articulação entre os aspectos religiosos e políticos, o teórico destaca o modo como Pascal, um homem honrado, reluta para não se deixar enganar a respeito do sentimento que tem e da verdade do que é e faz. Falamos de uma produção cujo contexto remonta a um período em que a França atravessa uma aguda e profunda crise política e social e de uma tensão democrática, onde se questiona o caráter da própria Revolução Francesa, como a viabilidade aplicativa dos postulados da liberdade, da igualdade e da fraternidade77.

Através desta produção dramatúrgica, Marcel procura retratar o desejo de Pascal em procurar manter-se coerente, apesar das controvérsias políticas de uma determinada época. Este é um momento onde o monopólio do conformismo ameaça comprometer o caráter consistente do Ser e da própria noção de democracia. O papel de Pascal aparece, neste cenário, como a expressão de uma consciência lúcida, não só da dimensão interior do homem, como da própria necessidade de se denunciar todas as expressões do dogmatismo histórico- ideológico que se anunciam como dominadores dos homens e absolutizadores de todas as formas de entendimento e visões de mundo. A consciência desta ambiguidade alcança seus paroxismos nas cenas finais e, especificamente, nas palavras postas na boca de Pascal Laumière, por Marcel, quando diz

[...] Se diría que has sido puesta en mi camino para señalar con barreras de odio la separación entre lo que soy y lo que aspiro ser.

Se lo repito, Esther, René e es mi desgracia. Es el ser que no ha cesado de arrastrarme hacia abajo mostrándome la imagen más desalentadora de mi mismo.

[...] Amigos de Francia, se me ha pedido dirigirme a ustedes una vez cada quince días para decirles como nosotros, los emigrados, nosotros, los desertores, vemos a Francia...

[...] En una tragedia de Corneille, bastante olvidada, hay unos versos famosos y demás admirables. Sertorio, general rebelde en España, proclama que es él quien encarna la verdadera Roma.

Ya no me refiero a Roma como un cerco de murallas Que sus proscriptos colman de funerales.

Esos muros, donde el destino antaño fue tan bello

77 Conforme está dito em nota de rodapé já citada, a peça “Roma ya no está en Roma” (MARCEL, 1957) retrata a visão construída por Gabriel Marcel a partir de sua própria vivência, leitura e visão de mundo. Este sentimento se expressa quando diz que “Nunca a Revolução Francesa me inspirou a menos admiração ou sequer simpatia, porque muito cedo avaliei os estragos imputáveis a certo fanatismo igualitário. É certo que, neste caso, outro sentimento interveio, e também muito cedo, na época em que, não sei por que, meus pais me obrigavam a ler a árida História da Revolução Francesa, de Mignet: o horror inato da violência, perpetuados até 1789, impressionavam-me muito menos do que os crimes do Terror. Mas tarde, como é de supor, cheguei a um juízo mais equitativo ou pelo menos mais dúctil; mas a indignação sentida ao pensar nos morticínios de Setembro, ou em outros crimes coletivos não difere afinal essencialmente da que em mim despertaram, em data recente, os horrores do nazismo ou do estalinismo ou as ignomínias de certa depuração” (MARCEL, 1951b, p. 6).

No son sino la cárcel o tal vez el sepulcro: Pero para revivir afuera su primitiva fuerza De los falsos romanos ella se ha divorciado Y como a mi alrededor está todo el apoyo Roma ya no está en Roma, sino aquí junto a mí.

Amigos, ese pensamiento es falso; y es estoy o quiero gritarles hoy. No debimos irnos: hay que quedarse, es necesario luchar sobre el lugar. La ilusión de que podemos llevar la patria con nosotros, no puede nacer más que del orgullo y de la más loca presunción. Ustedes que quizás dudan delante de la amenaza del mañana, quedarse, les conjuro, y si no se siente con valor..., si ustedes no tienen el valor... (MARCEL, 1957, p. 73, 75, 77). A desconfiança de Marcel com relação às pseudo-democracias do seu tempo é fruto de uma série de abusos que se perpetuaram em alguns países da Europa e da América (MARCEL, 1951b). O horror inato da violência, da desordem e da crueldade, que foram desencadeados nos idos da Revolução Francesa, levaram nosso autor “[...] a uma profunda suspeita em relação ao privilégio que se atribuía no seio das democracias à ideia de massa, onde os seres concretos se diluem completamente” (ESCOLA, 2011a, p. 95).

Na base deste desagrado, encontra-se a consciência de que todos estes estragos foram resultados de um certo fanatismo igualitário, onde se percebeu uma profunda conexão entre as tendências políticas totalitárias, o espírito de abstração e a violência coletiva78. A explícita crítica de Marcel contra os intensos abusos ideológicos resulta da compreensão de que “[...] o espírito de abstração é de essência passional” (MARCEL, 1951b, p. 7).

A abstração é fruto da paixão e da passionalidade; é resultado da atitude precipitada de julgar erradamente zonas distintas de compreensão, a partir de um determinado corte ou ponto de vista específico e/ou pessoal. Na perda de uma visão ampla descarta-se a consciência das condições prévias do que, em si, é apenas um processo. Um expediente onde se vê que

O espírito de abstração é inseparável deste erro, ou antes este erro o constitui. Não poderia dizer-se que o espírito de abstração pode em certos aspectos considerar-se a transposição do imperialismo para o mundo mental? [...] Desde que concedemos arbitrariamente preeminência a uma categoria separada de todas as outras, somos vítimas do espírito de abstração (MARCEL, 1951b, p. 138).

78 Não nos esqueçamos que depois da Primeira Guerra Mundial e diante das implicações sociais que ela trouxe para o cenário europeu, a Alemanha viveu um período de alteração e novos contornos políticos. No período “Entre Guerras” (1918 – 1939), instaurou-se a República de Weimar, que tinha como sistema de governo o modelo parlamentarista democrático. O Partido Nazista surge no cenário sócio-político-econômico alemão para a burguesia, composta principalmente pelos banqueiros e industriais, como a solução para a crise do sistema financeiro do Estado. Após assumir o cargo de chanceler e líder maior da Nação, em 1933, Hitler buscou fortalecer o poder alcançado, através do uso da violência, repressão, opressão e, principalmente, dos discursos e da propaganda maciça junto às massas populares, além da adesão de grupos e setores importantes