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Temas clássicos da geografia política: as fronteiras e as formas de apropriação política do espaço

Geografia Política

6.2. Temas clássicos da geografia política: as fronteiras e as formas de apropriação política do espaço

Um dos conceitos-chave da geografia política é, sem dúvida, o de território. Concebido como espaço geográfico sob controle do Estado, originalmente o território ganha prestígio entre geógrafos políticos justamente por essa relação atávica com a figura do Estado. Mesmo fora do âmbito dessa disciplina acadêmica, quando se discute a origem do poder do Estado, é comum encontrar-se uma clara referência à centralidade territorial do Estado como um dos trunfos do poder que, inclusive, diferencia o Estado de outras instituições e agrupamentos. O trabalho de Mann (1992: 182) sobre o poder autônomo do Estado é categórico nas passagens em que ressalta: “a definição do Estado se concentra sobre sua natureza institucional, territorial, centralizada. Esta é a mais importante precondição do poder do Estado: “(...) Só o Estado é inerentemente centralizado em um território delimitado, sobre o qual ele tem um poder autoritário. (...) O Estado é realmente um lugar __ tanto um lugar central, quanto um alcance territorial definido”. Essa centralidade e principalidade territorial reconhecidas por Michael Mann passam, contudo, por uma série de questionamentos, na atualidade.

Trata-se atualmente de uma retomada do conceito de território, pelas Ciências Sociais como um todo, o qual passa por uma espécie de revalidação epistemológica e pragmática. Nesse sentido, chega-se a falar no fim dos territórios, como o faz, em seu livro, Bertrand Badie. Este autor argumenta que a (des)ordem internacional é caracterizada, dentre outros, pela difusão de redes, de fluxos, de trocas. Segundo Badie (1995: 14), o território, ainda numa concepção westphaliana, designa mais que um simples espaço, mas sim uma ordem, um agenciamento, um modo de organização e que a “nova cena mundial se desenha como a-territorial”, submissa a várias lógicas e muito

raramente sob a lógica do Estado nacional. Esse polêmico inciso sobre o fim dos territórios contribui para a reafirmação do debate sobre a pertinência ou o princípio territorial, no mundo contemporâneo, não apenas como referência para o Estado, mas também em outras configurações escalares.

Quanto à revalorização do território, como referência importante para o funcionamento do mundo contemporâneo, Santos (1996: 15) acena que “a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território. Nesse longo caminho, o Estado-Nação foi um marco, um divisor de águas, entronizando uma noção jurídico-política do território (...)”. Reconhecendo o território como a base, o fundamento do Estado- Nação, sobretudo no passado, o autor em foco adverte que, nos dias atuais, algo dessa realidade se transmuta. Então, o autor afirma que “assim como antes tudo não era, digamos assim, território ‘estatizado’, hoje tudo não é estritamente ‘transnacionalizado’. Mesmo nos lugares onde os vetores da mundialização são mais operantes e eficazes, o território habitado cria novas sinergias e acaba por impor, ao mundo, uma revanche”.

Segundo Haesbaert (2004), as Ciências Sociais redescobrem o território, no final do século XX, para falar do seu desaparecimento, explicitando essa ideia através do termo desterritorialização. Para o autor, este último termo pode encerrar mais um mito da chamada pós-modernidade e o conceito de território deve ser revisitado em toda sua amplitude, articulando as perspectivas materialistas (em suas concepções naturalistas ou de base econômica ou da tradição jurídica-política de território) e, idealistas numa perspectiva integradora e/ou relacional. Assim, é possível rediscutir o conceito de território em bases distintas daquelas que o reduziam, no passado não muito distante, ao habitat dos animais e das plantas, ou meramente à área geográfica controlada por um Estado Nacional.

O geógrafo francês Roger Brunet procura definir território referindo-se a uma malha de gestão do espaço, a um espaço apropriado, com sentimento ou consciência de sua apropriação, sendo um conceito passível de uma construção ao mesmo tempo jurídica, social e cultural (BRUNET, 1993). Outros franceses, como Jacques Lévy e Michel Lussault, reportam-se ao conceito de território relacionando-o a um espaço de métrica topológica ou das redes (LEVY e LUSSAULT, 2003). À parte das variadas definições de território, encontram-se no cerne do conceito elementos político-geográficos, como por exemplo as noções de apropriação e de controle social de uma determinada área geográfica.

De acordo com Raffestin (1993: 143), espaço e território não são termos equivalentes, o espaço é anterior ao território, o “território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator ‘territorializa’ o espaço”. Assim, metaforicamente, o autor em tela escreve que o “espaço é a prisão original, o território é a prisão que os homens constroem para si” (idem, p. 144). Além da noção de controle, implícita na metáfora da “prisão”, Claude Raffestin também considera a noção de limite como elemento fundamental para a construção de territórios. O autor afirma que definir, “caracterizar, distinguir, classificar, decidir, agir implicam a noção de limite: é preciso delimitar”. E acrescenta: “delimitar é, pois, isolar ou subtrair momentaneamente ou, ainda, manifestar um poder numa área precisa” (ibidem, p.153). Refletir sobre o território, como uma construção social, é pensá-lo como modo de divisão ou delimitação do espaço, de forma tal que, por seu intermédio, os grupamentos humanos estabeleçam alguma distinção entre si, conforme esclarece Gottmann (1973).

O geógrafo Guy Di Méo reforça a interpretação da ecogênese territorial apresentada por Claude Raffestin e agrega, de forma sistematizada, o que se pode chamar de significações suplementares para se pensar o conceito de território. São quatro significações, a saber:

1. A inserção de um sujeito num grupo implica a construção de um pertencimento, uma identidade coletiva. Essa é uma experiência concreta do espaço social que condiciona nossa relação com os outros, nossa alteridade. 2. O território traduz um modo de recorte e de controle de espaço garantindo a especificidade e a permanência, a reprodução dos grupos humanos que o ocupam. Essa é a dimensão política do território;

3. No campo simbólico, o território também pertence à ordem das representações sociais e pode expressar-se por sua natureza emblemática. Fala-se em território identitário, com dupla função: política e simbólicas;

4. Por fim, a importância do tempo de longa duração, da história estrutural, também deve ser levada em conta em matéria de construção social dos territórios (DI MÉO, 2001:38).

No que tange ao conceito de territorialidade, a geografia política contribui com revisões teóricas que apontam para a ampliação do significado desse

termo. Robert D. Sack é um dos geógrafos mais destacados no avanço dessa revisão teórica. Para esse geógrafo, a territorialidade humana é uma estratégia geográfica poderosa. Sack (1986) afirma que a territorialidade é uma relação com o espaço e se constitui na tentativa de afetar, influenciar ou controlar uma área geográfica específica. Segundo esse autor, a definição de territorialidade contém três aspectos interligados: a) a classificação ou delimitação de áreas; b) a comunicação (relativa às redes); e c) uma forma de controle social (definição de relações de poder). Essas territorialidades podem ainda, passar por ativação ou desativação, isto é, não são eternas. Por seu turno, Raffestin (1993: 161) fala em territorialidade estável e territorialidade instável. Este último autor ressalta que cada “sistema territorial segrega sua própria territorialidade,em que os indivíduos e as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais” (idem, ibidem).

Becker (1988:108) considera necessário “reconhecer modos e intensidades diversos da prática estratégica espacial”. Para tanto, distingue territorialidade de gestão do território. Para a autora, a territorialidade, no rastro das concepções de R.Sack e C.Raffestin, é a face vivida do poder, enquanto gestão do território “é a prática estratégica, científico-tecnológica do poder no espaço-tempo”. E, baseada em M. Foucault, acrescenta que a gestão do território integra elementos de administração de empresas e elementos de governamentalidade. Em síntese, naquele texto, a autora afirma que a gestão tende a se identificar com a logística, no sentido de poderosa preparação de meios e da velocidade de sua atuação, referente esta não só à rapidez como à projeção para o futuro. Nesse sentido, o conceito de território se presta à construção teórica desdobrada para a compreensão e formas de apropriação política do espaço, ou seja, o uso político-estratégico do mesmo. Além dos conceitos expostos até aqui, cabe enfatizar o conceito de fronteira. Ainda que muito arraigado ao tema clássico da guerra, em geografia política, a discussão do termo fronteira extrapola esse âmbito temático. Para além da distinção entre fronteira e limite, podem ser discutidos os tipos de fronteira e o seu caráter histórico-político. Na geografia política clássica, sob influência do organicismo, as fronteiras eram concebidas como o órgão periférico estatal, como assinalou a obra de F. Ratzel. Uma contribuição desse geógrafo alemão, quanto à construção teórica do termo, foi a ressalva de que as fronteiras são móveis, pois uma fronteira aparentemente rígida seria apenas a detenção temporária de um movimento. É bom ressaltar, de qualquer modo,

que as fronteiras “incorporam uma das mais reconhecidas relações entre o Estado e o território”, segundo Costa (1992:291).

No presente momento, em função das forças globalizadoras, retoma-se o debate acadêmico e público sobre as questões de fronteiras. Chega-se mesmo a cogitar o fim das fronteiras. Quanto a esse último aspecto, Martin (1992:60) alerta que a própria “ideia da formação de ‘blocos de países’ visando obter ganhos de escala parece por si só contradizer a tese do ‘fim das fronteiras’. Ao contrário, são novas fronteiras que estão surgindo, as ‘inter-blocos’, e acrescente-se, sem que as ‘nacionais’ tenham deixado de existir”. Os temas clássicos do expansionismo, do universalismo versus particularismo, bem como do regionalismo – desta feita na escala supranacional – reaparecem com força neste início do século XXI, a partir da problemática das fronteiras e das demarcações territoriais que delas decorrem.

Segundo Lacoste (2003:176) além de estarmos atentos para a distinção ilusória entre fronteiras naturais e artificiais, pois, diz o autor, todas as fronteiras são políticas, devemos estar atentos também para o fato de que a análise metódica de uma fronteira deve levar em conta não apenas a separação entre um Estado e outro ou o tipo e relevo no qual se apoia, mas sobretudo os diversos conjuntos espaciais que ela recorta. Ou seja, o autor insiste na atenção que recai sobre a relação entre a análise de fronteiras e o jogo de escalas geográficas que se tem e empreender nessa análise.

A geografia política tem abordado sistematicamente a configuração territorial do mundo, constituindo, tal abordagem, num tipo de vocação, qual seja uma análise ao nível planetário. Alguns conceitos foram desenvolvidos ao longo da disciplina, sobretudo quanto às hipóteses geoestratégicas sobre o poder mundial

– tratadas em outro tópico deste Manual. Mas é relevante destacar que os conceitos de centro e de periferia fazem parte desse léxico político-geográfico. Taylor e Flint (2002:21) escrevem que o “conceito de ‘periferização’ ou ‘processo que conduz à situação de periferia’ implica que estas zonas novas não se icorporaram à economia- mundo na qualidade de ‘sócios de pleno direito’, mas se incorporaram em condições desfavoráveis com relação aos antigos membros”. Os autores em tela advertem que uma zona geográfica, uma região ou um Estado se convertem em centrais ou periféricos dependendo dos processos que neles ocorrem. E isso não é apenas um argumento semântico. Para os autores, os processos de centro e de periferia são dois tipos opostos de relações complexas de produção. “Em termos simples, os processos de

centro consistem em relações que combinam salários relativamente altos, tecnologia moderna e um tipo de produção diversificada; enquanto que os processos de periferia são uma combinação de salários baixos, tecnologia mais rudimentar e um tipo de produção simples” (idem, p.22).

Da exposição conceitual anterior decorre a noção de semiperiferia. De acordo com os autores citados acima, constrói-se o conceito de semiperiferia como uma situação na qual se combinam, de forma particular, ambos os processos de centro e de periferia. Inspirados nas teorizações de I. Wallerstein, Taylor e Flint (2000:22) alegam que a “semiperiferia é interessante, porque é a categoria dinâmica da economia-mundo”.