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Síntese do capítulo

2. A participação em atividades de lazer e a ocupação do tempo livre dos jovens: contribuições da educação não formal e

2.4. Contextualização teórica: investigação sobre o lazer e o tempo livre

2.4.1. Tempo livre e lazer

No Império Romano, o tempo livre para os cidadãos era abundante e foi aumentando com a deterioração do Império. Depois de Sila, morto em 78 a.C., havia 93 dias dedicados a festas públicas, financiadas pelo Estado. Na época de Marco Aurélio, pelos anos 170 d.C., 155 dias do ano eram dedicados a diferentes tipos de espetáculos e, em 354 d. C., as festas públicas aumentaram para 200 dias, dos quais 175 dedicados aos jogos (Boullón, 2004). A melhor forma de compreender os efeitos nocivos que o tempo livre exagerado e mal orientado pode exercer sobre a sociedade é a opinião de Séneca a respeito:

Nada tão pernicioso para um bom caráter como o hábito de fazer algazarra nos jogos. Volto para casa com mais cobiça, ambição mais voluptuoso e até mais cruel e desumano, porque estive entre outros seres humanos. Por acaso presenciei uma exibição ao meio-dia, esperando algum engenho, alegria, descanso, uma exibição na qual os olhos humanos pudessem descansar do assassinato de seus congéneres. Pois foi ao contrário…é puro assassinato…Podes replicar: “Mas era um ladrão de estrada, matou um homem.” E daí? Admito que, como assassino, merecia o castigo. Mas tu, pobre homem, que crime cometestes para merecer sentar-te e ver esse espectáculo? (Mumford, 1948: 62)

Após a queda do Império romano, a cidade feudal foi o receptáculo de um sistema de vida que teve seus antecedentes nos mosteiros por volta do século V. Os que aceitaram viver assim negavam a propriedade, o prestígio e o poder, convertendo o trabalho em obrigação moral. Para eles, não existia o conceito de ócio, substituído pelo de vida contemplativa (Boullón, 2004).

Depois da Idade Média e com a chegada do Renascimento, o sistema econômico começa a transformar-se até chegar ao capitalismo. Assim se propiciou o aparecimento do novo empresário burguês, que julga o tempo de modo totalmente distinto dos seus antecessores. Para o homem de negócios renascentista, o tempo tem outro valor: os sinos dos campanários lembram, durante todo o dia, o transcorrer de cada hora de um tempo que não se pode perder. Mas, junto com a obrigação, apareceu como estabilizador o sentimento de diversão. Alfred Von Martin (1976: 89) lembra que: “O comerciante, além do negócio, tinha tempo para o esporte e para gozar a vida; não reduz tudo ao econômico, mas desfruta de uma grande variedade de interesses”. Além das atividades intelectuais, no Renascimento acrescentou-se a prática de esportes. Em algumas escolas, aparece o costume de estimular nos estudantes o adestramento em exercícios físicos, natação, caça e dança.

Ao entrar no período Barroco, em pleno século XVII, aceleram-se as tendências em relação ao tempo livre surgidas na etapa anterior. A mudança de alguns costumes sociais, como o de separar o lugar de trabalho do de

moradia e a incorporação das carruagens ao trânsito da cidade, determinam e facilitam que as pessoas ocupem as ruas mais assiduamente. O pedestre se vê deslocado pelas carruagens, e inventa-se a calçada para diferenciar os dois tipos de trânsito (Boullón, 2004).

No século que começa em 1800, continua e se desenvolve a Revolução Industrial, iniciada uns cinquenta anos antes, e sente-se os efeitos da Revolução Francesa. Ambos os acontecimentos vão mudar as estruturas políticas e sociais do mundo. Durante o apogeu da Revolução Industrial, o tempo livre quase deixou de existir para o trabalhador industrial, cuja vida transcorre entre o descanso animal e o trabalho desqualificado.

A esse respeito, Mumford (1945: 286) nota que:

Já não bastava que a indústria proporcionasse meios para viver: devia criar uma fortuna independente. O trabalho já não era uma parte necessária da vida: chegou a ser o fim primordial. Um proletariado sem terra nem tradições, cada vez mais numeroso, foi levado aos novos centros produtivos e obrigado a trabalhar nas indústrias. Se não podiam conseguir camponeses, as autoridades aliciavam vagabundos; se era possível prescindir de homens adultos, utilizavam-se serviços de mulheres e crianças. Essas novas cidades e povos fabris, que nem sequer conservavam monumentos de uma cultura mais humana, não conheciam outra coisa que o trabalho contínuo e pesado. As operações eram monótonas; o ambiente, sórdido. Nesses novos centros vivia-se uma vida vazia e bárbara. A ruptura com o passado era completa. As pessoas viviam e morriam diante do poço de carvão ou da fábrica de algodão em que passavam de 14 a 16 horas por dia; viviam e morriam sem memória nem esperança, contentando-se com migalhas que as mantinham vivas ou com o breve consolo de poder sonhar quando caiam adormecidas. Os salários, que nunca tinham subido acima do nível de subsistência, baixaram ainda mais com o advento da nova indústria, devido à mecanização.

A partir de 1870, e quando os sistema industrial passava por sua etapa mais funesta, a classe média, despreocupada, começa a viver a Belle Époque. A classe média tomou gosto pelas atividades ao ar livre e, além de admirar a paisagem, passou a usá-la (Boullón, 2004).

No princípio do século XX, surgem movimentos humanitários que visam apoiar não só as crianças e os jovens nos seus tempos livres, mas também a famílias. Estes apoios aos tempos livres das crianças são promovidos por instituições laicas e religiosas, valorizando-se neles a função assistencial quer às crianças e aos jovens quer às famílias. A partir dos anos 60 há outros fatores que influenciam a criação de espaços de educação no tempo livre. A Conferência Regional Europeia sobre os tempos livres que se realizou em Praga em Abril de 1965, promovida pela UNESCO, salientou a importância e as funções da educação nos tempos livres. Os tempos livres deviam complementar a vida do indivíduo. Aconselhava-se, por isso, que fossem desenvolvidas atividades culturais promovidas por instituições de animação sócio–cultural que proporcionassem espaços de lazer e que fossem animados por pessoal especializado. Esta democratização cultural, revalorizada na década de 80, vai facilitar a vida associativa e a organização coletiva dos tempos livres (Boullón, 2004).

Em termos de abordagens diretas, pelo menos cinquenta anos separam o desenvolvimento dos estudos sobre o lazer, na Europa e no Brasil. Na Europa, o contexto histórico que propiciou o interesse maior por essa questão está diretamente relacionado ao processo de industrialização. No Brasil, muito embora também possa ser verificada a mesma relação, o assunto encontra-se mais vinculado à urbanização da vida nas grandes cidades (Marcellino, 2010). No clássico O direito à preguiça, do militante socialista Paulo Lafargue (1842– 1911), publicado em 1883, cujos escritos baseiam-se nas idéias de Marx e seu ideário, o autor aborda a questão dos direitos dos trabalhadores ao lazer enfatizando que estes direitos deveriam se dar nos mesmos patamares dos privilégios dos patrões (Camargo, 1989). Na evolução dos estudos sobre o lazer, destacam-se ainda as obras de António Gramsci (1891–1937) cujos escritos (1978, 1979, 1980, 1981) são marcados por uma estreita vinculação entre sua prática (ação) e seu pensamento (teoria), depurados pelo isolamento no cárcere. Também o pensador Bertrand Russell (1872–1970) em seu Elogio do lazer (1977), publicado pela primeira vez em 1932, defende sua postura ao examinar as relações entre trabalho e lazer, colocando seu desencanto com relação ao primeiro e analisando as possibilidades do segundo (Mascarenhas, 2005; Marcellino, 2010; Boullón, 2004; Outras obras contribuiram

significativamente para os estudos do lazer como o clássico Homo ludens (1971), lançado em 1938, de autoria do historiador Johan Huizinga (1872– 1945), ao examinar o lúdico a partir do desenvolvimento histórico e para além de suas características biológicas, como fenômeno cultural, analisando sua natureza e significado (Camargo, 1989). Ressalta-se ainda as obras do sociólogo francês Roger Caillois, O homem e o sagrado (1988), publicado originalmente em 1950 que analisa as relações entre jogo e sagrado; este sociólogo foi um estudioso, entre outras questões, do lúdico manifestado no jogo, particularmente em Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem (1990), publicado originalmente em 1958 (Mascarenhas, 2005).

Muitas contribuições referentes aos estudos do lazer são encontradas na literatura como, por exemplo, a obra do economista Thorstein Veblen (1857– 1929) que traz contribuições a uma possível teoria do lazer, em seu livro A teoria da classe ociosa (1965), originalmente publicado em 1904, O trabalho em migalhas, publicado originalmente em 1964, de autoria do sociólogo francês George Friedmann (1902–1977), traz também significativa contribuição aos estudos do lazer. O livro, que tem como subtítulo “especialização e lazeres”, analisa detidamente a alienação do trabalho, levando em conta a questão de sua fragmentação; a obra de Sebastian De Grazia (1917–2001) Tiempo, trabajo y ócio (1966), na qual analisa o aspecto “tempo” e as relações trabalho e lazer (Marcellino, 2010; Boullón, 2004; )

Outras publicações que contribuiram para além do lazer com a temática do tempo livre são por exemplo, Tempo livre, Adorno (1995), onde o autor defende que o tempo livre deveria ser o tempo em que o indivíduo tem por benefício, e não privilegiado, para decidir, escolher e organizar segundo suas próprias vontades; Marcuse em Eros e civilização (1968) onde o autor faz um diagnóstico da chamada sociedade moderna, semelhante ao abordado em A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional (1982). O sociólogo alemão Norbert Elias (1879–1990), autor de vasta obra, traz suas principais contribuições para a teoria do lazer nos dois volumes de O processo civilizador (1994), publicados originalmente em 1939 (na Suíça), e posteriormente, com sua redescoberta e valorização, em 1969 (alemão) e 1978 (inglês), e também no livro que divide com Eric Dunning, A busca da excitação (Elias & Dunning, 1992; Mascarenhas, 2005; Marcellino; 2010; Boullón, 2004). No Brasil, o lazer

como fonte de estudo e pesquisa só muito recentemente passou a figurar como motivo de preocupação entre os pensadores e pesquisadores brasileiros. Ainda assim, nomes como Alceu Amoroso Lima (1974), Vicente Ferreira da Silva (1964) e Inezil Penna Marinho em 1957 ocuparam-se da questão do ócio, do significado do não – trabalho ou das perspectivas abertas pela automação da recreação (Marcellino, 2010).

José Acácio Ferreira foi um dos precursores das publicações sobre os estudos do lazer quando em 1959 publicou seu livro Lazer Operário, fruto de uma pesquisa empírica sobre trabalhadores assalariados em Salvador. A motivação para a realização do estudo se deu depois de assistir uma conferência de Gilberto Freyre onde este afirmou que à medida que a máquina substituía o homem, a organização do lazer tornava-se mais importante que a organização do trabalho. O autor afirma que “todo o progresso cultural da humanidade tem-se realizado com base no lazer” que, se “usado por todo o povo e num sentido construtivo, o país progride” (Ferreira, 1959: 27).

Em 1966, o sociólogo José Vicente de Freitas Marcondes, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, realiza palestra sobre o tema Trabalho e Lazer no Trópico, onde abordava os diversos níveis de trabalho (doméstico, escravo, indígena, industrial, etc.) e enfatizava a importância do lazer no processo de desenvolvimento da sociedade. Alguns anos mais tarde, em 1970, é criado o curso de Pós-Graduação sobre Sociologia do Lazer e do Trabalho, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, sob sua coordenação (Requixa, 1997).

A partir do entendimento do lazer como uma revolução, originária da própria evolução da vida humana e as relações entre o ócio e o negócio e as maneiras pelas quais os homens levavam em consideração essas relações, João Camilo de Oliveira lança em 1968, o livro Lazer e Cultura, obra de caráter teórico que caracteriza a cultura de massa (Requixa, 1997).

Desde a década de 1980, no Brasil, testemunha-se o desenvolvimento de uma produção teórico crítica, impulsionada pela vinda do sociólogo francês Joffre Dumazedier (1973, , 1979) para trabalhos no SESC, na década de 1970 (Marcellino, 1983, 1987, 1990).