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várias pessoas. Não faço a mínima ideia de como se lida com isso. Nem naquele momento se interioriza isso, digere-se ao longo dos anos, se é que algum dia se consegue resolver isso. Era tremendo, demais para putos tão novinhos. Matar alguém com um motivo não deve ser tão difícil de enfrentar. Agora, causar a morte a quem não nos fez mal nenhum … não há motivo, não há uma razão… cada um lidou com a situação à sua maneira. Na altura falamos muito sobre o acontecimento em si. Mas, das coisas mais profundas nunca falamos… sentimentos, culpa… sei lá. Se calhar isso tem um tempo para acontecer. Se calhar tememos acabar a acusarmo-nos uns aos outros. Combinamos, em conjunto, o que íamos fazer, não há balança que dê para pesar responsabilidades. Continuamos amigos, há entre nós uma cumplicidade muito grande, das vidas antes do crime e depois do crime. A eles, há coisas que nem preciso explicar, eles sabem, eles sentem… O que se passou é tão grande que nos esmaga.

Até ser preso, no período correspondente à investigação do crime, deixei de dormir. Nos momentos em que o tentava fazer acordava aos gritos e em pânico. Mesmo depois de preso houve muitas noites longas. Durante os primeiros anos de prisão pensava obsessivamente no crime, relembrava-o constantemente para o tentar perceber. Com o passar do tempo as coisas foram-se atenuando. Contudo, na cadeia somos diariamente confrontados com o crime cometido. Lá fora dou comigo a pensar que está toda a gente a olhar para mim e a reconhecer-me. Enquanto eu pensar isso não posso sentir-me bem, vivo sempre com isso, não posso fugir, é um desconforto, uma desconfiança total.

Eu não tenho medo, penso eu, mas tenho, porque ele vive cá dentro.

A cumplicidade com os meus companheiros é algo para a vida. Não sei se nos vamos continuar a encontrar, mas de uma coisa estou certo, vamos estar sempre próximos. Temos um destino às costas que partilhamos. Eles partilham e percebem a minha dor porque a sentem também. Além da cumplicidade, há uma grande lealdade entre nós. Apesar de diferentes somos muito amigos e o contexto prisional serviu para nos unir ainda mais. Partilhamos muitas coisas, só entre nós determinados assuntos são tratados, esses não podem entrar dentro de casa e ser partilhados com a família, são nossos.

Desde o início, até agora, a culpa foi-se modificando. Inicialmente a culpa era tão física que agoniava. Sentia nojo, negava tudo, depois percebia que era eu e tinha vergonha de mim próprio. Eu baixava os olhos, tinha vergonha do que fiz. Eu tinha uma ideia de mim próprio, mas aquele gajo que aparecia na televisão não era eu. Tanto insistiram que eu

comecei a acreditar nisso. Essa é a fase mais perigosa de todas. Começamos a ter comportamentos compatíveis com aquela personagem. Se eu sou aquilo eu sou um bicho. Qual é o limite para aquele homem? Se eu tivesse estacionado naquela fase, hoje eu era um homem muito perigoso.

A culpa passa por montes de fases. Hoje é mais silenciosa, é mais íntima. Não posso pensar nela todos os dias, ela não diminuiu mas já consigo dar uma explicação aos acontecimentos, não uma justificação porque essa não existe. A responsabilidade é minha, sem dúvida, mas não sou aquele que diziam, nunca mataria ninguém sem razão. Sei hoje melhor quem sou e o que sou.

Não estava preparado para a prisão. A prisão máxima que me foi atribuída apaziguou a família das vítimas. A mim não. Não há justiça para uma coisa tão tremenda como aquela. Não há forma de reparar o mal feito. Quem esteve próximo do processo percebeu o que se tinha passado, mas o mediatismo do caso obrigou-os a descreverem-nos como bichos.

Só chorei uma vez, a sério, de uma forma diferente, um chorar que não sei de onde vem. Foi no preciso segundo em que me fecharam pela primeira vez a porta da cela. Não era um choro de desespero, foi uma lavagem, passei horas a chorar. Depois, lembro-me de, enrolado na cama, ouvir um dos meus companheiros a chorar na cela contígua à minha. Depois, dormi… pela primeira vez tranquilamente.

Não tive pena de mim. Tive pena dos meus pais, da namorada da altura, do meu irmão. Sabia que eles iam pagar por tudo o que eu tinha feito. De mim não tinha tempo para ter pena. Estava na prisão tinha que me mexer. Pena de mim, não. Nem sequer era merecedor desse sentimento. Pena dos outros, sim. Ainda hoje o sinto.

Na prisão, os primeiros anos foram muito difíceis. As pessoas só conhecem os personagens da televisão. Passamos por todos os rituais de humilhação. Puseram-nos nus em frente a um grupo de guardas armados. Ficamos pequeninos. A nudez faz um homem sentir- se pequeno à frente dos outros, a fazer a respectiva flexão de pernas. Era uma ferramenta de opressão. Mostravam poder. Nós não éramos presos comuns, e nunca fomos tratados como tal. Todos me queriam ver, um jovem fechado numa cela 24 horas por dia. Queriam ver se eu tinha cauda ou corninhos… não sei … as pessoas tinham um comportamento estranho, no mínimo desequilibrado.

No princípio levou-me ao desespero. Houve noites de desespero físico. Mas, um homem deve ser mesmo um bicho de hábitos, estive 7 meses fechado numa cela de isolamento e fui-me habituando. Dava comida às pombas e lia. Escrevi um diário, dava muitos erros,