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Procurei trabalho. Passei por um restaurante, uma fábrica, um hipermercado, uma padaria... nunca me adaptei. Houve uma fase em que trabalhava e estudava. Trabalhava para pagar o externato e os custos eram muito elevados. A minha melhor experiência foi um curso técnico profissional ligado às artes. Senti que tinha encontrado o meu lugar. O curso tinha que ser pago e o meu pai já não acreditava em mim e recusou-se a pagá-lo. Desisti.

Eu não queria apenas ganhar dinheiro. Queria distinguir-me pelo que fazia. É curioso como perguntamos a alguém que não conhecemos, logo a seguir ao nome, o que é que essa pessoa faz. O trabalho é, talvez, aquilo que mais distingue as pessoas. Alguém que desejou ser médico, aviador ou Tom Sawyer, nunca será verdadeiramente feliz a servir à mesa. Esses anos foram marcados pelo conflito entre aquilo que eu era e aquilo que desejava ser. O insucesso tornou-se um hábito, e eu, de fracasso em fracasso, continuei a procurar o meu papel no mundo.

O desporto continuou a ser a minha paixão e a actividade de que nunca desisti. Treinava desportos de combate e aí conheci pessoas que se dedicavam à noite e à Segurança. Disseram-me que em poucas horas ganhava muito dinheiro e tinha muito tempo livre para tudo o resto. Aceitei.

Da primeira vez que trabalhei na noite só fazia fins-de-semana mas, acabei por me envolver profundamente. O primeiro salário foi gasto num fogão para a minha mãe.

O meu pai percebia o que se estava a passar e não aceitava. Entro em conflito com ele e saio de casa. Tinha 18 anos e fui viver num apartamento com um amigo que também andava nessas vidas. Apesar das dificuldades, venci. Consegui sobreviver sozinho, de forma honesta. Ganhava pouco e assim que surgiu a oportunidade de trabalhar à noite regressei.

A violência era uma constante desse mundo e, pessoalmente, não lidava bem com isso. Naquela idade não reflectimos no que fazemos. Há uma espécie de mística na noite. A violência é um meio para atingir um estatuto. Os putos afirmavam-se pela violência.

Não podia mostrar sensibilidade, contudo, acho que nunca a perdi. A verdade é que durante muito tempo trabalhava na noite e, durante o dia, auxiliava um amigo com paralisia cerebral, dava-lhe banho, vestia-o, levava-o à universidade, ajudava-o a locomover-se, dava- lhe de comer, levava-o à casa de banho, enfim, fazia tudo o que fosse necessário e em momento algum senti que isso pusesse em causa a minha masculinidade, força, poder … enfim, aquilo que se entende ser de macho.

Vendi a alma ao diabo, é a velha metáfora… Em troca da liberdade total. Estava acima dos outros. Era completamente livre. Isso porque os outros não existiam. Não havia limites, eu era o dono do mundo e nada nem ninguém se podia meter entre mim e esta minha ânsia de dominar e viver a vida sem ter que prestar contas a ninguém.

Inicialmente não me questionei sobre a ilegalidade dos actos que praticava. A profissão de Segurança não é ilegal. Uma vez por outra, havia uma agressão grave e tínhamos que fugir à polícia. Como nunca correu mal e, tal como os adolescentes, somos imortais, controlamos tudo. Não temia a prisão ou as suas consequências.

Com o tempo, tendo em conta que comecei a trabalhar a sério a partir dos 18 anos, passados dois anos estava a entrar em esquemas mais pesados e arriscados, como as cobranças difíceis. Apesar disso, as coisas iam correndo bem e relativizei o risco.

Aos 20 anos estava saturado de tanta violência e risco. Procurava ambientes menos violentos. Comecei a trabalhar na Foz. Era tudo diferente. O estatuto das pessoas que frequentavam a casa em que trabalhava era completamente diferente. As pessoas eram bonitas, educadas, sabiam estar, o meu trabalho era menos duro. Não tinha que lidar com armas e outras coisas que me começavam a desagradar. Incomodava-me uma certa arrogância com que era tratado por alguns clientes. A violência existia mas era diferente, copos a mais essencialmente. Um dia tive um problema com uma figura pública portuguesa. O homem estava com os copos e agrediu-me, só respondi à agressão. Não me arrependo, a culpa foi dele. O único caso que me correu mal trouxe-me à prisão… foi irresponsabilidade… No meu primeiro trabalho, numa zona complicada, apontaram-me uma arma à cara. Na Foz as coisas eram diferentes. Os clientes olhavam para nós de lado, eram pedantes mas … as raparigas era a mesma coisa, no final da noite andavam aos beijos a nós. Tínhamos que chamar um táxi e mandá-las embora, ou então, ligar ao paizinho.

Essas pessoas, os “civilizados”, movimentavam-se bem no nosso mundo, recorriam aos seguranças para arranjar cocaína ou outra coisa qualquer. Protegiam-se de dar a cara. Muitos queriam conhecer o segurança, eles gostam de tratamento especial, conhecer o segurança era uma porta aberta … Muitos “serviços” apareciam a partir dessas pessoas. Muitas vezes fazíamos serviços a advogados. A justiça era muito morosa e o próprio advogado arranjava quem fizesse o serviço, neste caso nós.

As pessoas, as motivações das pessoas são as mesmas, muda só a casca. A noite é de excessos e esses são da mesma natureza, droga, sexo e enfim, tudo o que é excesso … a forma como se expressam é que é diferente.

Quando trabalhava num bar mais rasca, revoltava-me o facto de conhecer as raparigas que trabalhavam na noite e perceber como eram maltratadas. Algumas delas desabafavam comigo e diziam que tinham de receber clientes que eram extremamente nojentos. Fisicamente, abusavam delas, não aceitavam limites, usavam a violência se necessário.

À noite as fronteiras entre as classes esbatem-se. O senhor vai para a cama com a prostituta mais rasca e a dondoca vai para a cama com o segurança mais fatela. Tenho um certo prazer em verificar que o Senhor é rasca, é fatela, tem comportamentos que qualquer homem pode ter. A partir daqui vemos as pessoas de outra forma. Por outro lado, põe as injustiças todas a nu.

A noite tem tudo para oferecer. Noite só com diversão não é noite. Nela cabe tudo, de dia não. A noite oculta e isso faz com que nos libertemos. O mundo da noite é um mundo sem preconceitos, sem barreiras. Só me enfastiei da violência.

À noite fazem-se bons conhecimentos, para o bem e para o mal. Também se ganham inimigos. O gajo a quem bati é um dos poderosos que me poderia ser útil. Nesse caso, as coisas correram mal. Ele atacou-me, sem razão para o fazer, a reacção foi imediata e parti para a agressão. Devo admitir que não sabia quem ele era. Se soubesse, muito provavelmente, não o teria agredido. O patrão não ia gostar. Os poderosos são protegidos pelo próprio poder de que se revestem.