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5. DISCUSSÃO

5.2. Manifestações do comportamento suicida: a especificidade das

5.2.2. Tentativas interrompidas e abortadas

Com relação às tentativas interrompidas durante a vida (TIDV), nossos resultados demonstraram maior associação com o sexo feminino em comparação às TEDV, com sete vezes mais ocorrência dessa manifestação nas mulheres. Estes resultados corroboram com a hipótese de que as tentativas interrompidas devem ser consideradas como componentes do comportamento suicida, contribuindo como fator de risco, assim como afirma o estudo de Burke et al. (2016) (45). Em um estudo com indivíduos com diagnóstico de depressão, diferentemente de nossos resultados, Al- Habeeb et al. (2013), observaram predominância de todas as formas de tentativas de suicídio no sexo masculino, o que pode ser explicado pela amostra predominantemente masculina do estudo e talvez por se tratar de uma amostra culturalmente diversa da nossa (44). Por outro lado, este estudo demonstra de maneira similar a forte expressão das tentativas interrompidas no contexto do comportamento suicida.

Na relação entre TIDV e impulsividade, os resultados podem ser considerados como os mais substanciosos deste trabalho, uma vez que a pontuação total e todos os subtipos da escala BIS-11 apresentaram associações fortemente significativas, tanto na comparação entre os grupos como nas análises multivariadas. A discussão destes resultados, entretanto, é difícil principalmente pela questão conceitual referente à especificidade da manifestação, na forma interrompida. Como descrito anteriormente, apesar de trabalhos mais recentes ressaltarem a importância desta caracterização no estudo do comportamento suicida (35,39,40), ainda existe certa resistência sobre a relevância da diferenciação das tentativas interrompidas e

abortadas dentro do contexto geral de tentativas de suicídio, fazendo com que muitos trabalhos as descrevam, mas não as considerem separadamente (14,37,38). Além disso, praticamente não há literatura que aborde as características inerentes a estes tipos de manifestações, com a teoria baseando-se apenas nas definições existentes (3,34). Steer et al., em 1988, realizaram um estudo prospectivo com 499 pacientes hospitalizados por tentativas de suicídio e verificaram que aqueles que possuíam histórico de tentativas interrompidas apresentaram chance três vezes maior de cometer suicídio do que os com histórico de tentativas efetivas. Neste trabalho, os autores discutem que, apesar de paradoxalmente as tentativas interrompidas ocorrerem com menor planejamento para evitar serem descobertas, passando a impressão de menor gravidade, carregam o mesmo desejo de morte das efetivas. E levantam, por fim, a hipótese de que a tentativa de suicídio interrompida seja uma forma de comunicação, de “clamar por ajuda”, como característica da personalidade de alguns indivíduos (109). Burke et al. (2016) também observaram similaridade no desejo de morte entre indivíduos com tentativas interrompidas e/ou abortadas e os com tentativas efetivas (45). Portanto, no intuito de tentar relacionar os resultados obtidos e, levando em consideração a amostra usada neste trabalho, a hipótese levantada é a de que a conjunção de intensa impulsividade como traço de personalidade, com os sintomas relativos ao quadro depressivo, possa propiciar maior frequência de tentativas interrompidas.

Para justificar a hipótese formulada acima, primeiramente se faz necessário resgatar a característica de heterogeneidade da impulsividade, composta por diferentes dimensões de comportamento, reguladas por diferentes circuitos neurológicos: a) a impulsividade motora, relacionada a respostas rápidas e impensadas, regulada principalmente pelo córtex pré-frontal, estriado dorsal e gânglios da base; e b) a impulsividade das tomadas de decisões (decision making), relacionada a análise das consequências a longo prazo e do aprendizado das consequências negativas de comportamento, regulada principalmente pelo córtex pré- frontal, estriado ventral, amígdala e hipocampo (49–51). Estudos utilizando testes para avaliação de tomada de decisões relacionaram a maior impulsividade com deficiências nessas habilidades, demonstrando falha no aprendizado e na adaptação de diferentes recompensas na modulação das escolhas (110), com maior

susceptibilidade à recompensas imediatas e menor sensibilidade às consequências negativas das escolhas (111).

No comportamento suicida, a impulsividade relacionada às tomadas de decisões (decision making) recebe particular atenção, com muitos estudos associando este comportamento a uma deficiência nesta dimensão. Dombrovski (2017) caracteriza o comportamento suicida como um “distúrbio de predição e decisão”, relacionado à falhas no valores de três aspectos da tomada de decisão: tempo, riscos e relações sociais, sugerindo a possível influência da impulsividade nas respostas dos circuitos cerebrais relacionados (112). Vanyukov et al. (2016), em um estudo de caso- controle, ao comparar exames de ressonância magnética funcional com testes de tomadas de decisões em indivíduos diagnosticados com depressão com e sem histórico de comportamento suicida e controles, constatou associação negativa entre a resposta de regiões paralímbicas e maior pontuação em escala de impulsividade, sugerindo que indivíduos impulsivos têm maior chance de escolhas mais imediatas e menos acertadas (113).

Por outro lado, outros estudos ressaltam que as alterações nas tomadas de decisões no contexto do comportamento suicida não deve-se apenas à impulsividade, mas sim às alterações do humor, assim como foi observado em uma meta-análise de vários estudos sobre depressão e testes de tomada de decisão (114) e estudos comparando pacientes depressivos com e sem histórico de comportamento suicida (115). Jollant et al (2007), ao avaliar 317 pacientes psiquiátricos, não verificou associação entre alterações em testes para avaliação de tomadas de decisões e a impulsividade como traço de personalidade, mas sim com labilidade de humor, sugerindo que esta última possa fazer papel modulador na tomada de decisão em indivíduos impulsivos (116). Em um estudo mais recente, Deisenhammer et al. (2018) obtiveram as mesmas conclusões ao constatar a associação de menores pontuações em testes avaliando a tomada de decisão sob risco, com depressão mas não com impulsividade (117).

Apesar das observações da atuação tanto da impulsividade como da depressão na contribuição para as deficiências nas tomadas de decisões para risco de comportamento suicida, isoladamente, estas relações não se aplicam na totalidade dos casos. Acredita-se que mais componentes precisem estar presentes para o

engajamento do ato da tentativa de suicídio. A associação entre depressão e impulsividade pode aumentar esse risco, como observado em estudos que relataram presença de tentativas de suicídio pouco planejadas em pacientes depressivos com maior impulsividade (118). Contribuindo ainda mais, fatores externos precipitantes, que causam aumento do sentimento de dor e desesperança, podem funcionar como gatilho ao desencadearem uma resposta impulsiva para pôr fim ao sofrimento. Vários estudos trazem à tona esta ação ambiental, como descrito por Dombrovski et al. (2017), ao relacionar a vulnerabilidade interpessoal e os conflitos sociais com o desencadeamento da crise suicida (112). Cáceda et al. (2014) observaram que pacientes depressivos com histórico recente de tentativas de suicídio apresentavam maior sofrimento psíquico e mais impulsividade em teste de tomada de decisão do que aqueles sem tentativas e controles; sendo que, após uma semana, verificaram diminuição de ambos os aspectos, conjuntamente com a ideação suicida, levantando o questionamento sobre a possível transitoriedade e correlação da impulsividade de decisão e do sofrimento psíquico com a gravidade do comportamento suicida (119).

Portanto, levando-se em consideração a argumentação descrita e, com os resultados obtidos demonstrando forte associação da ocorrência de TIDV com a pontuação da escala BIS-11 não apenas total, mas também em todos os subtipos, acredita-se que, em associação com o diagnóstico de depressão, uma maior impulsividade presente em todas as dimensões, possa promover uma ‘facilitação’ para a ocorrência de tentativas de suicídio com menor planejamento, manifestadas na forma de tentativas de suicídio interrompidas.

Com relação às tentativas abortadas durante a vida (TADV), os resultados das análises univariadas e multivariadas não apresentaram significância para nenhuma comparação realizada. Tal resultado pode ser analisado em direção oposta ao discutido em relação às tentativas interrompidas durante a vida (TIDV). Primeiramente, pela caracterização desta forma de tentativa de suicídio que, por definição, é descrita como uma tentativa interrompida pelo próprio indivíduo antes de completar o ato (3,34). Devido a esta característica, existe ainda muita ambiguidade com relação à importância que este tipo de manifestação de tentativa de suicídio tem na avaliação do risco para o comportamento suicida. Apesar da sua relevância ser relatada desde 1998, por Barber et al. (42), e outros estudos ressaltarem a importância

da caracterização desta forma de tentativa na avaliação do risco suicida (35,39,40), poucos estudos ainda incluem essa diferenciação em suas pesquisas (43,44).

A ausência de resultados significativos entre as pontuações da escala BIS e TADV pode, por outro lado, implicar na formulação da hipótese de que, essa manifestação de tentativa de suicídio possa estar relacionada a menor impulsividade, uma vez que, por sua característica, o indivíduo consegue por si só inibir o ato de continuidade da tentativa de suicídio. Não foi encontrada na literatura nenhuma teoria que reforçasse esta hipótese, porém, em alguns estudos essa mesma ideia foi levantada (35,41), permanecendo, portanto, de forma especulativa.

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