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Teoria do Trabalho em Saúde: relativização do conceito de ‘profissão’ e o

o devir institucional

Nesse estudo, o conceito de profissão proposta pela Sociologia das Profissões (Machado, 1995) foi relativizado e ampliado para a noção de trabalho a partir das idéias de Schraiber (1993), o que se faz mais útil para os fins aqui almejados. Como se está falando em processo de trabalho em saúde, dois outros autores de referência serão Mendes-Gonçalves (1992) e Teixeira (2000; 2004, 2005). Acredita-se que a forma como ambos pensam o trabalho dos profissionais em atenção básica à saúde se

13 Para Lourau (1993), análise institucional e socioanálise são nomes diferentes para um mesmo

projeto. Aquela se refere à questão teórica, que tem influência da Psicoterapia Institucional e da Pedagogia Institucional. Esta apareceu logo em seguida como um método de intervenção totalmente determinado pela teoria da análise institucional. Portanto, seria a única distinção possível.

complementam em certo sentido e permite ampliar a visão sobre essa temática. O objetivo é experimentar um diálogo interdisciplinar que pode contribuir na análise que se pretende fazer.

Em relação à profissão, esta começa a se configurar dentro daquilo que Machado (1995, p. 24-25) chamou de comunidade de pares ou corporativismo. Para esta autora, o corporativismo é uma “cooperação entre colegas”, uma “organização do eu sou” – médico, psicólogo, etc.– com características bem definidas, com um senso de identidade entre os membros, valores comuns e limites claros.

Para Albuquerque (1978, p. 47), a corporação caracteriza justamente a organização profissional da produção individual independente14, uma vez que define as condições de relação estabelecida entre “o trabalhador e seus meios e objeto de trabalho”.

Uma profissão se define tanto pelo corpo de conhecimentos que controla quanto pelo monopólio de sua prática em mercado e a autoridade profissional é centrada naquele que possui o conhecimento especializado para o problema do cliente (Machado, 1995; Coelho, 1995).

Pode-se dizer que o objeto institucional, que marca o monopólio sobre um saber e suas práticas, também posiciona cada ator em espaços delimitados entre os que sabem e os leigos, os quais, apesar de terem o controle sobre o objeto, o delegam a um especialista que, pelo seu conhecimento específico, tem os instrumentos adequados para manipulá-lo (Albuquerque, 1978).

É o que Machado (1995, p. 21) chama de “corpo esotérico” do conhecimento, o qual deve conter segredos e técnicas acessíveis somente aos profissionais, mas manter certa abertura à visibilidade social, a fim de que o leigo reconheça e busque os serviços especializados do profissional. Segundo esta autora, é a retenção do conhecimento, sua especificidade e o mistério em torno do mesmo que formam o eixo central do profissionalismo. O processo de profissionalização dos diversos

14 “Produção individual independente” pensada no contexto das profissões liberais. Mello (1983, p.

46) prefere usar o termo atuação autônoma, por considerar que o termo profissão liberal pode ser reduzido a um profissional que trabalha sem patrão, situação esta que não se restringe ao profissional liberal. Ela esclarece que, mais do que isso, o que diferencia o profissional liberal de outros trabalhadores é sua formação técnico-científica realizada em curso superior e à adesão a um Código de Ética Profissional. Neste estudo manteremos o termo profissão liberal para designar a produção individual independente.

ofícios na sociedade corresponde ao aumento da complexidade do seu saber esotérico, daí ser relevante a passagem de ação apenas técnica para uma de natureza técnico-científica.

Apesar do conceito de profissão proposto por Machado (1995) ser útil na identificação de processos de mudanças, por destacar determinados aspectos e delimitações tanto nas relações quanto nas atribuições particulares a que o profissional passa a fazer frente na sociedade, seu foco está na criação e no uso do

conhecimento acumulado na resolução de problemas de um cliente individual ou

coletivo. As atividades correspondem a um conjunto de saberes e a autoridade profissional se relaciona ao “perito” (Albuquerque, 1978, p. 76), ou seja, aquele que tem o conhecimento especializado para o problema do cliente.

É por esse motivo que Schraiber (1993) prefere a noção de trabalho ao de profissão, pelo fato daquela incorporar questões relativas o mercado, as relações laborais e a institucionalização dos afazeres. Em outras palavras, a autora encontra limites em caracterizar as ações profissionais como derivada apenas da posse de conhecimentos, sobretudo quando se refere a determinantes de mercado, da organização dos serviços e, pois, das questões institucionais na configuração das práticas cotidianas.

Schraiber (1993), ao estudar a passagem do que ela chama de medicina

liberal (cuja liberdade na organização e produção do trabalho, e na prestação de

serviços assume um caráter autônomo) para a medicina tecnológica (em que há grande abertura de mercado conexa ao assalariamento do trabalho médico e, assim, constrangimentos na autonomia antes referida), identificou três esferas de repercussão desse movimento: a mercantil, a organizativa da produção da assistência e a esfera técnica dessa produção. Em todas se observaram mudanças na autonomia profissional diante de novas exigências do mundo do trabalho.

Segundo a autora, ao falar do trabalho médico, a prática liberal contribuiu para que os estudos sobre a profissão situassem a prática mais em relação com o conhecimento e com características pessoais do profissional (disposição para servir e vocação pessoal), do que à categoria trabalho, deixando de lado aspectos socioeconômicos e políticos.

Schraiber (1993) concorda com Machado (1995) no que diz respeito à ética profissional que o saber esotérico demanda. De acesso muito limitado ao grupo que o detém (corporação de ofício), é necessário definir virtudes no uso desse saber, que correspondem às obrigações com seus clientes e pares e que identifica o profissional como agente de determinada prática.

Na verdade, os elementos que definem uma profissão podem mudar com o tempo, caracterizando-a pela sua dinâmica de interação com o contexto social e não somente com o saber que a define. O processo de transformação das sociedades atuais configura novos cenários para o mundo do trabalho e altera também as práticas e atitudes dos profissionais. Por se constituírem em processos e estruturas sociais, as profissões também sofrem contínuas mudanças no seu interior que alteram sua relação com a sociedade (Achcar e Bastos, 1994; Peduzzi, 1998, 2001).

Neste sentido e pensando o processo de trabalho em saúde, Donnangelo e Pereira (1976, p. 25-26) colocam que o modo das sociedades compreenderem seus corpos se dá de diferentes formas. Além do corpo anátomo-fisiológico, há um “corpo social” formado pelas relações historicamente assumidas entre o meio físico e as pessoas. Portanto, o corpo será qualificado e determinado no plano material e social. Da mesma forma, as práticas sobre ele ocorrerão de acordo com o significado cultural, político e econômico que a sociedade lhe atribui.

Mendes-Gonçalves (1992, 1994) e Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) apontam para a relação recíproca entre processo de trabalho e necessidade social, esta considerada como necessidade da sociedade: é na tentativa de satisfazê-la que o trabalho assume uma mesma finalidade em geral para todos os indivíduos. Quando as necessidades são vistas como necessidades da sociedade, busca-se como fim o que é “bom pra todos” em termos gerais e abstratos. Em termos concretos, busca-se fazer convergir a satisfação das necessidades do caso particular de cada indivíduo com esse ideal para todos. Assim, se normalizam os modos de vida: busca-se fazer convergir, para cada uma das pessoas, o modo de vida da sociedade como um todo, o que pode implicar em imposições ou propostas de intervenção assistencial que nem sempre respondem da melhor forma os problemas práticos cotidianos que cada pessoa reconhece como um obstáculo a ser resolvido. Esta questão também pode ser

referida na teoria do trabalho em saúde como os carecimentos15 geradores das necessidades dos casos individuais, lembrando que este indivíduo pode ser um trabalhador e os carecimentos e necessidades podem referir a questões do trabalho cotidiano.

Assim, o trabalhador em serviço tem que resolver uma série de problemas (necessidades postas para serem respondidas em seu trabalho), que também geram suas próprias necessidades de trabalhar, as quais, por vezes, são contraditórias e de difícil identificação. Isto exige criatividade profissional e rompimento de fórmulas tradicionais dos saberes que regem suas práticas. Para tanto, é importante criticar o saber técnico tradicional e operar seu trabalho de modo reflexivo e crítico (Schraiber, 2008), a fim de criar competências práticas (saberes práticos) que respondam tanto às novas questões dos usuários quanto às profissionais. No que diz respeito às demandas em saúde, por exemplo, como afirma Teixeira (2004, 2005), muitas vezes, estas estão na fronteira entre “patologia” e os “problemas de vida” e nem sempre a resposta mais adequada para elas é encontrada na biomedicina. Por isso, o que o autor chama de “tecnologias da conversa” se torna essencial para identificar, elaborar e negociar necessidades com os usuários, as quais podem ser satisfeitas nas instituições de saúde ou em outro espaço institucional.

Como mostra este autor, o abrir-se ao outro para interagir com o usuário (escuta, diálogo e decisão compartilhada) pode ser o modo pelo qual o profissional (o psicólogo, no caso deste estudo) consiga equacionar melhor as tensões advindas das formas tradicionais de trabalho clínico com as novas formas no interior das UBS. Analogamente, como Schraiber (2008) refere para o médicos, uma conversa consigo próprio e com outros trabalhadores da UBS poderia ser o modo crítico de rever a atuação clínica tradicional no contexto das instituições de saúde de atenção primária.

Considerando-se, agora, especialmente a atenção primária, deve-se registrar que este plano assistencial possui particularidades que também repercutem nas novas necessidades profissionais. Sendo a “porta de entrada” não somente para a rede de serviços de saúde, mas também para uma variedade de outras demandas ligadas aos

15 Carecimentos são obstáculos ou impedimentos experimentados e reconhecidos pelos indivíduos

neste plano da vida individual ao modo de andar a vida socialmente dado. Tais obstáculos geram o reconhecimento de que se deva buscar uma intervenção reparadora da situação, o que se torna necessidade de algo – saúde, trabalho, alimentação, moradia etc. (Mendes-Gonçalves, 1992).

territórios sociais em que estão os indivíduos da população usuária do serviço, o trabalho multiprofissional e a articulação intersetorial se tornam importantes. Neste sentido, a extensão da rede de serviços de atenção primária/básica à saúde, em termos de seu campo de atuação extramuros (para além do espaço da unidade de saúde), não se compara a nenhum outro equipamento da rede de serviços em saúde.

Aqui, o trabalho em saúde não se refere apenas àquele relacionado aos seus profissionais, mas à participação de diversos agentes sociais que contribuem na melhoria das condições de vida e de saúde dos indivíduos e populações de forma direta ou indireta (Teixeira, 2004). O psicólogo em UBS também terá que lidar com o trabalho em equipe e aquele de outros setores que não os de saúde em sua atuação institucional.

CAPÍTULO II

Profissionalização da psicologia no Brasil: movimentos de institucionalização da Psicologia Clínica