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5. ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

5.1 PRESSUPOSTOS TÉORICOS E ANALÍTICOS

5.1.1 Teoria social do discurso

O discurso, como entendido por Fairclough (2008), é o uso da linguagem como prática social. Ou, ainda, como compreendido por Resende e Ramalho (2011), como uma ação historicamente situada.

Contudo, ao mesmo tempo em que o discurso é uma construção social, uma forma de ação no mundo e nas relações com as pessoas, contribuindo para os sistemas de conhecimento e crença, ele também é constitutivo da estrutura social. Se, por um lado, “o discurso é moldado e restringido pela estrutura social”, por outro “o discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem” (FAIRCLOUGH, 2008, p.91).

A relação entre linguagem e sociedade não é externa, mas interna e dialética. Nessa relação entre o discurso e a estrutura social, o discurso é uma prática, não apenas representativa; é, também, uma forma de significar o mundo (FAIRCLOUGH, 1989; FAIRCLOUGH, 2008).

O modelo tridimensional apresentado por Fairclough em 1989 e aprimorado em 1992 propõe uma abordagem teórico-metodológica que considera três dimensões analíticas do discurso: a primeira, a dimensão da prática discursiva (microssociológica), que envolve processos sociocognitivos relacionados a contextos sociais diferenciados e específicos, nos quais ocorrem a produção, a distribuição e o consumo textual. Tal dimensão considera a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum compartilhados. Fundamentados na tradição interpretativa, alguns aspectos podem ser observados nessa análise: a produção do texto (interdiscursividade e intertextualidade); a distribuição do texto (cadeias intertextuais); o consumo de texto (coerência); e as condições da prática discursiva (aspectos gerais sociais e institucionais). Já a dimensão textual enfatiza os traços das práticas discursivas e sociais por meio da análise detalhada da linguística. É a parte denominada “descrição”, a qual pode ser realizada em quatro itens principais: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual, o que torna passível a identificação e a interpretação das relações sociais e das estruturas ideológicas do discurso. A terceira dimensão – o discurso como prática social (macrossociológica) interessa-se pelas questões de análise social em relação às estruturas sociais, a exemplo de características institucionais e organizacionais dos eventos discursivos e maneiras como tais características moldam as práticas discursivas. De acordo com Fairclough (2001, p.289), essa prática visa detalhar “a natureza social da qual a prática discursiva é uma parte, constituindo a base para explicar por que a prática discursiva é como é e os efeitos da prática discursiva sobre a prática social”. Essa prática está

relacionada aos conceitos de hegemonia e ideologia que moldam e investem o texto nas instâncias discursivas.

Segundo Fairclough (2008), a análise textual é mais descritiva, e a análise das duas últimas dimensões é interpretativa no sentido de buscar efeitos de sentido no discurso. No entanto, a prática social e o texto são descritos como dimensões do evento discursivo, uma vez que são mediados pela prática discursiva, sendo variáveis em diferentes discursos, de acordo com os fatores sociais envolvidos. Nesse sentido, a ADC não focaliza apenas a linguagem como sistema semiótico, com suas texturas léxicas gramaticais centradas na estrutura; tampouco prioriza os textos sociais isolados, que não se preocupam com o contexto social. Ao contrário, ela permeia o nível intermediário, que se localiza entre as estruturas sociais mais fixas e as estruturas mais flexíveis (RAMALHO, RESENDE, 2011). Nas palavras de Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21), as práticas sociais estão situadas entre “sociedade e pessoas vivendo suas vidas”.

Desse modo, nas práticas sociais – que são “maneiras recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais agimos e interagimos no mundo” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p.21) –, a linguagem se manifesta no discurso, no qual é vista como “um momento de toda prática social”, ao lado de outros elementos sociais que se articulam entre si (RESENDE, RAMALHO, 2011, p. 38). Ou ainda, como salienta Ramalho (2008, p.53), um “momento semiótico que se articula com os demais momentos não-semióticos, quais sejam, ação, interação, relações sociais, pessoas e mundo material”.

Na concepção de vida social como constituída em torno de práticas, concepção adotada no novo enquadre metodológico de Chouliaraki e Fairclough (1999), o conceito de prática social, construído social e historicamente e agindo como elemento transformador do discurso, torna-se o foco central à compreensão do mundo social e às análises discursivas. Nesse novo cenário, os autores propõem os momentos constituintes de uma prática social, a saber: discurso (ou semiose); atividade material, relações sociais (relações de poder, lutas hegemônicas) e fenômeno social (valores, crenças e desejos – ideologia) (RESENDE, RAMALHO, 2011).

Todos esses elementos são utilizados pelos sujeitos na vida cotidiana em sua ação e interação com outras pessoas, ao estabelecerem relações sociais e ao utilizarem a linguagem (RAMALHO, RESENDE, 2011). É nesse cenário que o discurso se expressa na linguagem nas práticas sociais de cada sujeito, como “uma parte irredutível” do agir, interagir, representar e identificar consigo mesmo e com os outros sujeitos, e como elemento da prática social por meio da linguagem (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p.15).

Os autores destacam, entretanto, que esses momentos, por estarem presentes em diversos aspectos da vida, estão juntos na prática: não se sobrepõem, nem se reduzem um ao outro; são articulados e internalizados, num movimento de entrecruzamento e numa relação dialética. Ao mesmo tempo que o discurso é um elemento da prática social que constitui outros elementos sociais, ele também é influenciado por eles (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999).

Nesse sentido, a análise de um discurso historicamente situado, por envolver uma prática particular, pode identificar a internalização de outros elementos da prática no discurso, como as relações sociais e ideologias no discurso. Esses elementos, denominados de momentos de prática, estabelecem relações e são articulados de forma não totalmente permanente, pois podem ser reconfigurados e transformados pelas posições e recombinações desses elementos (RESENDE; RAMALHO, 2011). Desse mesmo modo, a mudança discursiva também se dá pela rearticulação dos recursos discursivos durante o momento discursivo, numa luta articulatória que se configura numa luta hegemônica que, dependendo do ambiente social e da articulação entre esses momentos, pode transformar ou sustentar as práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2001).

A proposta da ADC preocupa-se em demonstrar como os efeitos ideológicos podem atuar nas instâncias do discurso e provocar efeitos de sentido diversos nos textos, ao instigar mudanças ou sustentar relações assimétricas de poder. Interessa-se a proposta pelo papel desempenhado pelo discurso na mudança social, nos modos de organização da sociedade em torno de objetivos emancipatórios (RAMALHO; RESENDE, 2011).

Nesse sentido, as práticas sociais, com seu caráter relativo de permanência, podem ser compreendidas, em Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 22), pelas relações estabelecidas entre Conjunturas, que são “conjunto relativamente estáveis de pessoas, materiais, tecnologias e práticas em torno de projetos sociais específicos”; pelas estruturas sociais “condições históricas da vida social que podem ser modificadas por ela, mas lentamente”; e pelos eventos sociais “acontecimentos imediatos individuais ou ocasiões da vida social”. De acordo com os autores, ao focalizar a prática social, tem-se a possibilidade de analisar não somente os eventos particulares, mas também os eventos em conjunto que sustentam e transformam essas estruturas.

Com esse enquadre proposto em 1999, toda análise em ADC parte de cinco etapas: a primeira corresponde à percepção de um problema que se baseia geralmente em relações de poder, na distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos nas práticas sociais e na universalização de um discurso particular e dominador; a segunda etapa corresponde à percepção de obstáculos para que o problema seja

superado e busca identificar os elementos da prática social que constituem ou

impedem a superação dos obstáculos. Dentro dessa etapa, destacam-se a análise da conjuntura, da prática particular e da análise do discurso; a terceira etapa, por sua vez, refere-se à percepção da função do problema na prática, isto é, sua função no aspecto problemático do discurso, bem como sua função nas práticas discursiva e social; na quarta etapa, buscam-se os possíveis modos de ultrapassar os

obstáculos, de modo a investigar e identificar as alternativas de mudança e

superação de problemas; por fim, a quinta etapa corresponde à reflexão sobre a

análise, já que a pesquisa crítica é, por si só, reflexiva e deve contribuir para a

emancipação social.

O enquadre proposto em Chouliaraki e Fairclough (1999) é descrito por Resende e Ramalho (2011) como mais complexo do que a abordagem anterior e tem ampliado o caráter emancipatório da disciplina, ao possibilitar uma abertura das análises, de modo a vinculá-las às práticas problemáticas das relações e procurar perceber a articulação entre discurso e outros elementos sociais nas práticas sociais. Essa articulação entre as práticas constitui as redes de práticas, nas quais as relações podem gerar diversos eventos sociais, dependendo das lutas hegemônicas constituídas que podem transformar ou sustentar as relações dominadoras.