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TEORIAS QUE EXPLICAM AS CARACTERÍSTICAS DAS PESSOAS

2 COMPREENDENDO O AUTISMO

2.3 TEORIAS QUE EXPLICAM AS CARACTERÍSTICAS DAS PESSOAS

Por se tratar de um tema complexo, existem diferentes abordagens que tentam explicar as características apresentadas pelas pessoas com autismo, dentre elas destacam-se: a teoria afetiva, a teoria cognitiva e as teorias psicanalíticas. A teoria afetiva, originalmente proposta por Kanner e posteriormente estendida por Hobson, parte do pressuposto de que essas pessoas possuem uma inabilidade inata de se relacionar com outras pessoas. Sobre isto, Bosa e Callias (2000, p. 4) pontuam que:

A teoria afetiva sugere que o autismo se origina de uma disfunção primária do sistema afetivo, qual seja, uma inabilidade inata básica para interagir emocionalmente com os outros, o que levaria a uma falha no reconhecimento de estados mentais e a um prejuízo na habilidade para abstrair e simbolizar.

Como consequências da disfunção afetiva básica, Bosa e Callias (2000), com base na teoria de Hobson, apontam os déficits no reconhecimento da emoção e na habilidade de utilizar a linguagem de forma adequada ao contexto social.

De acordo com Araujo (2009, p. 92), Hobson considerou em suas formulações iniciais que

- as crianças autistas apresentam falhas constitucionais nos componentes de ação e reação necessários para o desenvolvimento das relações objetais, que envolvem afeto com outras pessoas; - falta às crianças autistas a coordenação da experiência e do comportamento sensoriomotor e afetivo, característico da vida normal intrapessoal, assim como interpessoal;

- Nessa patologia existem déficits no reconhecimento das outras pessoas como portadoras de sentimentos, pensamentos, intenções e desejos próprios;

- existem déficits na capacidade de abstrair, sentir e pensar simbolicamente.

Como para Hobson (2004 apud ARAÚJO, 2009) as relações interpessoais são o berço do pensamento, a dificuldade que as pessoas com autismo possuem na interação social acaba causando empecilhos à vida imaginativa. As dificuldades na comunicação também podem ser vistas por este aspecto, pois se a motivação para a aquisição da linguagem é afetar a mente dos outros e às vezes esta necessidade não é percebida nas crianças com autismo, a linguagem pode ser impedida de se desenvolver. (ARAUJO, 2009)

Além dele, outros autores apresentaram contribuições em relação à teoria afetiva; dentre eles destacam-se Mundy e Sigman (1989 apud BOSA; CALLIAS, 2000) De acordo com Bosa e Callias (2000), Mundy e Sigman, tal como Hobson e Kanner, enfatizam as possíveis bases biológicas do autismo. Contudo, segundo Bosa e Callias (2000), os autores não consideram que existe uma predominância do sistema afetivo sobre o cognitivo, mas sinalizam para o papel de ambos no desenvolvimento infantil.

Através dos resultados de pesquisas experimentais, Mundy, Sigman e Kasari (1993 apud BOSA; CALLIAS, 2000) sugeriram que desde cedo as crianças com autismo demonstram dificuldade e respostas atípicas diante das interações face a face. Sigman e Capps (2000 apud PASSERINO, 2005) acrescentam também que os sujeitos com autismo são seletivos com relação à atenção que prestam ao meio, concentrando-se em aspectos específicos, em detrimento de outros mais gerais. Os autores citados supõem que isso pode ser uma evidência de que os problemas sociais e cognitivos do autismo podem ter origem nessa seletividade de atenção. Bosa e Callias (2000, p. 5) informam que as teorias de Hobson e de Mundy e Sigman: “[...] apresentam uma característica comum: a atribuição dos déficits sociais em autismo a dificuldades em modular tanto a informação sensorial quanto a experiência perceptiva”.

A teoria cognitiva se contrapõe à teoria afetiva; como principais representantes desta corrente teórica pode-se citar Baron-Cohen (1998, 1990, 1991 apud ASSUMPÇÃO JUNIOR; KUCZYNSKI, 2009) e Frith (1998 apud ASSUMPÇÃO JUNIOR; KUCZYNSKI, 2009). Esta teoria considera que a dificuldade central da pessoa com autismo é a impossibilidade para compreender os estados mentais das outras pessoas, inabilidade que tem sido considerada por Baron-Cohen e Frith como a teoria da mente, “[...] que consiste na crença, ou na teoria, do indivíduo de que os

outros têm uma mente capaz de compreender coisas de forma idêntica a sua própria mente”. (SIEGEL, 2008, p. 65)

De acordo com Scheuer e Andrade (2009, p. 87),

Baron Cohen (1998) refere-se ao autismo como uma cegueira mental, uma impossibilidade de desenvolver, conhecer a própria mente e, conseqüentemente, a de outros. Essa agnosia mental, em outras palavras, é uma questão cognitiva, da ausência de processos mentais mais profundos que não se desenvolvem, o não poder ler e interpretar nas linhas e entre linhas seus próprios sentimentos e emoções bem como os dos outros.

Ainda sobre a teoria da mente, Baron-Cohen e outros (1985 apud TUCHMAN, 2009, p. 55) informam que:

A teoria da mente (TM), ou metacognição, refere-se à habilidade do individuo de compreender que os outros possuem intenções mentais encobertas. Para entender o estado interior de outra pessoa, é preciso ser capaz de interpretar expressões emocionais e comportamentos. Em geral, o indivíduo com autismo de funcionamento elevado compreende o que a outra pessoa pensa, mas não é capaz de inferir pistas sociais sutis a partir das expressões emocionais e do comportamento. A difícil compreensão de que os outros possuem crenças, intenções e desejos é uma habilidade essencial que, quando deficiente, leva ao comprometimento da interação social recíproca.

A teoria da mente é uma tentativa de explicar a dificuldade que as pessoas com autismo possuem de interagir com outras pessoas, como possuem dificuldade para entender as emoções, os comportamentos das outras pessoas e de perceber que suas ações precisam ser compreendidas, a interação acaba ficando comprometida. Essa posição é apoiada nos estudos de alguns autores que atribuem à tríade de características das pessoas com autismo, a dificuldade de ler a mente ou compreender os estados de mentais de outras pessoas. (FRITH; LESLIE; SIMON BARON-COHEN apud BEYER, 2002)

As Teorias Neuropsicológicas e de Processamento da informação são outra forma de explicar os déficits cognitivos existentes nas pessoas com autismo. De acordo com Bosa e Callias (2000), os estudos iniciais sobre o déficit cognitivo em autismo surgiram a partir do trabalho de Hermelin e O’Connor (1970 apud BOSA;

CALLIAS, 2000) que, através de testes, verificaram cientificamente como as crianças com autismo processavam as informações sensoriais na realização de testes de habilidades motoras e de memória. Os autores (BOSA; CALLIAS, 2000, p. 10) verificaram que essas crianças demonstravam déficits cognitivos específicos em relação a

[...] problemas na percepção de ordem e significado, os quais não poderiam ser explicados por deficiência mental; dificuldades em usar o input sensorial interno para fazer discriminações na ausência de feedback de respostas motoras; e tendência a armazenar a informação visual, utilizando um código visual, enquanto as crianças com desenvolvimento normal usavam códigos verbais e auditivos.

A função executiva, “[...] a capacidade de manter uma disposição adequada de solução de problemas com a finalidade de atingir um objetivo futuro” (CUXART, 2000 apud PASSERINO, 2005, p. 96), também é apontada em alguns estudos, como algo que está prejudicado em pessoas com autismo. Os pesquisadores dessa teoria acreditam que a capacidade de planejar e desenvolver estratégias está ligada ao funcionamento dos lobos centrais17. Essa teoria associada ao autismo sugere que muitas das características que as pessoas com autismo possuem como: a realização de atividades repetitivas, o foco no detalhe, ao invés do todo, dificuldade em relação à brincadeira de faz de conta e dificuldades nas interações sociais, podem ser explicadas por comprometimento no funcionamento do lobo cerebral frontal. (DUNCAN, 1986 apud BOSA, 2001)

De acordo com Bosa e Callias (2000, p. 8), a associação do autismo com o comprometimento da função executiva surgiu em função da semelhança entre o comportamento apresentado por indivíduos com disfunção cortical pré-frontal e indivíduos com autismo: “inflexibilidade, perseveração, primazia do detalhe e dificuldade de inibição de respostas”. Contudo, esta teoria está sendo criticada no que diz respeito à afirmação de que o déficit na função executiva é primário no autismo, essa crítica se baseia no fato de que os problemas na função executiva não são exclusivos de pessoas com autismo. (BOSA; CALLIAS, 2000)

As teorias psicanalíticas também são uma tentativa de explicar o autismo. Após a descoberta da síndrome, essas teorias tentaram descrever o funcionamento

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[...] essa região é responsável pela capacidade de planejamento e desenvolvimento de estratégias para atingir metas, o que requer flexibilidade de comportamento, integração de detalhes num todo coerente e o manejo de múltiplas fontes de informação, coordenados com o uso de conhecimento adquirido. (KELLY; BORRIL; MADDEL, 1996 apud BOSA, 2001)

mental, os estados afetivos e o modo como as crianças com autismo se relacionam com as pessoas. De acordo com Passerino (2005), nos 20 anos posteriores à descoberta do autismo, as várias teorias psicanalíticas de origem psicogênica tentaram explicar o autismo, através de conflitos internos ou de conflitos pela separação materna ou falta de afeto. Dentre essas teorias de origem psicogênicas, destacam-se os estudos de Bettelheim (1997 apud PASSERINO, 2005) que sugeriam que é no primeiro ano de interação mãe e criança que deveria ser buscada a origem do autismo, ou seja, qualquer trauma, rejeição sofrida pela criança nesse período poderia ocasionar a síndrome.

Bettelheim (apud AMY, 2001, p. 35), fortemente influenciado por sua vivência no campo de concentração, construiu a hipótese de que

[...] a criança encontra no isolamento autístico (como os prisioneiro de Dachau)18 o único recurso possível a uma experiência intolerável do mundo exterior, experiência negativa vivida muito precocemente em sua relação com a mãe e seu ambiente familiar. (AMY, 2001, p. 35)

Contudo, a hipótese de Bettelheim é atualmente criticada pelo fato de contribuir para o surgimento de teorias que culpavam os pais das crianças com autismo pelo comportamento dos filhos. De acordo com Bosa e Callias (2000), a teoria de Bettelheim de que o autismo seria uma defesa contra a mãe deprimida e fria não recebeu apoio de grande parte dos psicanalistas.

Tustin (1975 apud PASSERINO, 2005) sugere em seus estudos que toda criança recém-nascida passa por uma fase autista normal e que as interações vivenciadas no primeiro ano de vida são cruciais para o desenvolvimento. Ele ressalta que durante o primeiro ano de vida a mãe e a criança formam uma totalidade e quando no momento “[...] da diferenciação a criança vivencia esse processo como uma perda ou uma frustração, isso leva a criança a retornar ao estado de totalidade com a mãe, iniciando o processo autístico patológico”. (TUSTIN, 1975 apud PASSERINO, 2005, p. 91) A hipótese deste autor também é questionada, pois, de acordo com os estudos piagetianos, o recém- nascido não é passivo como sugere a autora, ao contrário, é um ser ativo. Outra crítica apresentada a estas teorias diz respeito ao fato de que tanto Bettelheim como Tustin

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atribuem o autismo a uma causa psicoemocional. Contudo, os estudos recentes sobre o tema têm atribuído à síndrome causas múltiplas. (PASSERINO, 2005)

A psicanálise continua apresentando estudos sobre autismo, sendo que a linha Kleiniana19 atual é representada por Anne Alvarez e Sue Reid (1999 apud ARAÚJO, 2009) tem o objetivo de estudar as pessoas com autismo, colocando ênfase na maneira como cada pessoa com autismo com sua personalidade única interage com os sintomas autísticos. Alvarez e Reid (apud ARAÚJO, 2009) admitem que falta nas pessoas com autismo o sentido de um mundo onde existem pessoas que são interessantes e podem estar interessadas nelas. As autoras ressaltam ainda que as pessoas com autismo não possuem mundos internos (experiências e fantasias) ricos que as possam auxiliar nas interações com as outras pessoas.

Já Berlinck (1999 apud ARAÚJO, 2009), seguindo uma visão lacaniana, define o autismo como um estado primitivo, considerando-o uma doença em que a pessoa não consegue ultrapassar a natureza em direção à cultura. Segundo Kupfer (1999 apud ARAÚJO, 2009, p. 97),

[...] para a psicanálise de inspiração lacaniana no autismo não há como supor a existência de um sujeito prévio, já que o sujeito é efeito da operação significante, efeito da instalação da linguagem. O sujeito se faz na e pela linguagem, mas ao mesmo tempo precisa contar com algo da ordem de uma estrutura subjetiva que o guie para dentro da estrutura da linguagem. [...] A autora enfatiza a hipótese lacaniana de que nas crianças com autismo, as marcas, as inscrições originárias não se alçaram à condição de significantes com pleno poder de linguagem. O autista está fora da linguagem, e o que poderia ser marca de linguagem deixou de sê-lo.

A breve descrição das teorias citadas acima tem o propósito de apresentar as diferentes visões existentes sobre os aspectos sociais e cognitivos na área do autismo, sem, contudo esgotar a discussão sobre o assunto. Para a autora deste trabalho o estudo sobre a origem dos déficits ainda é muito profícuo e polêmico, não existindo ainda uma única teoria capaz de explicar a origem ou as causas dos déficits apresentados pelas pessoas com autismo. Compartilha-se neste trabalho da opinião de Bosa e Callias (2000, p. 10) de que as descobertas das teorias cognitivas e afetivas não dão conta de explicar todos os casos de autismo, mas têm contribuindo para desconstruir alguns mitos sobre as pessoas com autismo.

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Melanie Klein (1882-1960) é uma das principais expoentes da psicanálise. Criadora da psicanálise com crianças, sua obra contempla uma leitura singular da teoria freudiana, originando uma grande escola psicanalítica, o kleinismo. (VASQUES, 2008, p. 134)