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2 (Des) centralização e (Des) concentração: Para a definição dos modelos político-administrativos

4. Territorialização da educação enquanto política pública

A temática da “territorialização” insere-se dentro de um contexto de transformações sociais profundas, das quais sobressaem, segundo Barroso (1996), a crise do “Estado Educador”, a oposição entre a “lógica de mercado” e a “lógica de serviço público”, na oferta educativa, a redistribuição de poderes entre o centro e a periferia (com fenómenos de descentralização e recentralização administrativa, as relações entre Estado e Sociedade, e a depauperização das fontes tradicionais de financiamento, entre outras.

Deste modo, o local surge como uma instância de “relegitimação” da ação pública, passando a ser considerado como Estado, mas como um “Estado local de emergência” (Robertson & Dale, 2001).

Será pois no local que se encontrarão respostas mais rápidas e mais eficazes, uma vez que nos encontramos mais perto da população, da comunidade, dos atores educativos, a quem mais facilmente se podem pedir responsabilidades e quem mais rapidamente poderá prestar contas e dar respostas. Isto, nunca deixando de reconhecer a necessidade do estabelecimento, por lei, de um certo número de mecanismos de coordenação e controlo, para contrabalançar os efeitos negativos da descentralização, ou seja, de reconhecer o papel do Estado, como regulador do serviço público de educação, cuja função será de regular as organizações e não de intervir diretamente, a não ser de forma supletiva e corretiva, nas ações por elas desenvolvidas.

Como refere Martins (2007), o Estado, procurando recuperar a confiança política dos cidadãos e a sua própria legitimidade, tenta aproximar-se das necessidades básicas da população, dos seus interesses e dos seus locais de vivência e trabalho. A sua prioridade parece ser transformar essas necessidades, interesses e locais em territórios negociais ou de negociação.

Para conseguir tal desiderato, diz-se empenhado em “devolver” poderes ao “local” admitindo, assim, que os sistemas públicos que domina possam funcionar melhor através de compromissos negociados em nome de um “bem comum local”.

Contudo, convém salientar que, muitas vezes, este “bem comum” e “interesse” nacional nem sempre correspondem ao “bem comum e interesse local”, constituindo-se aqui a base das razões de conflitualidade entre poder politico central e poderes autárquicos locais, passando esta pelo confronto entre as diversas conceções políticas do Estado, pelas suas funções e forma como as executa, assim como pela não coincidência entre o papel que o poder político central reserva aos municípios e o papel que estes querem para si.

Para o mesmo autor, a estratégia da dita devolução de poderes ao “local” parece assentar na conjugação de três orientações de natureza política que funcionam simbolicamente, ao nível do “inconsciente coletivo”:

i) a descentralização (deslocalização) vertical controlada de uma maior parte do poder estatal para o nível local instituído, ou seja, para as freguesias, os municípios e as associações intermunicipais, entidades cuja representatividade democrática pode, paradoxalmente, “reanimar” a participação, mas que não esgotam o conceito de “local” nem representam o “estado puro” da democracia;

ii) a desconcentração (delegação) horizontal de outra parte do poder da administração central para os serviços periféricos dos sistemas públicos nacionais (na saúde, na educação, no ambiente, no emprego e na formação profissional), redistribuindo e reduzindo o pessoal e as respetivas despesas, extinguindo ou fundindo serviços e apelando às inovadoras capacidades do e-government; iii) a privatização/negociação (empresarialização) de uma terceira parte do poder do Estado, através de contratos-programa ou de outros tipos de contratualização – apelidada de parceria público/privado ou de partenariado – da prestação local de certos serviços públicos que introduzem regulações localizadas e, não raras vezes, contraditórias entre si.

Como Amaro (1996) sugere, o Estado deverá constituir-se como parceiro das iniciativas da sociedade civil e dos cidadãos, como colaborador, e não como um parceiro chamado para mandar, ou que se ausenta, caminhando- se, desta forma, para um novo paradigma, designado pelo autor de “comunidade ou sociedade-providência”, onde, não se ilibando o Estado das suas responsabilidades, se promove uma melhor aplicação e melhores resultados dos recursos escassos.

Esta passagem de um “Estado soberano” a um “estado regulador” faz-se progressivamente com a substituição de políticas redistributivas e de intervenção direta, por políticas de incentivo indireto, por um vasto espaço de negociação entre múltiplos atores privados e públicos, por formas diversas de regulação social e política das sociedades. Tal como sugere Hassenteufel (2008), esta evolução corresponde à emergência de um Estado regulador que intervém mais indiretamente que diretamente, que manda fazer mais do que ele próprio faz, que age mais em interação com os atores não estatais, do que com os estatais sendo as políticas públicas cada vez mais construídas coletivamente por uma diversidade de atores.

Um exemplo disto é, sem dúvida, o poder local. Devido a uma quase obrigação moral, os municípios sempre intervieram em domínios, cuja responsabilidade era da administração central, ou em domínios estranhos às suas competências, confirmando, desta forma, que a intervenção municipal na educação não se deve, única e exclusivamente, à evolução da legislação, mas antes, antecede a mesma (Cerca, 2007).

Verifica-se, desta forma assim, que muitos normativos legais aparecem “a posteriori”, quando determinadas competências já são exercidas, por vezes até “ilegalmente”, por parte dos municípios (Barroso, 2003), e que Ruivo (2002b) denomina de discrepância entre “law in the books” e “law in action”, fazendo com que a descentralização se comece a construir, nos contextos locais, como uma realidade emergente, aguardando uma institucionalização legal (Fernandes,1996).

Assim, o “local”, mais do que um território administrativo, entendido como produto das interações que os atores sociais estruturam, constitui-se no contexto dos próprios problemas e terá mais capacidade de produzir soluções

(Evangelista, 2005). Desta forma, o Estado procura, na localização das políticas, nos reajustamentos e nos compromissos locais, na redistribuição de competências, saídas para a crise geral que o atravessa.

Segundo Fernandes (1999), é dentro desta visão democrática que vêm emergindo, como princípios dos estados democráticos modernos, a valorização das culturas regionais e locais, assentando aqui as propostas de territorialização das políticas educativas. Estas implicam a ligação da escola ao seu meio através de projetos e ações integradas orientads para um território educativo concreto, envolvendo a participação dos atores locais, das mais variadas formas, constituindo-se, nesta perspetiva, o papel do Estado como regulador das orientações básicas do sistema educativo e de garante dos recursos, no êxito das intervenções, não se substituindo aos atores diretos e parceiros educativos.

Assim, e tendo por base Charlot (1994)25, a territorialização das políticas educativas deve ser entendida como uma política nacional num contexto de crise de legitimação da ação do Estado que, quebrando a lógica de Estado- Educador, delega poderes na comunidade reservando-se a um papel de regulação e de controlo. Assim, o município pode ser considerado como uma instância de “regulação intermédia”, como já referimos anteriormente, cuja intervenção se caracteriza por uma regulação local sob o controlo central.

Desta forma, a territorialidade é definida como um modo de reconfiguração da ação, de acordo com os princípios da proximidade, participação, cidadania, corresponsabilização e autodeterminação, e não mais um apoio material à atuação do Estado (Gomes; 2003).

Poderemos então dizer que uma das grandes finalidades da territorialização na educação será “fazer com que na definição e execução das políticas educativas, a ação dos atores deixe de ser determinada por uma lógica de submissão, para passar a subordinar-se a uma lógica de implicação” (Barroso, 2005: 141). Acrescem ainda a estas, segundo o mesmo autor:

(i) a passagem de uma relação de autoridade baseada no controlo vertical, monopolista e hierárquico do Estado, para uma relação

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“A territorialização das políticas educativas não é uma conquista do local, mas o efeito de uma política nacional, pretendida, definida, organizada e operacionalizada pelo Estado. Longe de ser uma retirada ou mesmo uma ausência do Estado, ela é ‘um movimento de redistribuição do poder entre o centro e a periferia’” (Laderrière, 1990, cit. in Charlot, 1994: 27).

negociada, contratual, baseada na desmultiplicação e “horizontalização” dos controlos (centrais e locais);

(ii) conciliação de interesses públicos (na busca do “bem comum” para o serviço educativo) e interesses privados (para a satisfação de interesses próprios dos alunos e famílias);

(iii) contextualização e localização das políticas e ação educativa, contrapondo a heterogeneidade das formas e das situações à homogeneidade das normas e dos processos;

Nesta perspetiva, a territorialização contribuirá para que, a nível educativo local, haja um diálogo e um contacto entre os diversos atores (autarquias, escolas, alunos, famílias e restante comunidade local), para que, em conjunto e com a visão de cada interveniente, se possam adequar melhor as políticas educativas emanadas centralmente, ao contexto local em causa.

Em torno desta temática da territorialização, o uso de noções como “partenariado” e “parceria”, entre outras (contrato, projeto, território), tem-se de tal modo generalizado que passou a tornar-se vocabulário ‘obrigatório’ na descrição e análise das políticas públicas e educativas, o que implica uma breve clarificação destes dois conceitos.

O aparecimento das parcerias está associado à ideia de valorização da iniciativa local, inscrevendo-se, de acordo com Canário (1995:153-154), num

movimento mais amplo de renovação das formas de participação dos cidadãos nos diferentes aspetos da vida social, no sentido do aprofundamento da democracia, movimento esse que tem uma dinâmica a longo prazo e que favorece a persistência das práticas sociais de partenariado, imprimindo-lhe contudo um caráter essencialmente dinâmico, de transformação nas suas formas e nos seus conteúdos.

O “partenariado”, isto é, a “cooperação contratual entre os múltiplos parceiros locais em torno de projetos comuns ou convergentes” (Nóvoa, 1992: 20), implica um processo de negociação e concertação entre todos os intervenientes, de modo a se encontrarem novos modos de coordenação, de iniciativas perspetivadas de forma global, construindo espaços de solidariedade entre os diversos atores sociais, conduzindo a uma lógica horizontal de

relações interinstitucionais. Para Madeira, esta concertação interinstitucional e o trabalho em rede constituem a principal característica do partenariado, que entende como “forma concentrada e articulada de funcionamento, que tem por base o reconhecimento das complementaridades e corresponsabilidades das organizações, sejam públicas ou privadas” (cit. Rodrigues & Stoer, 1998: 9-10).

Estes últimos autores (Rodrigues & Stoer) consideram que o termo partenariado nos induz a um “modelo de provisão”26 com uma lógica “top- down”, formalmente organizado, que aproveita os recursos exógenos e pode adotar, em determinados momentos, uma abordagem verticalizada, com o intuito de garantir a eficácia nos investimentos.

Por sua vez, a parceria induz-nos a um “modelo de acção”27, que se inscreve numa lógica “buttom-up”, valorizada pelos recursos endógenos, de orgânica mais informal, baseada em processos mais comunicacionais e menos contratualizados, e orientada para um desenvolvimento comunitário integral.

Ambas as lógicas poderão coexistir no desenvolvimento de um projeto, dentro de um “modelo de intermediação”, que se situa entre a orientação para a ação e o desenvolvimento da provisão.

Para finalizar, o “paradigma da territorialidade” implica a existência, de acordo com Fernando Ruivo (2002a), de nove aspetos, a ter em conta na localização das políticas públicas, e que de alguma forma sintetizam tudo o que foi expresso anteriormente:

(i) a importância do local – o local é constituído por diferentes atores individuais habitantes desse local, com um papel mais ou menos atuante. Em conjunto, todos estes atores individuais concretizam o “ator local colectivo”, portador de imagens minuciosamente construídas. O local é então um produto socialmente construído, contribuindo para essa construção inúmeros fatores “(…) como a

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“O ‘modelo de partenariado de provisão’ implica objetivos baseados (i) no desenvolvimento de infraestruturas a nível local, (ii) na distribuição de serviços e na afetação de recursos para a sua provisão, (iii) no desenvolvimento de novas ideias para a distribuição de serviços e (iv) no contributo para a mudança de atitudes e valorização da(s) cultura(s) local(ais)” (Craig 1998: 29 cit. in Rodrigues & Stoer, 1998)

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“O ‘modelo de ação’ (…) está mais ligado aos objetivos que salientam (i) um papel secundário na provisão, (ii) uma orientação para a conceção de programas para a provisão e (iii) a distribuição de recursos diretamente para os serviços e organizações” (Craig 1998: 29 cit. in Rodrigues & Stoer, 1998).

história local, o sentido e as identidades locais (…)” (Ruivo, 2002a: 5) fundamentais na atração e execução das políticas; (ii) importância dos laços sociais - estes são construídos nas

comunidades que integram os locais, constituindo-se como aspetos determinantes para a construção das relações sociais. Assim, as relações subjetivas e as afetividades locais são fundamentais para a construção da realidade social local e para a manutenção da coesão territorial e da integração social. A desvalorização deste fator torna as políticas locais ineficazes e frágeis;

(iii) importância das diferenças entre os locais – as características de determinado local variam, podendo influenciar positiva ou negativamente a localização e concretização das políticas. A importância do local e dos seus atores é reforçada pelas especificidades socioculturais de cada local, com consequências importantes na existência de uma cultura política e prática social específica dos atores locais, num maior ou menor peso das sociedades locais e no envolvimento das elites locais. Internamente, o local constrói e negoceia a sua imagem comunitária, enquanto, externamente, se posiciona no conjunto dos vários locais, de acordo com a maior ou menor permeabilidade das suas instituições político-administrativas (Ruivo, 2002b).

(iv) importância do formal e do informal - a informalidade ajudará a traduzir localmente a hierarquia e verticalidade de que são dotadas as políticas centrais. Será, então, com o apoio da base reticular local, que as políticas centrais serão mais facilmente adaptadas ao local e com maiores probabilidades de adesão e participação dos agentes locais;

(v) importância do papel do poder local - a existência de um poder local empreendedor, ativo e com protagonismo são características que se vão refletir no tratamento e resolução de determinados problemas, sem ter que se esperar longamente pela resolução do

dos atores locais mais ativos, coordenando, sem asfixiar, os vários grupos existentes no concelho, dinamizando uma rede de iniciativas e entidades para concretizar as políticas definidas (Ruivo, 2002a);

(vi) importância das redes locais - as redes sociais locais são a expressão da energia e coesão do local, bem como da sua organização sociopolítica e como tal devem ser ponderadas no processo de localização das políticas. É grande a diversidade de redes que pode existir num local, desde redes abertas, inclusivas e disseminadoras de políticas, até redes fechadas e “privadoras” dessas políticas. O importante é conseguir congregar as inúmeras redes, tal como defende Ruivo (2002a: 9), criando uma “(…) ‘casa associativa’, uma expressão que aponta para o ninho ou incubadora onde as variadas associações, os variados agentes e instituições de índole local se podem encontrar para concertar e promover as diversas componentes da localização de políticas (…)”. As redes acabam por ser formas privilegiadas de resolução de determinados problemas quer individuais, quer coletivos. Têm uma importância fundamental na organização sociopolítica local, sendo decisivas na explicação ou não da intervenção do poder local nos vários problemas (Ruivo, 2002b). A falta de coordenação das redes e das diversas atividades realizadas pelas entidades levará a um desperdício de recursos, ao nível da educação;

(vii) importância das pertenças sociológicas ao território - um território pressupõe de imediato uma identidade local, implicando essa identidade “(…) uma partilha de modos de vida ou de estilos de vida comuns e ainda um contexto de relações sociais que, embora diferenciando cada indivíduo, imprime um quadro comum de atitudes e de valores” (Felizes, 2000: 10). Desta forma, nos locais onde se verificarem identidades fortes e homogéneas, será mais fácil conseguir consensos quanto à resolução de problemas e à concretização de políticas públicas. Por outro lado, onde a identidade for fraca e heterogénea, existindo competições entre

diferentes interesses políticos, será difícil conseguir consensos, sendo a intervenção local dividida e ineficaz. O importante será associar atores locais neutros às clivagens e com uma acentuada pertença ao território de forma a obter consensos na concretização dessas políticas (Ruivo, 2002a);

(viii) importância do peso das solidariedades primárias - as políticas são executadas no local, ao nível micro, contudo, dentro de um local, existirão múltiplos locais, sendo necessário ter em atenção as solidariedades primárias constituídas pelas amizades, a família, o bairro. Só através da mobilização destas solidariedades, é que se obtém hipóteses mais elevadas para a participação dos cidadãos nas políticas locais (Ruivo, 2002a);

(ix) por último, a importância dos atores locais - quanto maior for a ligação destes ao território em causa, maior é o conhecimento que possuem dos problemas locais e, consequentemente, a predisposição para os solucionar. Outro aspeto a ter em conta é a capacidade de mediação destes, entre os vários centros e as periferias, pois um elevado poder relacional e de protagonismo desses atores pode ser decisivo para o sucesso das políticas (Ruivo, 2002a).

PARTEIIOOBJETODEESTUDOEAINVESTIGAÇÃO