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Como já fora dito anteriormente, o Código de Processo Penal admite em seu artigo 208 o depoimento de crianças menores de catorze anos como meio de prova, mas, ademais, lhe será dispensado o compromisso legal, devido esse depoimento ser cheio de incertezas.

Por crianças serem imaturas devido a sua idade, com alto grau de imaginação e mais suscetíveis a sugestionabilidade, o seu depoimento deve ser tomado com cautela, mas não torná-las incapazes para depor, apenas, não pode ser recebido com plena certeza pelo juízo antes de ser analisado. Algumas decisões já foram proferidas nesse sentido36.

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Ementa: penal. Estupro de vulnerável. Prova insatisfatória da materialidade e autoria. Valor provante do testemunho infantil. Tergiversações e contradições entre as várias versões da vítima sobre o fato. Prova pericial inconclusiva quanto à conjunção carnal recente. Sentença confirmada. 1 réu absolvido da imputação de infringir o artigo 217-a, combinado com 226 , inciso ii , do código penal , mais o artigo 5º , incisos i e ii , da lei 11.340 /2006, eis que teria constrangido várias vezes a própria enteada, menor de quatorze anos, à prática de conjunção carnal, mediante a oferta de mimos e presentes. 2 a prova dos autos não suficiente para sustentar a condenação, haja vista divergências existentes nos depoimentos da vítima e de seus parentes, em confronto com a negativa veemente do réu. Prevalência do brocardo in dubio pro reo. 3 apelação desprovida. (BRASIL, 2016)

Ementa: penal e processual penal. Atentado violento ao pudor. Vítima mulher com doze anos de idade. Valor probante do testemunho infantil. Fragilidade da prova. Absolvição. In dubio pro reo.

Pisa e Stein (2006, p. 218) discorrem sobre a qualidade do testemunho das crianças:

O vasto número de pesquisas científicas desenvolvidas para melhorar a confiabilidade das declarações de crianças é proporcional à relevância que a palavra da vítima assume nos crimes contra a liberdade sexual, crimes estes geralmente cometidos às escondidas e na maioria das vezes sem evidências físicas. O fato de a vítima ser criança não retira o valor de suas declarações. No entanto, vários fatores como desenvolvimento cognitivo, linguagem, coação, fantasia, memória e sugestionabilidade podem comprometê-las.

No mesmo sentido expressa Sarah Eidt Stefanello (2016):

Um dos pontos centrais do desenvolvimento cognitivo consiste na representação, ou seja, como as crianças de diferentes idades representam o seu mundo. A análise deste aspecto é crucial para entender a capacidade de evocação das mesmas, pois ao examinar como indivíduos interpretam os eventos diários, bem como a forma como são capazes de expressá-lo, torna-se possível avaliar a confiabilidade de seu depoimento.

Segundo Stefanello (2016) crianças têm dificuldades entre distinguir aparência e realidade, já os adultos conseguem discernir com facilidade que determinados objetos ou pessoas não são quem aparentam ser, ou ainda, não necessariamente correspondem à realidade. Já crianças em idade precoce não conseguem diferenciar a realidade da fantasia, pois são mais propensas a crer em figuras irreais como monstros, super heróis, papai Noel e fadas em relação às crianças mais velhas37.

Recurso provido. 1. Embora as palavras das vítimas recebam especial valor probatório nos crimes contra a dignidade sexual, em se tratando de testemunho infantil, devem ser admitidas com ressalvas, pois o menor impúbere é extremamente sugestionado, necessitando, pois, que suas palavras sejam apresentadas de forma lógica, coerente e com respaldo em outros elementos probatórios. 2. Necessário evocar o princípio in dubio pro reo nos casos em que a vítima menor apresenta diferentes versões para o fato analisado, o réu nega com veemência a imputação contra si perpetrada, e a genitora da ofendida demonstra insegurança e dúvida quanto à ocorrência do atentado violento ao pudor. 3. Uma condenação deve ser fundamentada em provas firmes, concludentes, plenas e inequívocas, não sendo possível baseá-la em meras suposições e elementos titubeantes. 4. Recurso provido para absolver o réu, com base no art. 386 , inciso II , do código de processo penal . (BRASIL, 2016)

Ementa: ementa - penal - estupro de vulnerável prova - depoimento infantil - validade - conjunto probatório favorável. Condenação mantida - pena discricionariedade - redução. Apesar da validade do testemunho infantil, a avaliação respectiva deve se realizar com a devida cautela, sendo arriscada a condenação escorada exclusivamente neste tipo de prova. No caso presente, a prova não se baseia apenas no que foi dito pelas vítimas menores, que à época dos fatos contavam apenas com 12 anos de idade, sendo corroborada por outros elementos de prova, inclusive o laudo técnico pericial. Condenação mantida. (BRASIL, 2016)

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Segundo Stefanello (2016), um estudo muito interessante realizado por Paul Harris e outros comprovou tal teoria, ao colocar crianças entre quatro e seis anos em frente a uma caixa e pedir que

Pisa e Stein (2006, p. 219) baseadas nas pesquisas de Ceci e Bruck salientam:

Reconhecem esses pesquisadores que obter informações precisas de crianças não é uma tarefa fácil, por que (1) crianças não estão acostumadas a fornecer narrativas elaboradas sobre suas experiências; (2) a passagem do tempo dificulta a recordação dos eventos; e, (3) pode ser muito difícil reportar informações sobre eventos que causam estresse, vergonha ou dor.

O crescente número de acusações por delitos sexuais levou os pesquisadores a estudarem mais sobre como as entrevistas com crianças são conduzidas. A partir daí, segundo Pisa e Stein (2006, p. 220, grifo do autor):

Estudos sugerem que as repostas das crianças para perguntas dos adultos podem, às vezes, refletir o que elas pensam que o adulto quer ouvir, no lugar do que elas lembram. Na tentativa de demonstrar sua cooperação com o adulto, a criança raramente responde ―eu não sei‖, mesmo quando não compreende as perguntas. Para demonstrar que são companheiros sociáveis e cooperativos dos adultos, quando a mesma pergunta é formulada mais de uma vez, a criança seguidamente muda sua resposta. As crianças parecem interpretar a pergunta repetida como eu devo não ter dado a resposta correta, então para ser agradável, eu devo fornecer novas informações.

No caso do filme, quando Klara conta sobre o suposto abuso sofrido por Lucas, num primeiro momento, a diretora da creche, antes de tomar providências mais sérias e avisar os pais, tenta averiguar a veracidade da declaração de Klara. Para isso, chama um psicólogo para conversar com a garota. Esta conversa é um perfeito exemplo de como não se entrevistar uma criança com suspeita de ter sido abusada. Segundo Lisboa (2016), o primeiro grande equívoco é partir do pressuposto que houve o abuso e de que o sujeito é culpado. O segundo é a noção implícita de que "crianças não mentem". Finalmente, são feitas perguntas fechadas que acabam gerando o "reflexo" por respostas positivas que agradem o entrevistador. Por exemplo, a reação básica de muitas crianças diante da pergunta "Ele encostou em você de um jeito errado, não foi?" é dizer "sim". Da mesma forma, as perguntas utilizadas pelo psicólogo no filme são altamente tendenciosas como: "É

imaginassem um mostro ou um coelho dentro da mesma. Após tal fato o entrevistador dizia para a criança que precisava sair por alguns minutos deixando-a sozinha com a caixa e o resultado foi que quatro de doze crianças que imaginaram o monstro ficaram assustadas não deixando o entrevistador ir embora. No início do experimento elas até sabiam a diferença entre realidade e fantasia, entretanto ao final do mesmo já não podiam descartar a hipótese de haver um mostro na caixa, demonstrando claramente que a distinção entre real e imaginação pode ser muito tênue em algumas crianças.

verdade que você viu o piupiu do tio Lucas?‖. Curiosamente, ao ouvir essa pergunta Klara balança a cabeça dizendo que não, mas, diante da insistência do profissional, a menina acaba confirmando, ou seja, dizendo o que o entrevistador gostaria de ouvir. Também quando ele diz ―por que não me conta o que o tio Lucas fez?‖, induzindo de que realmente Lucas fez algo a ela. Em todos os momentos, devido à insistência na acusação do psicólogo, Klara concorda com a cabeça em sinal positivo para agradar e, logo após a diretora diz que ela ―está indo muito bem nas respostas‖, o que faz com que a criança continue tentando responder o que eles querem ouvir e não o que realmente ela lembra ou quer falar.

Como refere Lisboa (2016) de que é por equívocos como esse que é recomendada a realização de perguntas abertas (do tipo "como tal coisa aconteceu?" ou "descreva como foi aquele dia"), que não conduzam a criança à resposta "desejada". Outras técnicas, como desenhos e atividades lúdicas em geral, também podem ajudar no processo de investigação. De toda a forma, a possibilidade de erro - ou seja, de que a pessoa acusada seja inocente - não pode ser descartada. Isto não significa desacreditar a vítima, mas entender que as pessoas em geral, e especialmente crianças, podem fantasiar situações38.

No filme, após falar ter sido abusada por Lucas, Klara, em vários momentos, nega o abuso, diz que é mentira e que na escola a mentira se espalhou e inventaram mais coisas, mas aí ninguém mais acredita nela. Sua negação é interpretada como negação do problema. Quando fala pra sua mãe que inventou toda a história sua mãe a olha e diz ―aconteceu sim, mas a sua mente prefere não lembrar, pois não é uma coisa agradável de se lembrar‖. A partir daí, com essa afirmação da mãe, Klara já não mais sabe se aquilo realmente aconteceu ou não e essa confusão gera introdução de falsas memórias nas crianças sobre algo que não aconteceu. Isso fica nítido no momento em que Lucas pede a Klara o que estava acontecendo e ela responde que ―os outros estavam falando que ele tinha feito coisas ruins com ela, mas ela não sabe, não lembra, por causa dos outros, do que os outros estavam falando‖.

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Muitos dos casos de abuso sexual denunciados são mais formas de alienação parental do que realmente delitos. Pais separados começam a induzir os filhos com certas ideias sobre o ex-cônjuge para poder atingi-los de alguma maneira através dos filhos.

As palavras da mãe foi uma importante causa do aumento da sugestionabilidade em Klara. Como expressa Pisa e Stein (2006, p.234) de que é mais provável a criança acreditar em adultos que em outras crianças, e elas estão mais dispostas a aceitar os desejos e a incorporar convicções dos adultos em seus relatos. As crianças desde pequenas supõem que adultos têm mais conhecimento que elas, motivo pelo qual podem tornar-se altamente sugestionáveis quando alguma questão lhe é imposta (STEFANELLO, 2016).

A criança pode, também, ser sensível para status e poder diferente no meio de adultos, como de policiais, juízes, e pessoas da área médica (PISA E STEIN, 2006, p. 235). Completa Stefanello (2016) que esta variável é considerada recorrente entre crianças, especialmente nos tribunais, que acabam expondo o infante a uma situação de excessiva inferioridade em relação ao entrevistador. Por isso é de extrema importância trabalhar o viés do entrevistador perante a criança.

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