• Nenhum resultado encontrado

THE BRIG

No documento O cinema de Jonas Mekas (páginas 57-67)

II. ANTES DOS FILMES-DIÁRIO

2. THE BRIG

No ano de 1963, Jonas Mekas foi assistir ao que deveria ser a última encenação da peça The Brig, do grupo teatral Living Theatre, pois a temporada de apresentação da mesma estava prestes a ser interditada pela polícia.

Fundado em 1947 pela atriz Judith Malina e pelo pintor expressionista abstrato Julian Beck, o Living Theatre é uma companhia de teatro experimental, que foi pioneira em montagens de peças de dramas poéticos, de textos de escritores que raramente haviam sido montados, como de Jean Cocteau, Gertrude Stein, Garcia Lorca, entre outros, sendo sua principal influência o francês Antonin Artaud.

O grupo integrou a contracultura norte-americana sendo precursor do tipo de encenação denominado “happening”, que incorporava elementos de improvisação, fazendo com que cada apresentação fosse única, e negando a noção aristotélica do drama, com começo, meio e fim.

Os diretores do Living Theatre se recusavam a seguir os padrões comerciais das montagens de sucesso e marcaram o início do movimento off-

Broadway, com peças de cunho político, pacifistas e anarquistas, lutando

principalmente contra a Guerra do Vietnã, e vinculavam ao teatro o compromisso de promover mudanças sociais. Quanto à linguagem, propunham a dissolução da quarta parede, a participação ativa do espectador, e o fim das fronteiras entre a arte e a vida. A seguir o trecho de um texto escrito por Julian Beck sobre a missão do Living Theatre:

“Questionar quem somos nós no ambiente social do teatro, desfazer os nós que levam à infelicidade, espalhar-nos sobre a mesa do público como pratos em um banquete, colocar-nos em movimento

como um turbilhão que puxa o espectador para a ação, disparar os motores secretos do corpo, passar pelo prisma e sair como arco- íris, insistir que o que ocorre nas penitenciárias importa, gritar “Não em meu nome!” na hora da execução, mover-se do teatro à rua e da rua ao Teatro. É isso que o The Living Theatre faz hoje. É isso que ele sempre fez.” 40

The Brig, a peça, foi dirigida por Judith Malina em 1963, e escrita pelo ex-

integrante do exército da marinha, Kenneth H. Brown, que havia passado trinta dias em uma prisão da própria Marinha Americana no Japão na década de 1950, por ficar ausente de combate sem permissão oficial. A cela onde Kenneth Brown ficou, conhecida como “The Brig”, ficava no chamado Camp Fuji, uma das muitas instalações da Marinha dos Estados Unidos em solo japonês, considerada severa mesmo em comparação a outras instalações para prisioneiros militares, por não permitir o contato com familiares, e por possuir precárias habitações e acesso restrito a medicamentos.

The Brig é uma peça sobre marinheiros violentando e humilhando outros

marinheiros, sobre obedecer ordens, seguir padrões, matar e morrer em tempos de guerra e opressão. Foi encenada seguindo rigorosamente a precisão dos relatos que Brown havia descrito no roteiro da peça. Para a preparação de atores, a diretora Judith Malina usou do mesmo rigor, impôs a mesma disciplina que era descrita nos manuais de comportamento dos fuzileiros navais, um manual que ensinava com transformar jovens em assassinos de guerra. O ator Harvey Keitel

40 Our mission, texto de Julian Beck presente no sítio www.livingtheatre.org. Tradução livre do

original: “To call into question who we are to each other in the social environment of the theater, to undo the knots that lead to misery, to spread ourselves across the public's table like platters at a banquet, to set ourselves in motion like a vortex that pulls the spectator into action, to fire the body's secret engines, to pass through the prism and come out a rainbow, to insist that what happens in the jails matters, to cry "Not in my name!" at the hour of execution, to move from the theater to the street and from the street to the theater. This is what The Living Theatre does today. It is what it has always done.”

fez um teste para integrar o elenco da peça, porém desistiu do papel, pois havia acabado de sair da Marinha e declarou já ter passado demais por momentos como aqueles.

Judith Malina diz que, inspirada em Antonin Artaud, buscava uma peça na qual os atores seriam queimados vivos na fogueira, mostrando uma grande crueldade no palco, e dessa forma acreditava que aquela crueldade experimentada pelos expectadores transformaria o público que assistisse a peça através do choque, de modo que a violência se convertesse em amor e bondade fora dos palcos. Em suas palavras:

“Se em The Brig, nas faces vazias e autômatas dos prisioneiros, nos sorrisos sádicos e na violência dos guardas, no completo e horroroso silêncio do público, podemos examinar sob a luz da arte e da ciência esta loja de horrores em que vivemos, se arriscarmos abandonar a percepção daquilo que acreditamos ser, daquilo que podemos vir a ser, então talvez poderemos avançar juntos no real: nada de ficção.” 41

Jonas Mekas resolveu abandonar a peça logo após seus trechos iniciais. Com o pouco que assistiu sofreu um choque, e tinha como intenção voltar e filmar a peça, assisti-la integralmente pela primeira vez através de sua câmera. Mekas convenceu então Judith Malina e Julian Beck a invadirem o teatro de madrugada, e encenar a peça novamente, para que ele a registrasse. O cineasta pretendia registrar o que acontecia no palco como se a ação se passasse numa cadeia real,

41 Directing The Brig, texto de Judith Malina sobre a peça, que consta no livreto do DVD do filme

The Brig (Re:voir, 2008). Tradução livre do original: “If in The Brig, in the empty, automaton faces of the prisoners, in the sadistic smiles and violence of the guards, in the complete and horrific silence of the audience, we can examine under the light of art and science this shop of horrors in which we live, if we can risk abandoning our perception of what we believe we are, of what we might become, then perhaps we might take a step together into the real: no fiction.”

como se ele fosse um repórter que havia consigo permissão da marinha norte- americana para adentrar em suas celas. Para isso, não poderia saber o que se sucederia ao longo da peça, pois sua intenção era ser surpreendido pela ação no palco, para que a reação da câmera durante as filmagens fosse a mais espontânea possível.

Para o registro da peça, Jonas Mekas utilizou procedimentos e técnicas do cinema direto, com o intuito de captar a brutalidade humana que se desenvolvia em cena. Ele utilizou três câmeras Auricon 16mm, com um sistema que grava o som diretamente na película, o que aumentou a “veracidade” que pretendia alcançar com o filme. Cada câmera era carregada com um rolo de dez minutos de película, e a cada dez minutos havia uma pequena pausa na encenação para que os chassis pudessem ser trocados. No total foram registrados doze planos sequências de dez minutos cada.

The Brig não se trata de um registro convencional de uma peça de teatro,

na qual a câmera se posiciona estática em frente ao palco, fora de cena, como no chamado teatro filmado, nos primórdios do cinema. Nem de uma peça decupada e ensaiada, registrada como um filme de ficção tradicional. Para Jonas Mekas, enquanto filmava, aquela “era” uma cela real. A câmera de Mekas capturou as imagens de cima do próprio palco, num corpo à corpo com a encenação, usando a câmera na mão e circulando livremente entre os atores. Desse modo a peça não nos é mostrada em sua totalidade, mas sim de maneira similar ao que os olhos de um repórter poderiam captar se aquela fosse uma situação real. O pesquisador David E. James diz que, em The Brig, podemos vislumbrar semelhanças com o modo no qual Jonas Mekas então viria a registrar as imagens de seus filmes- diário.

“Embora este não se seja um filme-diário em si – sendo também sua última obra a não se enquadrar neste gênero –, o fato de

Mekas filmá-lo numa única longa tomada (interrompida apenas para a troca da película na câmera) fez com que ele fosse obrigado a responder com imediatez à peça, no presente contínuo de sua percepção.” 42

Thr Brig começa com a cartela: “March 7, 1957, U.S. Marine Corps, Camp Fuji, Japan – 4:30”. No início do filme, em momento algum é explicado aos

espectadores se aquela produção é uma tomada da realidade, um documentário ou um filme de ficção. Pela veracidade e crueza com que o exterior é captado, o espectador desavisado é colocado em uma situação de dúvida.

Nas imagens que se passam, acompanhamos um dia na vida dos prisioneiros em The Brig, obrigados a cumprir ordens sem sentido que chegam ordenadas aos berros, e que os obrigam a executar com perfeição ações de organização e higiene. Os presos são impelidos a obedecer qualquer que seja a ordem, de forma instantânea e mecânica, sem ter tempo de racionalizar sobre o seu significado. Vemos como um homem é doutrinado a rastejar perante seus superiores, a sofrer humilhações e a aturá-las passivamente. São impelidos a viver um cotidiano automático no qual apenas cumprem obrigações: se levantam, lavam, limpam seus aposentos, urinam, comem, fumam, comem, são revistados, trabalham, etc. e, consequentemente, às vezes, enlouquecem, surtam.

42 JAMES, David E. Diário em filme / Filme diário: Prática e produto em Walden in MOURÃO,

Patrícia (org.) Jonas Mekas. São Paulo: CCBB, 2013. Texto originalmente presente no livro To

Cena do filme The Brig.

O filme não aborda simplesmente o funcionamento do militarismo, mas principalmente questões acerca da gênese de qualquer instituição opressora, como a escola ou o trabalho, ou a própria sociedade e o seu capitalismo exacerbado, com suas características que restringem a liberdade e a individualidade de cada ser humano, o obrigando a agir e a viver de maneira coibida, como uma mera ferramenta dentro de um mecanismo opressor.

A câmera captou a “realidade” da peça de perto, próxima aos atores, próxima aos seus gritos, em cenas claustrofóbicas e aterrorizantes. A câmera reage à dores dos personagens, reage à violência em cena. O som direto faz com que a sensação de realidade aumente, e mesmo quando vemos uma ação em quadro, podemos ouvir outras ações que ocorrem fora dele, o que por vezes

amplia a sensação brutal e a bestialidade das situações captadas. Não há trilha sonora, mas uma orquestração de sons, gritos e passos erigidos pelos próprios atores e pela encenação, na construção de uma espécie de sinfonia do horror.

Somente no final do filme, já nas últimas horas do dia dos prisioneiros, quando estão indo dormir, a câmera se afasta e toma a posição de um espectador na plateia do teatro. Vemos que a cela se trata de um palco, e logo as luzes se apagam. Os créditos finais nos revelam que as cenas foram captadas durante um espetáculo do Living Theatre. The Brig foi construído de uma maneira extremamente realista, e a encenação dos atores é tão meticulosamente visceral, que acabou como o filme vencedor do prêmio de melhor documentário no Festival de Veneza no ano de 1964.

The Brig pode ser considerado um libelo contra a violência: sua “arma”

política é abusar de uma estética de choque, na qual o excesso de violência e brutalidade é usado contra a própria violência, com a intenção de causar no espectador aversão aos horrores da guerra.

Jonas Mekas já havia passado parte de sua vida em campos de trabalho forçado na Alemanha, tendo presenciado de perto os horrores da guerra, fatos que o levaram a registrar a encenação daquela maneira. Tendo passado por tudo isso, Mekas registra a peça de ficção de forma documental, captando as imagens à maneira do cinema direto. Provém daí a originalidade do filme The Brig, experiência única em sua longa obra, que pouco tempo depois enveredaria para o filme-diário.

Questionado se a experiência como prisioneiro em um campo de concentração nazista o teria ajudado a entender melhor The Brig, o filmmaker conclui:

“Não, mesmo agora eu não entendo. Não entendo os caminhos da humanidade. A humanidade é insana, louca, estúpida, má, perversa, e acabará mal. E ela merece esse fim.” 43

Esse é o último filme dos realizados por Jonas Mekas que se situa numa fase mais “engajada” de sua filmografia. O cineasta iria então iniciar sua produção de filmes-diário, a qual continua, embora com mudanças estéticas e de suporte, até os dias de hoje.

43 Q&A With Jonas Mekas, entrevista com o cineasta que consta no livreto do DVD do filme The

Brig (Re:voir, 2008). Tradução livre do original: “No, even now I don’t understand it. I don’t understand the ways of humanity. Humanity is insane, crazy, stupid, bad, evil, and it will end up bad. And it deserves that kind of end.”

No documento O cinema de Jonas Mekas (páginas 57-67)

Documentos relacionados