• Nenhum resultado encontrado

The Habit of Movement: a alternância entre espaços narrativos na obra

2. Judith Ortiz Cofer e a arte de escrever entre dois mundos: memória,

2.2. The Habit of Movement: a alternância entre espaços narrativos na obra

A complexidade da construção identitária e cultural de Judith Ortiz Cofer e a sua experiência enquanto migrante e autora porto-riquenha nos Estados Unidos estão intimamente ligadas à alternância entre os espaço físico e psicológico de Porto Rico e dos Estados Unidos; os dois espaços narrativos representados na sua obra figuram simbolicamente como marcadores identitários e culturais, e é no intervalo entre os dois e no movimento constante entre os dois espaços, que a autora define a sua identidade (Domínguez Miguela, 2001).

A dicotomia entre Porto Rico e os Estados Unidos, entre as culturas porto- -riquenha e americana, é uma parte integrante da experiência migrante porto- -riquenha nos Estados Unidos (Acosta-Belén, 1992) e a circulação dos porto- -riquenhos entre Porto Rico e os Estados Unidos representa um movimento habitual que lhe merece a designação de guagua aerea23. Importa notar que a alternância entre Porto Rico e os Estados Unidos que se verifica na infância e parte da adolescência de Judith Ortiz Cofer é específica da situação familiar da autora; já nos Estados Unidos, o trabalho do pai de Ortiz Cofer na marinha americana obrigava-o a longos períodos de ausência e, durante esses períodos, a restante família regressava a Porto Rico:

[his job] prompted him to devise the complex system of back-and--forth travel that I experienced most of my childhood. Every time he went to Europe for six months, we went back with Mother to her mother’s casa; upon his return to Brooklyn Yard, he would wire us, and we would come back. Cold/hot, English/Spanish; that was our life (Ortiz Cofer, 1991: 129).

23

O termo «guagua aerea» é utilizado por Antonia Domínguez Miguela no artigo «Creando un Puente entre las dos orillas: la identidad puertorriqueña y los espacios narrativos en la obra literaria de Judith Ortiz Cofer» e designa os aviões que efectuam o trajecto entre Porto Rico e os Estados Unidos. A frequência desta deslocação motivou a designação (Domínguez Miguela, 2001). Para uma definição do termo ver «La guagua aerea.» de Luis Rafael Sánchez em Imágenes

49 O movimento pendular entre Porto Rico e os Estados Unidos obrigou Judith Ortiz Cofer a crescer entre duas línguas, duas culturas e literalmente dois espaços físicos paradoxais que informam a sua obra literária: «[...] I grew up in two worlds, the tropical island and the cold city […] which would later surface in my dreams and in my poetry» (Ortiz Cofer, 1991: 15).

Judith Ortiz Cofer afilia-se claramente com a sua origem porto-riquenha: «[...] I consider myself a Puerto Rican the same way that anybody living on the Island is a Puerto Rican» (Ortiz Cofer apud Acosta-Belén, 1993: 6); todavia, a posição bilingue e bicultural da autora obriga à reclamação de uma identidade própria entre as duas línguas, culturas e espaços. Jorge Duany (2000, 2003) designa este processo de transnacionalismo e Luis Rafael Sánchez, citado por Antonia Domínguez Miguela, define-o como uma «[...] identidad flotante, una identidad que encuentra su espacio definitorio más apropiado en imágenes como la de la guagua aérea, el puente psicológico y emocional entre las dos culturas» (Sánchez apud Domínguez Miguela, 2001: 6).

Os espaços narrativos na obra poética e narrativa de Ortiz Cofer contribuem para a sua negociação entre culturas (Domínguez Miguela, 2001); a dicotomia estabelece-se entre Porto Rico e os Estados Unidos, Hormigueros e Paterson, ilha e cidade, hot e cold, Spanish e English. Porto Rico representa a sua origem identitária e cultural: «[...] Puerto Rico became a symbol of ethnic pride and political resistance against the racism, economic and political oppression, and marginalization that many Puerto Ricans [...] endured8» (Montilla, 2007: 53); contrariamente, os Estados Unidos e o espaço do barrio simbolizam marginalização e intolerância: «[...] un espacio alienante y conflictivo [...] la define como “el otro” en la sociedad norteamericana» (Domínguez Miguela, 2001: 7).

Reconhecidamente, para a comunidade diaspórica porto-riquenha, Porto Rico é endémico e autêntico, representa a ligação entre o passado e o presente; a cidade nos Estados Unidos significa inospitalidade e inclemência: «[…] Puerto Rico provides the biological genesis and the mythical roots of historical continuity with the present, in contrast with the crude reality of the “mean streets” of New York City» (Acosta-Belén, 1992: 993).

Judith Ortiz Cofer admite que a construção da sua identidade e cultura só é possível na interacção entre as duas realidades:

50 I am a composite of two worlds. For example, I know I could never live in Puerto Rico full-time now. I am too culturally assimilated into the United States; the way of life, the language and all of that. And yet, I continually yearn for the island (Ortiz Cofer apud Acosta-Belén, 1993: 7).

Nos diferentes textos poéticos e narrativos, Porto Rico e Paterson sugerem a construção interior da identidade da autora; a dinâmica entre espaços acompanha o desenvolvimento da identidade da autora e o movimento pendular entre as duas culturas consubstancia a sua identidade cultural (Domínguez Miguela, 2001); a dicotomia entre ilha e cidade repete-se ao longo da obra literária da autora, conforme é amplamente reconhecido por Ocasio (1992), Acosta-Belén (1993) e Domínguez Miguela (2001). Em Reaching for the Mainland, o título identifica de imediato o movimento de um espaço narrativo para outro. Conforme Antonia Domínguez Miguela (2001) nota, Reaching for the Mainland divide-se em três partes e cada uma corresponde a um momento no rito de passagem que se anuncia no título da obra: «The Birthplace» inclui os poemas sobre Porto Rico; «The Crossing» indica a passagem física e psicológica de um espaço para o outro; e «The Habit of Movement», título também de um dos últimos poemas, encerra a colecção de poemas com a constatação dessa realidade. O movimento pendular é físico e psicológico, entre culturas e espaços, e é no «hábito do movimento» que a autora encontra o seu espaço próprio. Noutra obra poética, Terms of Survival, a separação entre espaços acontece pela identificação da primeira parte com o título de Palabras, na língua vernacular — todos os poemas desta secção têm uma palavra em espanhol como título — e cada um dos poemas alude a Porto Rico. Na segunda parte da colecção, Common Ground, os títulos dos poemas são em inglês e a temática é a cidade.

A obra poética da autora não esgota a representação dos espaços narrativos como marcadores da identidade cultural; em The Line of the Sun existe uma clara separação entre os dois principais espaços narrativos, a cidade de Salud, em Porto Rico, na primeira parte da obra, e o barrio em Paterson, Nova Jersey, na segunda parte da obra. Pode, aliás, como defende Domínguez Miguela (2001), equivaler-se estes dois espaços narrativos a personagens pela forma como condicionam as personagens nas suas acções e comportamentos. Existem diversos outros espaços narrativos dentro do espaço físico da cidade de Salud, que Domínguez Miguela (2001) designa de sub-espaços, nomeadamente a casa da Mamá Cielo, a casa de

51 Rosa, La Cabra, a igreja da cidade, a bodega, a casa grande do Americano, a refinaria e os campos de cana do açúcar, que compõem a cidade de Salud e Porto Rico: «[y]our Salud represents everything Puerto Rican» (Ocasio, 1992: 4). Guzmán representa os espaços exteriores e naturais de Porto Rico, mas os sub- -espaços na cidade de Salud, a igreja, a bodega e, em determinada medida, a casa da mamá Cielo, carregam uma determinada hipocrisia e contradição que os transformam em espaços sufocantes; a designação de «Salud» é assim profundamente irónica. Os espaços privados, como a casa da mamá Cielo ou a igreja, representam uma outra forma de opressão, obrigam as personagens femininas ao papel que a sociedade patriarcal porto-riquenha lhes impõe, sendo disso exemplo os deveres domésticos e os deveres religiosos (Domínguez Miguela, 2001).

O segundo espaço narrativo, a cidade nos Estados Unidos, representa um espaço de isolamento, inospitalidade e violência física e emocional: «[w]hen we arrived it was dark and cold. We were all hungry and tired» (Ortiz Cofer, 1989: 191). Aqui, a comunidade porto-riquenha na diáspora experimenta discriminação e intolerância: «[...] At night all cats and Puerto Ricans are black, hey?» (Ortiz Cofer, 1989: 200). Na cidade, os sub-espaços narrativos são o El Building e o barrio, onde se reproduz o ambiente da ilha, uma forma de tropicalização do espaço que se isola da realidade exterior da cidade e constitui um lugar de refúgio e nostalgia, como nota Domínguez Miguela (2001); por sua vez, Montilla (2007) nota que El Building reproduz Porto Rico através dos comportamentos, da sonoridade, da língua, da música, da comida, dos cheiros:

[t]he adults conducted their lives in two worlds in blithe acceptance of cultural schizophrenia, going to work or on errands in the English-speaking segment [...] Once inside the four walls [...] as it had been on the Island, women decorated their apartments with every artefact that enhanced the fantasy (Ortiz Cofer, 1989: 171-172).

Todavia, o barrio e o El Building funcionam, simultaneamente, como espaços de auto-marginalização ao criar um enclave étnico, uma ilha no meio dos Estados Unidos: Ramona e Guzmán nunca se adaptam ao espaço da cidade, mas Rafael aceita que os Estados Unidos representam o futuro dos seus filhos; Marisol e Gabriel são produtos da intersecção entre o seu espaço de origem e o espaço adoptado, conforme Domínguez Miguela (2001) indica. O incêndio no El

52 Building destrói o espaço que nutria Ramona emocionalmente e representa o fim da fantasia de Porto Rico na cidade americana; conforme Domínguez Miguela (2001) refere, no caso de Ramona, a cidade funciona como sua adversária, um espaço alienante, ao qual ela rejeita adaptar-se. Guzmán e Ramona regressam a Porto Rico, ao espaço com que se identificam. Contrariamente, Marisol e Gabriel permanecem nos Estados Unidos. Domínguez Miguela (2001) nota que as personagens estão individualmente conotadas com um dos dois espaços narrativos dominantes e é necessário distinguir entre aquelas que não conseguem separar-se da ilha e aquelas que reconhecem na ilha a sua origem e a sua herança cultural, mas que criam o seu próprio espaço nos Estados Unidos. Guzmán e Marisol constituem os dois pólos em The Line of the Sun; eles simbolizam dois modos de vida em dois espaços narrativos que, para Marisol, em conjunto, reconfiguram a identidade cultural porto-riquenha na diáspora nos Estados Unidos; Marisol representa a reconciliação possível entre dois espaços, duas línguas e duas culturas. Guzmán é a memória da sua herança cultural, Marisol vinga no ambiente hostil da cidade; para construir a sua identidade, Marisol necessita de combinar memória e a imaginação, encontrando o seu espaço entre estes dois espaços físicos, narrativos e psicológicos.

Silent Dancing — A Partial Remembrance of a Puerto Rican Childhood condensa um conjunto de ensaios autobiográficos que revelam a importância e a alternância entre espaços físicos e narrativos na construção da identidade cultural de Judith Ortiz Cofer. Em muitos aspectos, as obras de Judith Ortiz Cofer sobrepõem-se, isto é, as linhas orientadoras repetem-se, por exemplo, nos espaços físicos e narrativos que enquadram as suas obras; naturalmente, se Porto Rico e Paterson informam a sua construção identitária e cultural, é expectável que figurem proeminentemente na maioria das suas obras. Em Silent Dancing — A Partial Remembrance of a Puerto Rican Childhood, conforme Domínguez Miguela (2001) refere, também é possível distinguir duas partes com base nos espaços narrativos que enformam a colecção de ensaios; a passagem de um espaço narrativo para o outro acontece no ensaio com o mesmo nome que intitula a obra, «Silent Dancing». A primeira parte dos ensaios autobiográficos decorre em Porto Rico e a partir de «Silent Dancing», estes têm lugar nos Estados Unidos, em Paterson, Nova Jersey. Porto Rico representa o estereótipo da ilha tropical, exuberante, viçosa, exótica, quente; por oposição, Paterson, Nova Jersey, é frio,

53 cinzento, inóspito e perigoso (Ortiz Cofer, 1991). Os sub-espaços dentro dos espaços narrativos são igualmente pertinentes para a compreensão destes enquanto elementos formativos da identidade e da cultura de Ortiz Cofer; na primeira parte da obra, a casa da avó, Mamá, é o sub-espaço primordial do romance, na segunda parte da obra, El Building é o sub-espaço de destaque na cidade.

Não é isento o início da obra com o ensaio «Casa». O termo refere-se à casa da avó, «[...] la casa de Mamá» (Ortiz Cofer, 1991: 23), o espaço onde a autora tem contacto com a sua herança cultural porto-riquenha, sobretudo através da avó e do storytelling desta, a tradição oral feminina que serve de base criativa ao seu próprio processo de criação literária, conforme notado por Domínguez Miguela, (2001). O antagonismo entre Porto Rico e os Estados Unidos fica patente na descrição que as mulheres da família de Ortiz Cofer na ilha fazem do «Outro» espaço: «They talked about life on the island, and life in Los Nueva Yores, the their way of referring to the U.S., from New York City to California: the other place, not home, all the same [sublinhado meu]» (Ortiz Cofer, 1991: 23). Porto Rico e a casa da Mamá representam o espaço exótico, familiar, das brincadeiras de criança e das histórias, a sua origem cultural; «I wanted to continue living the dream of summer afternoons in Puerto Rico» (Ortiz Cofer, 1991: 51-52).

Por oposição, Paterson, Nova Jersey, representa o espaço urbano e inóspito, de solidão e discriminação:

[...] our new home was truly in exile. There were Puerto Ricans by the hundreds only one block away, but we heard no Spanish, no loud music, no mothers yelling at children, nor the familiar ¡ Ay Bendito!, that catch-all phrase of our people (Ortiz Cofer, 1991: 64).

Outros elementos da cidade, nomeadamente o edifício escolar, personificam a frieza e indiferença daquela: «[i]t could have been a prison, an asylum, or just what it was: an urban school for the children of immigrants [...] A chain-link fence surrounded its concrete playground» (Ortiz Cofer, 1991: 64). À semelhança do que acontece com a personagem Ramona, em The Line of the Sun, o espaço da cidade funciona como um adversário para a mãe da autora, que tenta recriar o ambiente porto-riquenho e da ilha na sua própria casa, o que obriga Ortiz Cofer a viver num microcosmos de Porto Rico na esfera privada e nos Estados Unidos na esfera pública, entre as duas línguas e as duas culturas:

54

During the twenty years she spent in “exile” in the U.S. [...] she dedicated her time and energy to creating a “reasonable facsimile” of a Puerto Rican home, which for my brother and me meant that we led a dual existence: speaking Spanish at home with her, acting out our parts in her traditional play, while also daily pretending assimilation in the classroom […] (Ortiz Cofer, 1991: 152).

Importa referir, como Antonia Domínguez Miguela (2001) indica, que a transição entre espaços representa igualmente uma transição entre valores e comportamentos paradoxais entre si, obrigando a autora a um movimento pendular constante entre espaços e culturas. A alternância entre estes dois espaços narrativos na obra de Judith Ortiz Cofer reflecte como ambos contribuem para a sua formação a nível de identidade e cultura. A reconciliação encontra-se no próprio movimento pendular entre os dois espaços e as duas culturas:

I wanted to continue living the dream of summer afternoons in Puerto Rico, and if I could not have it, then I wanted to go back to Paterson, New Jersey, back to where I imagined our apartment waited, peaceful and cool, for the three of us to return to our former lives. (Ortiz Cofer, 1991: 51-52).

A reconciliação identitária e cultural de Judith Ortiz Cofer só é possível na reconciliação da contribuição dos diversos espaços; a autora reafirma a sua identidade porto-riquenha como origem cultural e acrescenta-lhe a participação incontornável de Paterson e da Georgia na construção da sua identidade e cultura actuais:

[...] I always say I’m Puerto Rican, which is obviously what I am. […] I’m culturally an American woman and a native Puerto Rican [sublinhado meu] […] I love going to the island but it’s no longer as familiar to me as Georgia. […] I refuse to be politically correct and say that I’m a pure, unadulterated, native puertorriqueña. No. I have undergone an evolutionary process as has everyone who has ever left their homeland» (Ortiz Cofer apud Kevane e Heredia, Eds., 2000: 122).