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2. REVISÃO DA LITERATURA

2.2. SEGURANÇA NO TRÂNSITO

2.2.1. Trânsito e mobilidade

“O conceito de segurança no trânsito e suas implicações na manutenção da mobilidade das pessoas são temas emergentes” (Mânica, 2007). Trânsito, em particular a segurança viária, e mobilidade são assuntos intrinsicamente associados no contexto urbano. Não por acaso, o art. 24, combinado com o inciso VI do art. 5º, ambos da Lei nº 12.587, de 2012, prevê que os planos de mobilidade urbana elaborados pelos municípios devem contemplar, entre outros requisitos, o princípio da segurança nos deslocamentos das pessoas.

Essa exigência é verificada também em outros países. Na França, o Ato de Solidariedade e Renovação Urbana, de 2000, tornou obrigatório que os Plans du Deplacements Urbains

22 franceses incluíssem metas de segurança viária (Böhler-Baedeker et al., 2014). De modo análogo, o Transport Act 2000 inglês exige que todas as autoridades locais inglesas produzam o respectivo Local Transport Plan, que garantam eficácia, integração, segurança e viabilidade econômica dos sistemas de transporte (França et al., 2017). Em particular, o Plano Local de Londres 2015 é apoiado em cinco temas básicos, entre os quais a segurança no trânsito (City of London Corporation, 2015).

Mostra-se, então, coerente a afirmação de que “todo planejamento territorial, de transporte e de trânsito com foco na Lei de Mobilidade e na Política Nacional de Trânsito deve ser analisado de forma sistêmica e as estruturas de governo devem ser integradas na definição dos planos diretores estratégicos” (Pereira et al., 2014). Nesse mesmo sentido, Bavoso (2014) afirma que a boa gestão do trânsito melhora as condições de mobilidade e a qualidade de vida dos habitantes de uma cidade.

Contudo, na formulação das ações de mobilidade urbana, via de regra, o principal atributo da gestão do trânsito levado em consideração é o da fluidez dos deslocamentos. As ações do Poder Público nos sistemas viários das cidades priorizam o aumento da capacidade de tráfego, a redução dos congestionamentos e, na contramão da segurança, o aumento da velocidade média das viagens urbanas.

Até mesmo em países desenvolvidos, essa lógica se mostra presente. Em estudo sobre a segurança viária no contexto do desenvolvimento urbano nos Estados Unidos (San Francisco, Califórnia) e na Suécia (Estocolmo), McAndrews (2010) aponta para o conflito enfrentado por gestores públicos ao planejarem o trânsito nessas localidades: prover maior mobilidade aos automóveis ou reduzir a velocidade máxima permitida a fim de prevenir acidentes?

Apesar da consciência e da preocupação dos profissionais de ambos os países com a segurança no trânsito, os números de acidentalidade revelados pela pesquisa indicam melhor desempenho da gestão sueca do que da americana, evidenciando diferenças na abordagem do trânsito e da mobilidade em cada localidade estudada. McAndrews (2010) conclui que, na Suécia, a segurança de pedestres e ciclistas – usuários mais vulneráveis – prevalece sobre os veículos motorizados e que, dada a integração entre trânsito, mobilidade urbana e uso e ocupação do solo, as intervenções viárias conseguem harmonizar mobilidade, acessibilidade e segurança. Na

23 Califórnia, assim como na maioria das cidades do mundo, a cultura do automóvel é muito marcante e, portanto, as intervenções no sistema viário ainda priorizam a fluidez no trânsito.

Raia Junior et al. (2005) apontam para a necessidade de mudança desse paradigma, ao discorrerem sobre a filosofia Visão Zero adotada na Suécia desde 1997 – coincidência ou não, o mesmo ano em que foi sancionada a Lei nº 9.503, que institui o Código de Trânsito Brasileiro. De acordo com a concepção sueca, segurança, saúde e meio ambiente são os aspectos mais importantes no sistema de transporte rodoviário e, portanto, a mobilidade deveria se subordinar à segurança viária. Em outras palavras, a vida e a integridade física das pessoas não pode se subjugar aos benefícios da mobilidade (Hughes et al., 2015).

Trazendo para a realidade brasileira, ao discorrer sobre a crise da mobilidade urbana em São Paulo, Scaringella (2001) afirma que “é importante defender o primado da segurança em detrimento da fluidez a partir da importância que deve ser dada à preservação da vida”. Além desse motivo ético-universal – preservação da vida humana –, Vasconcelos (1998) já assinalava a questão dos custos sociais dos acidentes ao enfatizar a importância da segurança nos deslocamentos nas cidades.

Em tese, parece não haver discordância a respeito da importância a ser dedicada à segurança no trânsito. O elevado número de mortos e feridos impede qualquer argumentação contrária. No entanto, a realidade mostra-se de certo modo diferente. Indaga-se, então: por quê?

Deixando de lado, nesse momento, a hipótese de que o planejamento urbano não dá a devida importância à questão da violência no trânsito – problemática a ser investigada no presente trabalho –, Ferraz et al. (2012) atribui à sociedade uma parcela de responsabilidade por esse cenário:

“Como a probabilidade do envolvimento em acidentes é pequena, o desejo de mobilidade das pessoas prepondera sobre o desejo de segurança. Em razão disso, a aceitação por parte da população de ações para a melhoria da segurança no trânsito depende muito do impacto que têm sobre a mobilidade.”

De fato, fora do ambiente acadêmico e dos fóruns de debate entre especialistas de transito e de mobilidade, a percepção que se tem é a de que, para os motoristas em geral, chegar ao destino

24 do deslocamento mais rápido é mais relevante do que chegar com segurança. Talvez essa lógica esteja por trás das ações públicas na gestão do trânsito e da mobilidade, justificando assim o papel coadjuvante da segurança no trânsito nas cidades brasileiras. Utopia ou não, o cenário mais adequado é aquele em que o planejamento urbano seja concebido levando-se em consideração as necessidades e especificidades de todos os tipos de usuários do sistema de transporte (Faria e Braga, 1999).

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