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2- O TRABALHO FEMININO NA COMUNIDADE DE CAPOEIRAS

3.2 O Trabalho e família

De acordo com Carneiro (2001: 24), a família é entendida como uma unidade cujos interesses coletivos devem ser preservados, cabendo ao pai zelar pelo patrimônio coletivo e transmitindo-os para as demais gerações. É interessante pontuar que essa propriedade encarnada no chefe de família é o símbolo da unidade e da identidade familiar que deve ser reproduzida no tempo pelos laços familiares. Sabemos que a família é composta por fatores como: gênero, geração, conjugabilidade, sentimento de pertencimento, ideias de corresidência, cooperação solidária, autoridade, afeto e subjetividade.

Matwychucky (1997) pontua que processos como modernização, desenvolvimento, industrialização, capitalismo, urbanização ou o crescimento das economias de mercado estimularam mudanças de famílias extensas para nucleares e da família como uma unidade de produção para uma unidade cujas funções são primariamente de consumo ou emocionais. A caracterização das mudanças na estrutura familiar por si só não é suficiente para entendermos os desafios que as famílias enfrentam para conciliar trabalho e cuidados familiares.

146 A “tradicional” divisão sexual do trabalho que consiste na especialização dos homens no papel de provedores do lar e das mulheres como cuidadoras da família têm sido alteradas nas últimas décadas pela rápida incorporação dos cônjuges ao mercado de trabalho (FONTES, MACHADO; SORJ, 2007; 582). Essa inserção de mulheres além de responder as dificuldades econômicas enfrentadas pela família são também resultados das mudanças culturais relacionadas aos papeis de gênero que valorizam a independência e a autonomia das mulheres e que têm sido importantes para manter o bem-estar das famílias.

Na perspectiva de Goldani (1993), a família passa por uma desinstitucionalização interna. Nota-se que nessas mudanças os indivíduos tornam-se mais autônomos, menos dependente do grupo, gerando grupos domésticos menos coesos e integrados. Já Anderson (1980) problematiza que essas modificações estão sendo acompanhadas por um novo conjunto de normas relativas à divisão dos papeis e de novas relações de gênero dentro da família, justamente por discutir a segregação do trabalho que antes era de responsabilidade do pai/marido passando também a ser desenvolvido longe da casa, das atividades domésticas pela mãe/esposa.

Nesse contexto de mudanças existente na relação entre trabalho e família, vemos que está muito presente na comunidade de Capoeiras. A inserção principalmente de mulheres casadas no mercado de trabalho promove verdadeiras mudanças em relação ao convívio diário com seus familiares. Partindo do ponto de Carneiro (2001), percebemos que os padrões de transformação do patrimônio familiar tende a acompanhar as transformações econômicas e sociais do local, cabendo às famílias desenvolverem estratégias em função de sua inserção no mercado de trabalho. Nesse processo de mudanças a família acaba participando ativa e intensamente, pois suas estruturas colaboram para emergência de novas formas de relações entre os sexos e de expressões de afetividades no contexto do trabalho.

Já é bem aceito que, embora as funções e a organização da família e da unidade doméstica possam ter mudado, o que acontece no interior das famílias dessas unidades não está isolado ou separado do contexto sociocultural mais amplo e que as relações domésticas são uma parte essencial da estrutura política da sociedade. Além disso, essas estruturas sociais, políticas e econômicas mais amplas afetam os membros da família de maneiras diferentes e frequentemente contraditórias criando bases de solidariedade e unidades em membros [assim como] fontes de conflitos e ruptura. (MATWYCHUCKY,1997: 218)

Nessa concepção, significa dizer que o deslocamento da família ou parte de seus membros, resultam numa reconfiguração no seio da unidade familiar de origem. Observa-se na comunidade de Capoeiras que esse fato não ocorre isoladamente, na medida em que envolve também por um processo de movimentação sucessiva de mulheres ou até mesmo de

147 homens por períodos consideráveis de tempo (semana, mês). Dessa forma, a reconstituição da divisão do trabalho nos lares além de provocar mudanças na organização da família, também procura manter a importância dos grupos originais, como também devemos destacar que está em jogo outras mudanças que afetam a família como: mudanças nos padrões de consumo e convivência com novas pessoas e novos costumes.

Essa adesão das mulheres no mercado de trabalho, como sugere Goldani (1993), resulta cada vez mais de uma negociação na qual todos os membros da família acabam participando e influenciando, ou seja, são resultados de acordos que são elaborados através da interação familiar. Nota-se que há um processo de barganha entre homens e mulheres, maridos e mulher, pais e filhos, gerando novas dinâmicas e arranjos familiares. Balsadi (2001) coloca que essas alterações por conta da entrada no mundo do trabalho fazem com que a família passe de nucleada e seja orientada segundo a lógica única da agricultura, passando as fontes de renda familiar ser múltiplas, através das atividades não-agrícolas com investimento em novas atividades. Sendo assim, as mudanças apresentadas acabam por implicar em outras dimensões da vida das mulheres e redefinem prioridades e as relações que se estabelecem no contexto da família, passando a modificar também o próprio caráter e contexto da estrutura familiar.

Devemos destacar que essas transformações também são produtos das discussões travadas entre as forças das ideologias de gênero que conferem a mulher o cumprimento das atividades domésticas em contraposição com as demandas implicadas pelo mundo moderno. Nesse casso a inserção das mulheres de Capoeiras no mercado de trabalho se dá na maioria das vezes em contraste com o conflito entre os antigos e os novos papéis que a mulher ocupa sociedade, se agravando principalmente por se tratar de mulheres que na maioria das vezes, desenvolvem trabalhos que demandam horários e períodos longe de casa e da família. Outro dado interessante é atentar que estamos tratando de mulheres oriundas de comunidade rural que vêm marcadas historicamente pela subordinação econômica e dependência dos esposos, atuando num deslocamento campo/cidade para ingresso no mundo do trabalho.

De acordo com Parry Scott (2007), as mudanças que ocorrem nos padrões de fecundidade, mortalidade, migrações e nupcialidades, em conjunto com a vivência das relações familiares se apresentam em constante fluxo, contribuindo para que a experiência da responsabilidade feminina se torne uma condição social, não resumida só na condição do empobrecimento ou de papel secundário na esfera da família, mas dando visibilidade do seu papel ativo na constituição de renda no espaço doméstico. Diante dos fatores apresentados, em seguida serão apresentados alguns fatores que estão presentes na nova configuração das

148 famílias e se refletem na medida em que há uma adesão de mulheres em atividades de trabalho.

Os dados coletados nos mostram que as mulheres que desenvolvem atividades de trabalho estão dando menos prioridade à formação de um núcleo familiar com filhos. Elas apontam que a decisão de não ter filhos é adiada com o objetivo de alguma delas preferirem se estabilizar financeiramente ou por perceberem o grande custo de vida e investimento que está por trás da maternidade como: gastos com educação, saúde ou até menos por seu afastamento do mercado de trabalho. Nesse sentido, a diminuição do número de filhos significa uma redução do trabalho reprodutivo e pode repercutir positivamente na capacidade das mulheres de aumentarem sua participação no mercado de trabalho conciliando melhor trabalho e responsabilidades familiares.

Por outro lado, a existência de mulheres sozinhas ou solteiras com filhos na comunidade promove a adesão na esfera do trabalho, pois elas não têm com quem dividir as despesas e acabam sendo muitas vezes são as únicas responsáveis pelo sustento da família, as mulheres chefes de família, essas são mulheres que ocupam na maioria das vezes o trabalho doméstico fora da comunidade, caso que veremos com mais profundidade no tópico seguinte.

A dupla jornada de trabalho, segundo algumas mulheres, é um dos principais problemas enfrentados. Elas independentes de trabalharem em escolas, casas de família, posto de saúde ou na câmara de vereadores e demais profissões, relatam que são as responsáveis pelos trabalhos domésticos nas suas residências. Elas além de cumprirem seus expedientes no trabalho remunerado, quando estão em casa se dedicam a realização das tarefas domésticas e cuidados com os filhos, mesmo que algumas vezes tenham auxilio das mães, parentes próximos cuidando da casa.

Como na análise de Sadenberg (1998), na comunidade pesquisada as meninas mais velhas assumem desde cedo uma carga maior de responsabilidades na família, elas são encarregadas das tarefas que cabem as mulheres/mães/donas de casas no período da ausência. Os meninos são encarregados desde cedo nas realizações de tarefas realizadas fora de casa, como as atividades ligadas ao roçado e a dedicação à vida escolar. Dessa forma, os meninos são mais privilegiados tendo mais tempo para oportunidades e atividades de lazer e mais liberdade para andar pelas ruas.

Os meninos gozam de certa liberdade, em relação às meninas, derivada na construção da masculinidade nos grupos sociais. Devido ao atributo de uma maior exterioridade, os meninos permanecem um maior tempo fora do domínio do lar, tendo mais tempo para o lazer. Pelo contrário, as meninas, via de regra, são restritas aos locais que podem frequentar e ao período de permanência na rua, além de já terem desde os primeiros anos de vida determinadas obrigações em relação ao espaço doméstico. (SARTORI, 2004; 178)

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O trabalho doméstico vem se atrelando a vida das meninas que se submetem e se condicionam a darem aos outros irmãos “a maternagem dentro desse processo sexuado de socialização, jogando paradoxalmente um jogo duplo na escolha de construção do seu gênero”. (SARTORI, 2004; 179).

Por outro lado, essas formas de cuidado com o lar são impostas ou colocadas, sob o aspecto de autovalorização pessoal que lhes dão atributos de “boas cuidadoras ou donas de casa”, e de meninas “cuidadosas”, fazendo com que a força da ideologia de gênero seja bem presente nas dinâmicas de trabalho da família.

Ao contrário do que aborda FRANÇA e SHIMANSKI (2009), em alguns lares, em Capoeiras está ocorrendo uma divisão das responsabilidades econômicas, como também verificamos uma significativa divisão das responsabilidades domésticas. Constatou-se durante nossa pesquisa que as mulheres que estão desempenhando trabalho remunerado estão ausentes de suas residências recebem o auxílio/ajuda não só do esposo que fica em casa, como também das suas mães, isso se as avós quiserem ficar com as crianças, pois segundo alguns entrevistados têm mães que não querem ficar com seus netos para suas filhas trabalharem. Em outro caso quando na residência tem uma filha mais velha, é esta quem fica responsável por cuidar da casa e dos irmãos mais novos.

Quando estou trabalhando meus filhos ficam com minha mãe e minha irmã. Eu dou uma ajuda pra ela dar uma olhada neles. Se não fosse assim eu teria como trabalhar, afinal são dois meninos para cuidar. (Rosângela Moura dos Santos – Entrevista realizada em 2015)

Quando não se encontra alguém da família para cuidar de sua casa e dos seus filhos elas pagam para um parente próximo ou para alguém próximo do ciclo de amizades para fazer suas tarefas domésticas, esse fato aponta para existência do trabalho doméstico remunerado dentro da comunidade, embora seja uma baixa remuneração na forma de agrado62. Nesse caso é muito raro que mulheres com filhos pequenos ou até mesmo casais saiam para ingressar no mercado de trabalho na cidade sem a solidariedade dos grupos de parentes, passando a se expressar com a movimentação de indivíduos isolados. “São mulheres que se articulam em redes de vizinhança e parentela para prover os cuidados aos filhos e realizar suas jornadas de trabalho”. (BRITES, 2014: 141)

Um dos principais problemas apontados pelas informantes que trabalham fora da comunidade é sua ausência do seu ambiente familiar, esse fator é mais presente na vida

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No sentido do que fala nossas interlocutoras é uma espécie de pequena ajuda que pode ser dada por uma pequena quantia em dinheiro ou até mesmo presentear com roupas, produtos de higiene pessoal e beleza.

150 daquelas que passam de uma semana a quinze dias sem vir em casa. Sentem-se muito tristes por deixar outras pessoas educarem seus filhos e sofrem com esse período de adaptação, principalmente as empregadas domésticas que se ausentam de casa durante a semana.

Meu filho foi criado com a avó da parte do pai. Eu comecei a trabalhar quando ele estava com um ano e meio. Quando eu saí para trabalhar eu deixei ele bem novinho. Eu acho que sofri mais que ele, eu chorava quase todo o dia e dizia que ia sair do trabalho e ficar com ele em casa. E dizia que o menino que era criado pelos avós ia ser criado cheio de gosto. Eles até faziam os gostos dele, mas quando eu chegava botava ordem nas coisas e dizia que não era assim. (Maria da Luz Barbosa – Entrevista realizada em 2014)

Elas mostram em suas falas que não é fácil, e que sentem muito culpadas por ficar afastadas do ambiente doméstico e do processo de “criar o filho”. As falas expressando sentimento de culpa e distância do ambiente familiar são acompanhadas por um discurso que incorpora a inserção no mercado de trabalho como um meio de sobrevivência para sua família, pois geralmente a renda que seus esposos ganham através da agricultura não supre todas as necessidades que suas casas demandam. Elas colocam que sentem muito por ficar distante dos filhos e ausente em algumas situações importantes na vida deles. Na comunidade teve casos de mães que saíram para trabalhar quando seus filhos completaram 3 (três) meses de nascidos no período de amamentação.

Na época de Rodrigo era uma vez por mês; delas passava dois domingos era uma, duas vezes por mês, depois passou pra de 08 em 08 dias. Eu ficava como louca, também a gente sofre, eu chorava muito, chorei muito por eles. Eu chorava como uma louca. (Genilda da Costa – Entrevista realizada em 2012)

Destacamos na fala de Genilda, as dificuldades enfrentadas por essas mulheres, principalmente por administrar a distância da família, dos filhos, na medida em que essa ausência não permite a vivência com eles diariamente sem poder acompanhar de perto as fases da vida dos filhos. Esse fator torna-se o principal agravante quando se fala na adesão ao trabalho fora da comunidade.

Nota-se também que há uma reconfiguração da divisão social do trabalho na família. Primeiramente, têm casais que trabalham em Natal morando com seus filhos na casa de seus patrões, na maioria das vezes as mulheres estão inseridas no trabalho doméstico e o homem trabalhando como jardineiro ou motorista. Há também casos em que as mulheres estão trabalhando fora e homens estão ocupando algumas atividades na comunidade ligadas a agricultura ou ao pequeno comércio. Têm casos de mulheres que trabalham na comunidade e os esposos trabalham em Natal na construção civil, jardineiro etc. Por outro lado, há homens

151 que trabalham no Centro industrial Avançado, em Macaíba com mulheres que trabalham em Natal ou na comunidade.

Enquanto eu trabalho fora e passo a semana lá. A menina fica em casa cuidando das coisas e o menino fica no arisco. Meu esposo ele fica trabalhando em Macaíba. (Claudete Adalgísio da Costa – Entrevista realizada em 2014)

A fala de Claudete que atua como empregada doméstica em Natal enfatiza um pouco dessa organização e divisão sexual do trabalho na família, como também dar destaque o papel das meninas com o cuidado com a casa e as tarefas domésticas, com os estudos e os filhos na maioria das vezes no arisco desenvolvendo algumas atividades agrícolas.

Os finais de semanas, geralmente o período das folgas, são usados na maioria dos casos por muitas mulheres que passam a semana fora e não têm filhas para realizar as tarefas domésticas para se dedicam ao trabalho doméstico nas suas residências. Muitas acabam não tendo tempo nem para cuidar de si, vivem em função do trabalho e da família não conseguem estudar, atualizarem-se e às vezes não têm muito tempo de levar seus filhos para passear ou fazer algo do gênero. São raras as mulheres que conseguem trabalhar e estudar. Assim, de acordo com Rodrigues (1991), seu desgaste físico acabou aumentando devido a essa jornada dupla de trabalho.

Notamos com todas essas mudanças que vem sendo apresentados no decorrer desse tópico é que o trabalho feminino vem sendo reconhecido como uma atividade geradora de renda e é na maioria das vezes a principal fonte que as famílias têm para sobreviver e ele justifica todas as mudanças que ocorrem no interior das famílias para adesão ao mundo do trabalho.

Observamos aqui o contrário do que Heredia (1979) aborda em seu estudo realizado na Zona da Mata de Pernambuco, onde os moradores tratam as atividades de trabalho femininas como ajuda. Em Capoeiras essa noção de trabalho ganha uma dinâmica totalmente diferente do que se encontra no trabalho dessa antropóloga, aqui as mulheres têm participação importante na divisão do trabalho e como qualquer outro membro da unidade familiar como bem falou Maria das Graças Barbosa, “É unir o dinheiro de um com o outro e quando é no

final do mês começar a pagar as contas, aqui o dinheiro do homem e da mulher é importante”.

Portanto, adotamos a concepção de Durham (1984) no intuito de perceber que há uma reorganização da família para permitir o ingresso da mulher no mundo do trabalho. Destaca- se que no contexto dessas transformações a família não perde a característica de ser importante para o bem-estar e segurança no que diz respeito à economia de seu grupo, ponto

152 de referência e o núcleo de onde se reconstitui e se reelaboram os padrões de comportamento e das representações coletivas.