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CAPÍTULO III – ASPECTOS PROCEDIMENTAIS RELEVANTES E

2. Transação Penal, um direito público subjetivo do autuado?

Essa talvez seja a controvérsia de maior relevância no âmbito fático da aplicação do instituto, pois daí irradia os questionamentos acerca: a) da faculdade ou obrigatoriedade do órgão do Ministério Público em formular, quando cabível, a proposta de transação pena; b) se é possível o magistrado oferecê-la ao autor do fato ante a recusa imotivada do membro MP em fazê-lo; c) e, mais ainda, se poderia o próprio autor do fato, ou seu advogado, propor a aplicação imediata da pena restritiva de direitos ou multa.

As discussões iniciaram em torno da interpretação literal da Lei 9.099/95, haja vista que o caput do art. 76 estabelece que, não sendo o caso de arquivamento e estando presentes os requisitos legais exigíveis, poderá o Ministério Público propor a Transação Penal, o que, de início, levaria à conclusão que a formulação da proposta seria um ato discricionário do membro do Parquet.

Uma primeira corrente doutrinária defende a tese da discricionariedade conferida exclusivamente ao órgão do Ministério Público, que poderá ou não formular a proposta ainda que presentes os requisitos legais. Ainda assim, por tratar- se de poder discricionário (e não arbitrário), poderá o Judiciário exercer o controle de legalidade do ato, mas de modo algum usurpá-lo. É esse o pensamento esboçado por Mirabete no trecho a seguir19:

Trata-se, aqui, do eventual exercício da pretensão punitiva, cabendo exclusivamente ao Promotor de Justiça a titularidade do jus

persequendi in judicio, nos expressos termos do art. 129, I, da

Constituição Federal. A discricionariedade é a atribuição ao agente público de uma margem de escolha, configurada por uma pluralidade de soluções, todas válidas por estarem adequadas ao ordenamento jurídico. Assim, o Poder Judiciário só pode verificar a presença de condições legais que permitem a opção por parte do Ministério Público, mas não fiscalizar a oportunidade, o mérito da opção formulada pelo titular. [...] O princípio da discricionariedade limitada, portanto, permite ao Ministério Público, e só a ele, optar pela apresentação da proposta ou oferecer a denúncia desde logo, segundo a conveniência e necessidade de repressão ao crime com maior ou menor intensidade, diante da política criminal que estabelecer.

Como se vê, mesmo no entendimento acima, estaríamos tratando de uma faculdade limitada ao membro do Ministério Público, que deveria motivar a não apresentação da proposta, pois, do contrário, implicaria conferir ao Parquet a total disposição da ação penal e, como já visto, a Lei 9.099/95 não introduziu em nosso sistema processual penal o princípio da oportunidade pura, mas sim a obrigatoriedade mitigada.

Destarte, em observância ao princípio da discricionariedade ou da oportunidade regrada, a doutrina amplamente majoritária entende que a proposta de Transação Penal consiste, verdadeiramente, em um poder-dever do Ministério Público, onde o seu órgão, diante de uma ação penal pública incondicionada ou condicionada tendo ocorrido a representação, se estiverem presentes os pressupostos e requisitos legais, deverá apresentá-la.

Pois bem, mas como deve proceder então o magistrado diante da recusa injustificada do Promotor de Justiça ou Procurador da República em formular a proposta em tese cabível? Existem três posicionamentos a esse respeito.

A primeira orientação é manifestada por aqueles que defendem a discricionariedade da atuação do ministerial, segundo os quais a recusa injustificada do membro do Ministério Público em formular a proposta de transação quando for cabível caracteriza omissão de dever funcional, devendo o juiz comunicar o fato ao respectivo procurador-geral para os fins de direito ou ao mesmo remeter os autos para que perfaça a promoção que julgar cabível. Ressalte-se que este procedimento

não se confunde com a aplicação analógica do art. 28 do CPP, que configura 2ª hipótese.

A segunda corrente, diametralmente oposta, é seguida, prioritariamente, por aqueles que reconhecem a Transação Penal como direito público subjetivo do autuado quando presentes os requisitos legais, razão pela qual permitem que o juiz supra o ato do Parquet. É como demonstra Tourinho Filho20:

Não havendo apresentação da proposta, por mera obstinação do Ministério Público, parece-nos, poderá fazê-la o próprio Magistrado, porquanto o autor do fato tem um direito subjetivo de natureza processual no sentido de que se formule a proposta, cabendo ao Juiz o dever de atendê-lo, por ser indeclinável o exercício da atividade jurisdicional.

Esse posicionamento, também acolhido por Damásio E. de Jesus, foi alvo de severas críticas por parte da doutrina que considera que tal solução implicaria em movimentação ex officio da jurisdição, usurpando o exercício do direito de ação do órgão constitucionalmente legitimado para exercê-lo, ao tempo em que violentaria o sistema acusatório, o princípio da aplicação consensual da pena e própria neutralidade e imparcialidade do juiz.

A última corrente, que parece vir prevalecendo na doutrina, é aquela que defende a aplicação analógica do art. 28 do CPP, conforme diz o Professor João Francisco de Assis21:

O que predomina, entretanto, é o entendimento de que, havendo divergência entre o órgão acusatório e o juiz no que concerne à proposta de transação penal, deve ser aplicado o art. 28 do CPP analogicamente. Assim, considerando improcedentes as razões invocadas pelo representante do Ministério Público para deixar de propor a transação, o juiz deverá fazer a remessa dos autos circunstanciados ao Procurador Geral de Justiça (ou à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em âmbito

20 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3ª

Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 99.

federal), que poderá oferecer a proposta, designar outro Promotor para oferecê-la, ou insistir em não formulá-la.

Esse é o entendimento corroborado por Ada Pelegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes (in GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Juizados Especiais Criminais. 4ªed.rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,2002, p. 145.).

Apesar de atualmente majoritária, mas longe de ser unânime, essa posição também sofre críticas consistentes de doutrinadores de peso, como Tourinho Filho22,

que assevera:

Sustenta-se que, sendo o Ministério Público o titular da ação penal, a proposta deva partir dele. Não o fazendo, outro recurso não teria o Juiz senão aplicar a regra do art. 28 do CPP, por analogia. Ousamos discordar desse posicionamento. E as razões do nosso ousio – conforme tivemos oportunidade de salientar em palestra proferida em Vitória do Espírito Santo, em 19 de maio de 2000 – repousam na circunstância de que a recusa injustificada do Ministério Público em formular a proposta não representa situação análoga àquela prevista no art. 28 do CPP. Ademais, o Processo Penal, no nosso ordenamento, não é eminentemente acusatório. A pedra de toque do processo acusatório está na separação das funções do Acusador e do Julgador. Do contrário, o Juiz não poderia determinar, ex officio, a produção de provas (vejam-se, a propósito, no CPP, dentre outros, os arts. 156, 176, 209, 234, 241, 276, 407, 425). O que deveria ser tarefa própria das partes foi permitido também ao juiz. Se o Processo fosse eminentemente acusatório, o Juiz não poderia conceder

habeas corpus de ofício (visto tratar-se de ação popular), não poderia

decretar a prisão preventiva sem provocação da parte acusadora (por tratar-se ação penal cautelar), não poderia requisitar instauração de inquérito e tampouco ser destinatário de representação, não poderia, de ofício, decretar o seqüestro de bens do indiciado ou réu (arts. 126 e 132 do CPP), não poderia proceder, de ofício, à verificação de falsidade documental (art. 147 do CPP) etc.

São tais ponderações, suscitadas pelo emérito doutrinador, que nos fazem crer na possibilidade de oferecimento da proposta de Transação Penal pelo magistrado, afinal, à nossa visão, o juiz, ao conceder um habeas corpus de ofício ou decretar a prisão preventiva sem provocação, em pleno acordo com o ordenamento, não está nada mais, nada menos, do que exercendo medida jurisdicional, que, diga- se de passagem, não foi pedida por parte alguma.

Assim, cumpridos os requisitos legais, entendemos ser a proposta um direito público subjetivo do autor do fato, podendo este exigi-lo judicialmente, e não ficar submetido ao risco da impossibilidade de obter o benefício por ato do chefe do Ministério Público, que, além do mais, deveria ser tão vinculado quanto o ato do órgão de 1º grau. E mais, como se poderia proceder no caso de ação penal privada em que o querelante se nega a formular a proposta, mesmo quando plenamente cabível? Ficaria o autor do fato à disposição do bel-prazer do querelante? Tal fato nos parece inconcebível. Aí está outra razão que nos parece plenamente possível a formulação da proposta pelo magistrado.

Todavia, a jurisprudência do E. Superior Tribunal Justiça desautoriza absolutamente a formulação da proposta pelo magistrado, ex offício ou a requerimento do autuado, como demonstra o julgamento do Recurso Especial a seguir:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. TRANSAÇÃO PENAL. INICIATIVA DA PROPOSTA.

O juiz, não é parte e, portanto, inadmissível, em princípio, ex vi art. 76 da Lei nº 9.099/95 c/c os arts. 129, inciso I, da Carta Magna e 25, inciso III, da LONMP, que venha a oferecer transação penal ex officio ou a requerimento da defesa.

Recurso provido.

(REsp 812.989/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2006, DJ 23/10/2006 p. 353)

Por outro lado, para tal situação, a mesma Corte parece adotar o segundo posicionamento aqui exposto, ou seja, a aplicação analógica do art. 28 do CPP, senão vejamos:

RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSUAL PENAL. LEI 9.099/95, ART. 76. TRANSAÇÃO PENAL. PROPOSTA EX OFFICIO. IMPOSSIBILIDADE. TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 28 DO CPP.

Não cabe ao Juiz, que não é titular da ação penal, substituir-se ao Parquet para formular proposta de transação penal.

A eventual divergência sobre o não oferecimento da proposta resolve-se à luz do mecanismo estabelecido no art. 28 c/c o art. 3º do CPP.

Precedentes do STF e desta Corte. Recurso conhecido, mas desprovido.

(RHC 16.029/SP, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2004, DJ 06/09/2004 p. 271)

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