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A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

TRANSFERÊNCIA, CONTRATRANSFERÊNCIA E RESSONÂNCIA

3.4 A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Sabemos que um dos principais núcleos da profissão de educador infantil é o núcleo afetivo e relacional, ligado ao envolvimento emocional que esta atividade demanda, porque a criança aprende a construir a complexidade do próprio mundo afetivo, social e cognitivo a partir da integração e da continuidade das primeiras experiências cotidianas e concretas de relação interpessoal, e porque a dimensão relacional é, de acordo com as recentes pesquisas do desenvolvimento da criança, a base deste desenvolvimento, o que implica em que não pode ser ignorada ou negada por quem profissionalmente tem como tarefa “fazer crescer” crianças pequenas.

No dizer de Georges Gusdorf (1995, p.75), o educador infantil é o herdeiro das figuras parentais, substituindo-as na função principal de testemunhar as descobertas de um mundo que se descortina para essa criança. Afirma que sobre esse educador repousam esperanças, algumas dessas esperanças já traídas, e que desfruta de uma autoridade espiritual que nenhum outro educador que lhe sucederá no cumprimento da função educativa junto da criança maior e do adolescente irá possuir. “Por isso, ao longo de toda a vida, o homem conservará fielmente a lembrança de seus primeiros professores”.

Uma pesquisa recente (ONGARI; MOLINA, 2003) realizada com educadoras de creche na Itália, traz colaborações importantes para este estudo. No tocante às expectativas

diante da profissão de educadoras de creches, as autoras observaram que o trabalho de educar crianças pequenas permite que o adulto expresse as partes mais íntimas da própria personalidade o que constitui, ao mesmo tempo, o lado gratificante mas, também, o lado opressor do trabalho, pois este lado coloca, inevitavelmente, em jogo as dimensões emocionais profundas do indivíduo, além de colocar o físico à prova. Exige que o educador se apresente à criança como uma pessoa “estruturante”, capaz de ajudá-la a enfrentar as emoções muito intensas e primitivas que caracterizam as primeiras fases da vida afetiva, e que esta exigência mobiliza muitas energias físicas e mentais.

O sistema de Educação Infantil no Brasil se assemelha ao sistema italiano, no que diz respeito à concepção legal de educação para crianças de 0 a 6 anos, dividido em creches (0-3anos) e pré-escolas (4-6 anos). A diferença está na forma de atuar da educadora infantil italiana: esta educadora não dá aula e nem alfabetiza; é uma professora de crianças e não uma professora de uma disciplina. Uma mudança que, lá, vem se dando desde os anos de 1970, onde o aspecto assistencial, com ênfase nos cuidados físicos − educadora sanitária − abre espaço para os aspectos afetivos e educacionais.

Esta pesquisa inclui, também, um aspecto extremamente importante e geralmente negligenciado: o relacionamento entre a própria maternidade (atual ou imaginada) e a função de educadora infantil como um dos fatores implícitos de mobilização emocional profunda, gerador de ansiedade e tensão psicológico-emocional.

Outro aspecto observado pelas autoras é o que se refere ao cansaço físico, pois a relação educadora-criança é uma relação baseada na relação corporal:

O cansaço físico é percebido como importante: este é um resultado muito óbvio, se considerarmos que o trabalho com crianças pequenas implica um modo de relação centrado na corporeidade, que pode se tornar pesado do ponto de vista físico: além de raramente ficar parada, a educadora também carrega as crianças no colo, levanta-as... e ainda permanece sentada ao lado das crianças, freqüentemente, no chão. (ONGARI; MOLINA, 2003,

p.79)

Neste sentido, a Psicomotricidade Relacional, no espaço educacional infantil, busca ampliar a capacidade relacional através do jogo entre os educadores e as crianças, favorecendo a organização das experiências corporais. Nessa dinâmica de expressão livre e ação espontânea da criança, a relação corporal favorece que a transferência se dê de forma muito intensa e muito rápida porque estamos lidando com uma sensibilidade muito arcaica, primária e não-verbal ligada tonicamente às imagos maternas e paternas. Espera-se, dentro do

jogo espontâneo e fantasmático, que a criança encontre no psicomotricista relacional ou educador um parceiro simbólico para onde possa dirigir suas fantasias, suas emoções, suas projeções, seus conflitos e seus desejos, configurando uma relação transferencial positiva e/ou negativa, de amor e ódio, ao mesmo tempo que garante um ponto de segurança para a expressão dos conflitos e dos afetos, dando-lhes a contenção necessária.

Por se constituir numa relação corporal, com o uso mínimo da linguagem verbal, a contratransferência também se dá nesta direção, uma vez que o psicomotricista coloca seu corpo “à disposição” da criança, como uma intervenção que responde e/ou provoca o que pode vir carregado de sentimentos, emoções e projeções do psicomotricista ou educador sobre a corporeidade da criança, onde pode tentar acelerar o ritmo da evolução da criança ou mantê- la em estado de dependência do adulto. Mauro Vecchiato (1989, p.12-13), psicomotricista relacional, ao relatar o estudo de caso de um menino de 12 anos, portador de Síndrome de Down, analisa a contratransferência dentro do jogo relacional da seguinte maneira:

Pode manter a criança na dependência emocional através do seu comportamento de contradependência (tem necessidade de que a criança tenha necessidade dele)... prolongar o período agressivo porque se identifica inconscientemente com a criança e vive a agressão dirigida contra seu próprio pai ou sua própria mãe. Pode, também, inversamente, refutar a agressividade porque não pode assumi-la em relação a si próprio, etc. prolonga exageradamente a etapa fusional, porque nela encontra inconscientemente seu próprio prazer e sua própria gratificação.

A relação educador infantil-educando, como qualquer outra, exige a corporeidade como recurso de relação. Corpos inconscientes expressam atos inconscientes, o que necessita de ser superado para um ato educativo satisfatório.

Será que nossos educadores infantis têm prestado atenção à presença da fenomenologia transferencial em suas atividades educativas? Será que eles foram ou têm sido preparados para isso?

A observação do dia-a-dia autoriza-me a dizer que, no geral, nossos educadores infantis não têm consciência dessa trama das relações, e nem foram preparados para administrá-las. E assim, ocorrem recusas inconscientes de atendimento a demandas das crianças; ou ocorrem exclusões indevidas, ou ocorrem aprisionamentos em estados de dependência de algum processo afetivo.

A aprendizagem da consciência corporal é recurso fundamental para o educador infantil, na medida em que a criança, mais do que em qualquer outra etapa de vida, é centrada na sua experiência corporal. Ela sente no corpo o que se dá em sua vida e, através dele,

expressa o que sente, o que necessita, o que é agradável, o que é confortável, o que é desconfortável.

Transferência e contratransferência dão-se num corpo cuja consciência e posse de si são precárias. Ressonância dá-se num corpo que tem consciência e domínio de si. Educadores infantis necessitam de ser ressonantes em sua relação educativa. Para isso, necessitam de conhecer-se em sua corporeidade.

Nosso próximo capítulo abordará as possibilidades dos olhares dos diversos autores para a constituição de um sujeito consciente de si mesmo, através do seu corpo.

4 HIPÓTESES DE ENCAMINHAMENTO DA INTEGRAÇÃO CORPO E