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B) TRATAMENTO ESPECÍFICO

B.1) TRANSFUSÃO SANGUÍNEA

As células da linha vermelha, os eritrócitos, são as células responsáveis pelo transporte de oxigénio para todas as células do organismo e pelo correto funcionamento do mesmo. Uma vez que são bastante flexíveis, conseguem rapidamente um aporte de oxigénio a todo o organismo (Hamasaki e Yamamoto, 2000). Assim, e de acordo com o relatado em

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intoxicações por RA, é do conhecimento da comunidade científica que a hemorragia é a causa mais comum de morte em humanos após trauma. Sabe-se, também, que hemorragias traumáticas e atraumáticas causam tanto morbilidade como mortalidade em cães, uma vez que muitos animais entram em choque hemorrágico, pelo que será necessário explorar este assunto neste trabalho (Pachtinger, Otto e Syring, 2008; Lynch et al., 2016). A primeira transfusão entre cães foi realizada em 1665 por Richard Lower, e a frequência com que as transfusões sanguíneas são realizadas em medicina veterinária aumentou em muito na última década (Kisielewicz e Self, 2014; Odunayo et al., 2017).

No entanto, as transfusões sanguíneas estão associadas a reações transfusionais, pelo que é importante saber como diminuir estes efeitos (Odunayo et al., 2017). Isto leva-nos a explorar a temática dos grupos sanguíneos em cães. Estes são denominados de acordo com os antigénios específicos da espécie que estão presentes na superfície dos eritrócitos, razão pela qual ocorrem reações imuno-mediadas quando se realizam transfusões sanguíneas entre animais de grupos distintos. Estes grupos são, regra geral, denominados de acordo com a sigla DEA, que em inglês significa “dog erythrocyte antigen”, embora esta nomenclatura não seja a adotada em todo o mundo. Estão descritos 13 grupos sanguíneos em cães, e há sete antigénios reconhecidos nas células da linha vermelha dos cães, que estão, assim, categorizados no sistema DEA como 1.1; 1.2; 1.3; 3; 4; 5 e 7. O DEA 1.1 e o DEA 1.2 são os mais comuns na população canina, e as reações transfusionais são mais comuns com o DEA 7, embora esteja descrito que também ocorram contra os DEA 3 e 5. É possível evitar estas reações se forem realizados testes de tipificação e de prova cruzada, o mesmo que o termo inglês crossmatching. Estas provas cruzadas dividem-se em provas menores e maiores, sendo que esta última é a mais frequente e se utiliza soro ou plasma do recetor para avaliar se há compatibilidade entre os anticorpos do mesmo e as células da linha vermelha do dador. No caso das provas cruzadas menores, estas têm os mesmos pressupostos das provas maiores, mas avaliam a presença ou ausência de anticorpos detetáveis no plasma do dador contra as células da linha vermelha do recetor. No caso de gatos e animais que já tenham recebido transfusões sanguíneas deverão realizar-se provas cruzadas maiores, uma vez que estes apresentam maior risco de desenvolver reações transfusionais (Kumar, 2017; Odunayo et al., 2017). Quando necessária uma transfusão sanguínea, o teste de tipificação deverá ser realizado antes da mesma, se o quadro clínico do animal assim o permitir, podendo recorrer-se a testes comerciais como aquele da figura 13 (Kohn, Weingart e Giger, 2003).

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Figura 13 - Exemplo de um teste de tipificação comercializado em Portugal.

As reações secundárias após transfusões poderão ser agudas ou retardadas, envolvendo hemólise intravascular, CID, hipotensão, choque, insuficiência renal aguda, morte ou, em algumas situações, hemólise retardada, que consiste numa diminuição do microhematócrito entre dois a catorze dias (Kumar, 2017). Num estudo realizado por Langston et al. (2017), apenas um dos animais, um gato, apresentou sinais clínicos compatíveis com uma reação transfusional. Neste caso, o animal apresentou prurido facial, associado ao tempo de realização da transfusão ter sido inferior a quinze minutos.

Numa situação de hemorragia ativa, como é o caso de uma intoxicação por rodenticidas, o animal poderá apresentar-se com hipovolémia, entrando em colapso circulatório e em falência orgânica (Lynch et al., 2016). Nestas situações, a transfusão de sangue deverá ser realizada para restabelecimento dos níveis de fatores de coagulação. uma vez que, mesmo administrando imediatamente a vitamina K1, o intervalo até que esta vitamina K possa ser eficaz no processo de ativação de fatores de coagulação em quantidades fisiológicas pode ainda demorar entre seis a doze horas (Bates, 2016). Segundo o Manual de Hemoterapia do Banco de Sangue Animal, o plasma congelado deverá ser a opção primordial numa intoxicação por warfarina (Banco de Sangue Animal, 2015).

O volume total da transfusão deverá ser administrado tendo em conta a percentagem do hematócrito do animal, o hematócrito do dador e a natureza do fluído transfundido, tendo em conta as características da tabela 3 (Bates, 2016). Segundo o Banco de Sangue Animal, as seguintes fórmulas deverão ser respeitadas:

Figura 14 - Equação que nos indica qual o volume que deverá ser infundido num animal quando utilizando sangue inteiro (Manual de Hemoterapia, Banco de Sangue Animal)

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Figura 15 - Equação que nos indica qual o volume que deverá ser infundido num animal quando utilizando plasma (Manual de Hemoterapia, Banco de Sangue Animal)

A natureza de um fluído utilizado para transfusão dependerá sempre do estado em que se encontra o animal e de qual o objetivo final para o fluído transfundido. Há várias hipóteses disponíveis:

- O sangue inteiro poderá ser necessário para um animal que apresente hemorragia ativa e anemia, de forma a restaurar não só o volume como a percentagem de eritrócitos (Bao et al., 2017);

- O concentrado de eritrócitos também poderá ser utilizado em animais que tenham anemia, podendo ser uma boa hipótese em animais que não necessitem, ou não suportem, um volume sanguíneo de tão grandes dimensões. Uma das vantagens da sua utilização é conter um volume menor e, consequentemente, não causar um excesso de fluídos (do inglês “overloading”) ou alergia aos compostos presentes no soro (Banco de Sangue Animal, 2015; Bao et al., 2017);

- O plasma fresco ou congelado poderá ser uma opção se o animal apresentar hemorragia ativa, mas não apresentar anemia, sendo aconselhado para situações em que há défices de coagulação (Higgs et al., 2015; Bao et al., 2017; Kumar, 2017). Nestas situações, a administração de plasma fresco é uma hipótese plausível, uma vez que o fluído possui os fatores de coagulação dependentes da vitamina K (II, VII, IX e X). Possui também fatores de coagulação lábeis (V e VIII), fator de von Willebrand, fibrinogénio e albumina. No entanto, não contém eritrócitos nem plaquetas, daí não ser indicado para animais com anemia. Como já foi referido, os fatores dependentes da vitamina K estão viáveis em todos os plasmas, tanto frescos como congelados, mas deverão ser sempre usados juntamente com a vitamina K1, uma vez que o fator VII tem uma semi-vida curta (cerca de sete horas) e o fator IX um grande volume de distribuição, pelo que a depleção de ambos ocorrerá enquanto os rodenticidas ainda estão em circulação (Dzik, 2012; Byers, 2017).

Vários autores suportam a hipótese de que a auto-transfusão com fluído retirado do animal por toracocentese ou abdominocentese poderá ser utilizado numa situação de urgência, com a salvaguarda de que este tipo de fluídos não substitui os fatores de coagulação necessários e, portanto, a vitamina K1 deverá ser, também, instituída na terapia. No caso de hemorragias cavitárias, o sangue poderá ser recolhido e utilizado segundo os moldes de uma transfusão de sangue autólogo. Tem como vantagens promover um alívio na pressão exercida pelo volume em excesso da cavidade em questão, ter uma disponibilidade imediata, não

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havendo risco de incompatibilidade sanguínea, evitando reações transfusionais. Tem, também, um diminuído custo, bem como a segurança de não haver transmissão de agentes infeciosos (Higgs et al., 2015; Bates, 2016; Kumar, 2017).

Segundo Kumar et al. (2017), a transfusão de sangue deverá processar-se da seguinte forma: o sangue deverá estar, no mínimo, a uma temperatura de 37ºC. Este valor deverá ser respeitado, uma vez que valores inferiores poderão causar hipotermia, e valores muito superiores à temperatura corporal do animal poderão inativar os fatores de coagulação, lise de eritrócitos ou crescimento de microrganismos. Quando utilizando produtos não congelados, poderá não ser necessário o aquecimento ativo dos mesmos, uma vez que o comprimento dos sistemas de soro próprios para administração de produtos sanguíneos ajuda a que estes aqueçam até atingirem a temperatura ambiente. É recomendada a utilização de solução salina a 0,9% quando efetuada uma transfusão. As vias de administração possíveis são a intravenosa, a intraóssea e a intraperitoneal, por ordem decrescente de eficácia. Se estivermos a fazer uma transfusão de concentrado eritrócitos podermos utilizar uma taxa de 10 a 15 ml/kg/hora, sendo que animais hipovolémicos ou transfusões de sangue total poderão requerer taxas até 20 ml/kg/hora, devendo sempre adequar-se a taxa de administração ao estado cardiovascular e ao estado de hidratação do animal. O risco de administração de produtos sanguíneos demasiado rápido comporta sinais como hipersiália, vómito ou fasciação muscular. É expectável que o microhematócrito do animal aumente 10% se microhematócrito do dador for de 40% (Kisielewicz e Self, 2014; Kumar, 2017). A título prático, é importante ressalvar que poderão ocorrer situações de hipocalcemia, tanto em animais como em pessoas, que tenham recebido grandes quantidades de sangue armazenado em citrato (Lynch et al., 2016).

No caso de se recorrer a animais como dadores de sangue, estes deverão corresponder aos seguintes critérios: serem jovens adultos, saudáveis, com peso superior a 25 kg – quando fazendo referência a cães, com resultados negativos quando efetuados controlos de doenças infeciosas e nunca devem ter recebido transfusões sanguíneas. Destes animais poderão ser retirados quinze mililitros de sangue por cada quilograma de peso vivo (15 ml/kg) a cada seis semanas. Os cães que realizem teste de tipificação e sejam negativos para DEA 1.1 poderão ser dadores universais para animais que não tenham recebido nenhuma transfusão sanguínea anteriormente, uma vez que, regra geral, os cães recetores não têm aloanticorpos para DEA 1.1. Para serem considerados verdadeiramente dadores universais, então deverão pertencer ao grupo sanguíneo DEA 4 (Kisielewicz e Self, 2014; Kumar, 2017).

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Tabela 3 - Elementos sanguíneos utilizados mais frequentes e a sua constituição (adaptado de Banco de Sangue Animal, 2015 e Yagi, 2016)

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