• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: “É UMA COISA QUE NASCE DE DENTRO DE VOCÊ, DA RAIZ”:

3.3. Transição capilar

No dia 13 de setembro de 2017 às 14h cheguei na COEQTO para entrevistar as interlocutoras Jacqueline, Maria Aparecida e Noelma. O lugar já não me intimidava e a minha relação com as acadêmicas já havia se estreitado, falamos sobre as nossas famílias e o que tinha acontecido no intervalo da primeira para a segunda entrevista, foi nesse momento que a Noelma disse que estava grávida. Fiz a entrevista com a Jacqueline e Maria Aparecida, pois a Noelma precisou ir ao médico devido aos enjoos da gravidez. Ao final da entrevista fomos em uma sorveteria lá, com o gravador desligado, as conversas descontraídas, e muitas risadas, pude notar que o cabelo alisado representou uma fase da vidas das acadêmicas e que o processo de transição capilar foi marcado por importantes percepções do que é ser negro. (Diário de campo 13/09/2017).

O que mais chamou a minha atenção foi notar que o processo de alisamento capilar havia ficado no passado para sete das oito interlocutoras, com exceção da Amária, que tem o cabelo liso, e que as formas de manipulação que ela utiliza são as colorações e cortes.

A transição capilar representa uma linha transitiva entre uma estética negada associada ao imaginário de um ideal supremo de beleza e a construção de novos paradigmas estéticos mais próximos das cultura e identificação afro. O que foi exposto por meio das narrativas das acadêmicas, apresentadas na seção anterior, corrobora com a ideia de embranquecimento, reforçamos que tais atitudes são concretizadas com o intuito de se obter aceitação social por parte daqueles que se encontram em condições e postos de destaque. A transição capilar, mais que expressão corporal e fenotípica, está engendrada em uma construção simbólica e imaginativa destituída de estereótipos e da categorização de superior/inferior, ou seja, alinha-se à conscientização interna que tem efeitos sobre local (família) e social (escola, universidade e outras instituições) do ser negra.

Quando indagada sobre como foi a transição capilar, Tauana assim responde: “foi muito difícil, no começo, a gente sente a diferença, o cabelo fica mais alto. As pessoas te criticam, até parente, mas depois a gente vai se libertando. Vai vendo que não é só um tipo de beleza que é bonito, que é bonito cabelo cacheado, crespo.” A esse respeito “surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Segundo Gomes (2002, p. 42),

[...] foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que, naquele contexto, serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais.

É pertinente ressaltarmos que quando Tauana afirma que as pessoas a criticavam, fica evidente essa ideia de beleza e fealdade, reproduzido por parentes e outras pessoas, que reflete a imagem consolidada de um padrão de beleza unívoco. A partir da percepção da interlocutora de que o cabelo cacheado é bonito, imprime a quebra da ideia de superioridade e inferioridade, mas também valores, crenças, hábitos e preconceitos raciais, de gênero, de classe.

Assim, o cabelo por muito tem sido uma dos principais símbolos utilizados para o controle da mulher negra, “pois desde a escravidão tem sido usado como um dos elementos definidores do lugar do sujeito dentro do sistema de classificação racial brasileiro” (GOMES, 2002, p. 43). Como forma de contrapor esta forma de regulação, Fanon (2008) sugere que “enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais” (p. 95). Assim, Fanon propõe que a conscientização do que é ser negro seja um forma de se evitar o embranquecimento, ou seja, tomar consciência de como existir a partir de sua singularidade.

Em outras palavras, o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em meus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná- lo capaz de escolher a ação (ou passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito [...]. (FANON, 2008, p. 95-96).

Sendo assim, a partir da afirmação acima, compreendemos que quando a acadêmica Tauna diz “as pessoas te criticam, até parente, mas depois a gente vai se libertando”, fica clara a escolha de se assumir, a partir do cabelo, como mulher negra, não se trata de uma ação despretensiosa, mas de uma escolha que representa a ausência do branqueamento ou desaparecimento que permite a desconstrução das representações sedimentadas pela sociedade.

Essa ressignificação do ser negro apresentado pela narrativa da acadêmica Tauana nos leva a pensarmos na barreiras que são postas pelos padrões estéticos que são estabelecidos socialmente. Observem que a fala da acadêmica nos lança a dois tipos de dificuldades enfrentadas por ela no processo de transição capilar: a primeira é de cunho

interno, com a ressignificação do que é ser mulher negra e de aceitação, ao afirmar que “foi difícil”, que sentiu a diferença e que o cabelo ficou com um aspecto diferente. A segunda, de cunho externo, refere-se à forma como os outros viam o processo, o que fica posto quando ela afirma que membros da família e outras pessoas a criticaram.

Embora existissem as barreiras internas e externas, o processo de mudança capilar continuou e, para ela, foi um processo de libertação. Esse processo chamado pela interlocutora de “libertador”, “torna-se uma convocação a herdeiros dessa condição para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações desconstruídas e de suas culturas negadas” (MUNANGA, 1986, p. 20). Tal atitude percebida a partir da conscientização, valorização das características físicas, remete à aceitação da identidade, da negritude (MUNANGA, 1986).

A globalização pode ter um efeito incisivo sobre essas “dificuldades” enfrentadas pela interlocutora, uma vez que universaliza os parâmetros de beleza ignorando as individualidades e singularidades dos povos. “A negritude fornece nesses tempos de globalização, um dos melhores antídotos contra as duas maneiras de se perder: por processo de segregação cercada pelo particular e por diluição no universal” (CÉSAIRE, 1987, p. 5-33 apud MUNANGA, 1986, p. 22). O autor aponta para a forma como o meio social pode segregar aqueles que assumem a sua negritude pautada e ainda como os efeitos da globalização lançam padrões a serem seguidos de forma que as singularidades acabam por deixarem de existir.

Quando Tauana afirma que por meio do processo de transição capilar foi capaz de perceber que não existe só um tipo de beleza e que o cabelo cacheado e crespo também é bonito, completa dizendo: “eu já queria antes só que muita gente me criticava, até a minha irmã mesmo me criticava que ele estava alto, agora ela é cacheada também”. Vale destacar que a irmã que, antes foi a “inspiração” para que Tauana alisasse os cabelos, agora foi influenciada por ela para usá-lo cacheado.

No período da transição capilar a acadêmica Mayra ouvia comentários negativos:

[...]como assim eu estou acabando com meu cabelo? Ele foi assim toda vida. Diziam: ‘teu cabelo era bonito’, ai eu falava: ‘eu alisava meu cabelo, por isso que ele era grande e liso, mas meu cabelo não é desse jeito eu estou é arrumando ele. Cheguei a usá-lo bem comprido, em seguida cortei algumas vezes e agora eu deixei ele cachear. Como o povo não é acostumado, eles não acham esse negócio de ter cabelo cacheado ao léu bonito, para eles o bonito é liso, é branco.

como uma ação descolonial (MIGNOLO, 2008) uma vez que exige a tentativa de desconstruir a ideia de universalização das estruturas, ações e estética, com o intuito de afirmar-se identitariamente. “Uma das realizações da razão imperial foi a de afirma-se como identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero) e de expeli-los para fora de esfera normativa do ‘real’” (MIGNOLO, 2008, p. 291).

A acadêmica Maria Aparecida relata que para voltar a utilizar os cabelos cacheados, precisou integrar-se à COEQTO, o que oportunizou a compreensão do cabelo com um símbolo da sua identidade.

Eu comecei a deixar de relaxar o meu cabelo quando eu conheci o Paulo, ele vivia a falar: ‘ei Cida deixa esse cabelo cacheado’. Em seguida eu comecei a me integrar com as ações da COEQTO, participar de eventos e estar mais próxima das comunidades quilombolas. Foi ai que comecei a minha transição, vi que é a minha identidade.

Para Maria Aparecida, o contato com outra instituição social possibilitou a percepção e construção de um novo conceito de beleza, para além disso ela foi capaz de estabelecer uma relação do cabelo cacheado com a identidade negra, sendo assim, percebemos “que as oportunidades de comparação, a presença de outros padrões estéticos, estilos de vida e práticas culturais ganham destaque no cotidiano da criança e do/a adolescente negros, muitas vezes de maneira contrária àquela aprendida na família” (GOMES, 2002, p. 46).

Isso reitera a importância dos espaços formativos na construção da identidade negra, a COEQTO é um espaço de representação e luta das comunidades quilombolas do Estado do Tocantins, tanto no que diz respeito às questões territoriais como culturais, sendo assim “o pensamento descolonial significa também o fazer descolonial” (MIGNOLO, 2008, p. 290-291).

A transição capilar da Ana Carolina foi impulsionado pela gravidez, uma vez que o uso de produtos químicos no cabelo não é indicado para gestantes, pois podem prejudicar o desenvolvimento da criança,

O relaxamento foi meu presente de aniversário de nove anos. Fui no salão, fiz e achei bonito, só que depois tem todo aquele processo de quebra, estraga tudo. Eu me arrependi mas aí, fazer o quê? Já estava feito! Achei meu cabelo até bonitinho, mas sempre depois vem os problemas: começou a estragar, tinha que ir sempre manter a raiz. Uns dois anos depois eu fui em um lugar e a cabeleireira passou um produto muito forte no meu cabelo que arrancou o couro cabeludo, ficou na carne viva. Aí eu passei um bom tempo sem fazer, depois eu fiz de novo, mas sempre que fazia quebrava. Aí eu fiquei grávida e foi nesse tempo que eu parei de alisar meu cabelo e ele voltou a ficar cacheado. Eu não uso alisamento. Quando ele tá molhado ele fica cacheado. Eu até gosto do cacho.

Na fala da interlocutora Jacqueline, notamos o quanto os produtos químicos, no processo de alisamento capilar, são violentos, fazendo os cabelos caírem e até causar ferimentos. A opção por não adotar mais essa prática veio quando ela soube que estava grávida e, após o parto, a acadêmica optou por continuar com os cabelos da forma natural, o que para ela representou uma “libertação”.