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TRANSTORNOS PSICOLÓGICOS

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CAPITULO 2 ARQUEOLOGIA DO SABER

3 A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO E A RELATIVIDADE DO PROGRESSO

3.4 TRANSTORNOS PSICOLÓGICOS

Figura 6 : Wagner Mota Pereira (o “Vává”), um dos catadores que recolheram a “peça” radioativa.

Consultado pela reportagem do jornal “O Hoje” (edição de 27 de setembro de 2007) a propósito da situação de algumas vítimas da tragédia, o médico-

cirurgião Zacharias Hamu Calil salientou aspectos psicológicos das vítimas. De

acordo com ele, as doenças ligadas ao psicológico dos pacientes também são bas- tante exacerbadas. “Depressão, tabagismo e alcoolismo. As vítimas apresentam

um processo depressivo acentuado e precisam de um acompanhamento psi- quiátrico”.

No entanto, entre todos os especialistas que atendem na SULEIDE, não há um psiquiatra. “A Secretaria Estadual de Saúde abriu concursos e já pedimos

transferência de profissionais dessa área para a SULEIDE. Contudo, nos con- cursos abertos as vagas para psiquiatria não foram preenchidas”, disse Zacha-

rias.

Fora das estatísticas de danos clínicos, mas lotando os consultórios médicos, estão pessoas que desenvolvem ou desenvolveram as chamadas doenças psicos-

somáticas. Fisicamente, elas não tiveram contaminação, nem foram irradiadas a

ponto de sofrerem consequências danosas, como as que vítimas que tiveram partes do corpo amputadas ou sofrem com as feridas que nunca cicatrizam. São pessoas que têm no abalo psicológico a causa de seus transtornos, por vezes, tão graves quanto as queimaduras provocadas pelo Césio.

Consultado pela mesma reportagem, o médico-pediatra José Ferreira Silva,

especialista em Medicina das Radiações, há mais de vinte anos atendendo às vítimas do Césio, explicou que a diferença entre as lesões provocadas pela radia-

ção e outros tipos de queimaduras é que, diferentemente do calor, que atinge os te- cidos, camada após camada, os raios Gama emitidos pelos elementos radioativos, quando aplicados por tempo prolongado e em doses muito altas, penetram profun- damente, por meio dos tecidos, sem que as camadas externas ofereçam proteção às demais. Isso afeta a micro-circulação sanguínea, responsável pela alimentação das células do corpo, que ficam impedidas de realizar o processo de regeneração des- ses tecidos. Nesses casos, passados alguns meses e feitos os procedimentos técni- cos adequados, não há mais radiação, nem contaminação. Mas a ferida, dependen- do da gravidade da lesão, nunca cicatriza de forma permanente. “As pessoas não

percebem que a lesão foi deixada pela radiação, não pelo produto, não pelo césio. O Raio Gama foi lá e lesionou. E essa radiação foi embora, mas deixou a lesão, ali”.

Na extinta SULEIDE (Superintendência Leide das Neves Ferreira), onde acu- mulou a experiência de cuidar de vítimas do acidente, o especialista José Ferreira costumava explicar que os critérios científicos para o estabelecimento de relação causal entre sintomas e o acidente propriamente dito não permitem afirmar, catego- ricamente, quando doenças como os tumores cancerígenos, as más-formações ge-

néticas ou outras patologias tenham sido provocadas pela radioatividade. Isso por- que, quando causadas por exposição à radiação, elas não se manifestam de forma diferente de como se manifestariam caso tivessem qualquer outra causa natural:

“Existem algumas doenças (provocadas pela exposição à radioatividade), co- mo a radiolesão, em que o sujeito vai lá e se queima; ou a síndrome aguda. Então é uma característica de radiação”.

Além disso, nem o aumento dos casos de tumores cancerosos (que estão en- tre as doenças mais comuns provocadas pela excessiva exposição à radioatividade) pode ser diagnosticado, com 100% de segurança, como tendo sido causado pela tragédia. Por esse critério, os únicos óbitos reconhecidos como causados diretamen- te pela exposição ao Césio-137 foram os ocorridos em outubro de 1987. Isto é, os de Maria Gabriela (esposa de Devair); Leide das Neves, sua sobrinha; e os de Israel

Batista, e Admilson Alves, os funcionários do ferro-velho de Devair que manu- searam a cápsula de Césio.

“As pessoas acham que ninguém sabe de radiação. Não. Sabe-se muito”, ar- gumenta José Ferreira.

O problema é que quando você pega o indivíduo, aquele que fala ‘eu tenho diabetes, eu fui exposto’, aí ele gostaria de ouvir a seguinte resposta: ‘Olha, isto aqui é radioinduzido, isto aqui, não’. E isso não existe. O que há é um estudo populacional, porque as doenças são iguais (têm a mesma manifes- tação), independentemente da origem que tenham.

Pediatra e trabalhando há tantos anos na instituição, José Ferreira Silva re-

forçou as colocações de Zacharias: “Hoje, as doenças psicossomáticas são o carro-chefe desses desastres, principalmente da radiação. O que nós temos de mais concreto são as doenças psicossomáticas. São as doenças de que as pessoas nunca se curam. É aquela dor, aquela angústia, aquele medo que so- matiza”.

Um homem relatou, apavorado, que acompanhava pela imprensa as notí- cias sobre alguns de seu familiares, radioacidentados e hospitalizados, en- quanto percebia o agravamento progressivo das radiodermites em suas próprias mãos. Faltava-lhe coragem para apresentar-se e identificar-se co- mo vítima do acidente radiológico. Por três vezes titubeou em fazê-lo, até que, encorajado por um parente, submeteu-se à monitoração no Estádio Olímpico. “Era muito grande aquele medo que eu tinha de falar com o médi- co e saber aquela resposta afirmativa da minha contaminação” (COSTA NETO e HELOU, apud CHAVES, 1995:51).

O atendimento psicológico realizado na Rua 57, próximo às principais áreas contaminadas, procurava possibilitar às pessoas lidar com suas angús- tias e inquietações: “A assistência psiquiátrica foi muito importante, já que as vítimas viviam num estado de tensão e angústia constantes” (COSTA e HE- LOU, 1995, p. 18).

No que tange ao problema psicológico gerado pelo acidente radioativo de

Goiânia, cabe destacar que o alcance da perda de cada uma das vítimas se tornou

imenso: perderam seu espaço, seu lugar, seus parentes, seus amigos; e a partir de então passaram a conviver com uma herança de discriminação, preconceito, e com a incerteza do que poderiam lhes legar os dias seguintes. Ademais, perderam o va- lor do “lugar”, suas referências locais, vizinhos e “pedaços culturalmente definidos”. Transformaram suas vidas radicalmente de um dia para outro.

Quando o trabalho em Psicologia começou a ser realizado, já por volta da terceira semana após o acidente, os pacientes hospitalizados ou albergados estavam em processo de despessoalização, com sério comprometimento da identidade, motivado pelo esfacelamento da estrutura familiar, pela ruptura das inter-relações, pela discriminação, pela perda dos objetos de uso pes- soal, pela descaracterização do ambiente e do próprio organismo. O desejo de voltar a ter contato com o mundo se contrapunha ao medo da rejeição social (COSTA NETO e HELOU, 1995: 15).

A perda se revelou tão forte que a depressão, a angústia, o medo e a ansiedade passaram a ser uma sensação constante no cotidiano das vítimas do Césio-137. Costa Neto e Helou (1995: 47) observam mesmo que 6% (seis por

cento) dos radioacidentados “declararam ter sentido vontade de morrer durante a fase crítica do acidente”.

Somente após cerca de 16 (dezesseis) dias da abertura da cápsula de Césio- 137, as autoridades e a comunidade como um todo vieram a tomar conhecimento da situação. O relatório da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN)sobre o aci- dente radioativo de Goiânia informa:

O manuseio direto da fonte ou de parte dela, a comercialização de materiais contaminados, os contatos sociais e/ou profissionais entre pessoas, a circu- lação de animais, ventos e chuvas, foram as principais vias de dispersão do Césio-137 (CNEN, 1988: 1).

no centro da cidade, no Estádio Olímpico, para ter a certeza de que não estavam

contaminadas, e muitas submetendo-se à descontaminação. Cresceu a atenção de cientistas em relação ao acidente e a Goiânia, com a presença de equipes da CNEN, bem como de técnicos estrangeiros.

Figura 7: Algumas vítimas que estavam isoladas e sendo monitoradas em tendas e barracas armadas no antigo (e ex- tinto) Estádio Pedro Ludovico Teixeira (“Estádio Olímpico”).

O pânico que a população goianiense enfrentava era tamanho, que no Estádio Olímpico formavam-se imensas filas para monitoração. Esse trabalho durava cerca de 12 (doze) horas por dia, ininterruptamente.

A contaminação foi disseminada mediante uma teia de relações pessoais (contato físico entre as pessoas que manusearam a fonte radioativa), e uma teia de relações comerciais (venda, compra e circulação de mercadorias contaminadas). A situação era inusitada, e ficava claro para a população o despreparo técnico-político para lidar com uma situação de emergência como a que estava ocorrendo. As infor- mações que circulavam eram, por vezes, contraditórias: havia técnicos a emitir pare- ceres que, com frequência, discrepavam dos laudos de outros colegas.

Quando se afirma que os desdobramentos do acidente ainda continuam em aberto, é porque há informações e revelações que só vêm com o tempo e um certo “distanciamento” do “calor dos primeiros instantes” do desastre.

Em entrevista exclusiva concedida ao “Jornal Anhanguera” no último dia

13 de setembro de 2012 (dia em que a tragédia completou oficialmente “um quarto de século”), e veiculada no mesmo dia, o engenheiro químico César Ney

fez uma “revelação”: A CNEN rastreou e monitorou, em sigilo, 40 (quarenta) cédu-

las contaminadas que circularam pelo Estado de Goiás e chegaram a voltar ao

Banco Central do Brasil (BACEN). A razão do sigilo, segundo o técnico, é que a

divulgação de que havia notas de dinheiro circulando pela cidade de Goiânia certa- mente traria ainda mais pânico e convulsão social.

Tendo o dinheiro passado por rastreador, técnicos da CNEN realizaram busca de material radioativo em cédulas recolhidas no Banco do Brasil. Muitas foram as manobras realizadas para interromper a contaminação e tentar impedir que o pânico tomasse conta da cidade. Uma delas, mantida em sigilo por muito tempo, foi esse rastreamento realizado em cédulas de dinheiro, em busca de resíduos do material radioativo.

Segundo informou essa matéria,

“(...) César Ney, mestre em energia nuclear, contou que o objetivo do gru- po de profissionais da CNEN que veio a Goiânia acompanhar os desdobra- mentos da tragédia era reduzir, ao máximo, os riscos de avanço da radia- ção. Por isso, o alvo era tudo o que passasse de mão em mão, como o

dinheiro. Segundo ele, o método adotado, inicialmente, foi a avaliação de cédulas recolhidas em todas as agências do Banco do Brasil em Goiâ- nia e em parte das agências desse banco em Anápolis – em razão da

representatividade do município –, além de Brasília.

De acordo com César Ney, ele realizou o trabalho ao lado do físico nuclear José de Júlio Rozental, um dos coordenadores dos trabalhos de desconta- minação e investigação quanto à dimensão do desastre (...)”.

Ainda segundo César Ney, “cerca de 200 (duzentas) mil notas foram, na

época, monitoradas com o uso de um detector muito preciso, um cintilador, usado para medição de amostras radioativas de baixa intensidade”. O superin-

tendente contou que “resíduos chegaram a ser encontrados, mas em torno de 1% (um por cento) das amostras de dinheiro”.

Além disso, ele explicou que, “na época, o material radioativo impregnava

na tinta das cédulas, não sendo transmitido para as mãos de que quem as ma- nipulava”. Por causa disso, ressaltou, “o trabalho não precisou ter continuidade”. “Tudo foi mantido sob sigilo pelas autoridades, na época, com medo da reação da população. Buscávamos não gerar mais pânico e medo da radiação”.

Nessa mesma época dos vinte e cinco anos da tragédia, foi realizado, na ma- nhã do dia 13 de setembro de 2012, um culto ecumênico na Praça Leide das Ne-

ves, localizada na antiga “Praça das Crianças”, em frente ao “C.A.R.A”, no Se- tor Aeroporto. Na oportunidade, o então presidente Odesson Alves Ferreira lem-

brou desse período, em que o medo da população de que pudesse ser irradiada pe- lo Césio-137 ou pela simples proximidade com as pessoas da família dele – a mais atingida pelos efeitos do material – era imenso.

“A Polícia Militar fazia vigilância na nossa rua porque as pessoas amea- çavam apedrejar nossa casa, sacrificar nossa família”, lembrou. Em algumas

situações na época da tragédia - e ainda hoje -, conforme apontou Odesson, há quem aponte o dedo para ele e os familiares dele. “Nossos filhos e netos enfren-

tam o fantasma do preconceito na escola, no trabalho, aonde quer que vão. A discriminação é a cicatriz que mais incomoda”, citou Odesson, que à época era também o presidente do Conselho Estadual de Saúde em Goiás.

Diante da gravidade e da complexidade do acidente, “o processo de des-

contaminação desses ambientes tornava-se extremamente difícil, visto que o conhecimento estabelecido sobre o assunto, além de limitado, era teórico” (CHAVES, 1995: 55).

Fomos acordados de madrugada pelo estranho movimento da rua. Pelas ja- nelas vimos o movimento de pessoas sendo retiradas de suas casas por Policiais e Corpo de Bombeiros. Havia luzes das sirenes de ambulância e muito movimento na rua. Ninguém sabia o que estava se passando (CHA- VES, 1995: 33).

Segundo o depoimento do físico nuclear Carlos Eduardo de Almeida, os contaminados foram lavados com água, sabão e vinagre, e, para os calcanhares - onde havia possibilidade de se acumular matéria radioativa -, utilizou-se “pedra-

pomes”. (GABEIRA, 1987, p. 24).

Assim,

“Chegou-se a afirmar que o lençol freático não estava, em hipótese al- guma, contaminado. Mas, logo em seguida, outro técnico sugeriu a possibilidade de sua contaminação. Essas posições contraditórias ge- raram confusão e insegurança, abalando a confiança, por parte da po- pulação leiga, nos técnicos” (GABEIRA, 1987, p. 24).

No dia 1o de outubro, dois pacientes mais graves foram transferidos do

HDT para o Hospital Naval Marcílio Dias - HNMD, no Rio de Janeiro, instituição pertencente à Marinha, e que possui uma ala para atendimentos a emergências

nucleares. Porém, mesmo os médicos especialistas do HNMD sentiam-se inseguros diante do quadro que se apresentava:

(...) Mesmo no Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD), instituição preparada para emergências radioativas, e que contava com assistência internacional, muitos afirmaram que sentiam dificuldades de “passar da teoria à prática” (CHAVES, 1998:100).

Em 02 de outubro, foi solicitada assistência internacional à Agência In-

ternacional de Energia Atômica – AIEA. E no dia seguinte (03/10/1987), o físico nuclear Paulo Cunha, da CNEN, um dos responsáveis por “descontaminar Goiânia”, declarou à “Folha de S. Paulo”: “(...) Não existe roupa apropriada para se proteger adequadamente da contaminação do material radioativo” (BOR-

GES, 2003, p. 99).

Já no dia 04/12/1987, a médica Rosana Farina, membro da CNEN - e que prestava serviços no Hospital Geral de Goiânia -, declarou para a revista “Autos

de Goiânia”: “(...) No início, por desinformação ou medo, o pessoal se negava até a entrar no hospital. Não tiro a razão, cada um tem a sua razão. Eu diria que esse é um problema goiano mesmo” (BORGES, 2003, p.100).

E, no dia 16/12/1987, o médico Nelson Valverde, da Divisão de Medicina

do Trabalho e Assistencial do Departamento de Saúde de FURNAS, Centrais Elétricas, deu uma declaração seriíssima, também para a revista “Autos de Goi- ânia”: “(...) Na formação curricular em Medicina não existem informações ou esclarecimentos sobre contaminação, irradiação e proteção radiológica

(BORGES, 2003, p.102).

Também devem ser mencionados, em particular, outros catadores que tam-

bém utilizavam carrinhos para catar papéis, ferros e outros materiais que pu- dessem ser vendidos aos Ferros-Velhos. No ápice do acidente, por medo da do-

ença, da discriminação, e de ficar sem seus “carrinhos” (que eram a sua fonte de renda), eles não se manifestavam. Foi preciso realizar uma campanha em que pro-

fissionais do Serviço Social que trabalhavam junto àquela população - e em

quem ela confiava - procuraram esclarecer sobre a importância da apresentação para descontaminação (GABEIRA, 1987, p. 24).

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