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QUATRO HISTÓRIAS

2. Trocas válidas A história de Patrícia

Patrícia tem trinta e sete anos. Seus olhos brilhantes e sorriso fácil fazem com que aparente ser mais jovem. É alegre, muito falante e procura sempre ver o lado bom das coisas. Vive com a mãe e duas irmãs em Nova Iguaçu. Gosta muito de ser depiladora e sente-se realizada na profissão que escolheu.

A depilação entrou em sua vida aos poucos. Antes de trabalhar como depiladora, trabalhou muitos anos em um mercado, em Nova Iguaçu. Depois de doze anos foi mandada embora, e decidiu fazer o curso de depilação. Foi motivada por uma amiga que havia feito o curso e “se encantado” com a capacidade de motivação e alto astral da professora. Patrícia, que estava sem emprego, resolveu arriscar. Trabalhou por dois anos como depiladora particular, até que foi chamada para trabalhar em outro mercado, desta vez em Campo Grande. Após dez meses no novo emprego, o SENAC a indicou para uma vaga em um instituto de depilação que estava abrindo. E aqui está até hoje.

Patrícia chega ao trabalho pouco antes de oito horas da manhã. Gosta de chegar com tempo suficiente para poder fazer as coisas com calma. Apesar de ser agitada, pela manhã não gosta de correria. Aprecia o momento em que toma café da manhã na área comum às depiladoras com Mari e Márcia. Já enfrentou a distância de mais de quarenta quilômetros que separa sua casa do trabalho, em uma condução lotada. Quando chega, quer um pouco de paz antes de começar a trabalhar. Nessa hora, antes das clientes chegarem, o instituto está silencioso. Os únicos barulhos nos fundos da casa vêm do trabalho de Maria, responsável pela cera e que está esquentando as panelas de cera para que esta, quando as clientes chegarem, já esteja “no ponto”. E da televisão,

que é ligada pela primeira funcionária que chega. Patrícia compra pão na padaria e sobe para o instituto. Assim que chega, vai logo fazer café. Está ansiosa para contar a Mari sobre a receita que experimentou ontem. Aprendeu no programa da Ana Maria Braga uma receita de pudim e testou em casa. No momento do café da manhã ainda conseguem conversar com calma, não está aquela correria característica de sexta feira. Sabe que vai ser um dia de grande movimento, pois o final de semana promete ser de sol. E o instituto, que normalmente tem mais movimento perto do final de semana, tem ainda mais movimento quando o tempo está bom. As clientes querem ir à praia, usar shorts, mostrar as pernas, e querem estar com a pele lisinha e sem pelos. Patrícia sabe que hoje muitas clientes irão procurá-la para que as deixe mais bonitas, e isso a deixa feliz.

Ela consegue tomar café com a calma desejada. Conversam sobre planos para o final de semana e sobre novas receitas que querem experimentar. Patrícia ainda consegue passar os olhos no novo catálogo da AVON que Márcia acabou de trazer. Vê uma série de produtos que gostaria de encomendar, mas como o dinheiro é curto, deixa para se decidir ao longo do dia com mais calma.

A campainha toca. Uma cliente chegou. Como a cliente não tem preferência por nenhuma depiladora, Patrícia, que está na vez, vai atendê-la. Assim como todas as depiladoras, ela foi instruída a receber as clientes com uma simpática e educada saudação. Especialmente no caso de Patrícia, esta orientação é desnecessária. Ela não sabe fazer diferente, sempre se dirige às

clientes, e a qualquer um que cruze seu caminho, com um grande sorriso no rosto. Patrícia não se lembra de já ter atendido aquela cliente. Vê que se trata de uma mulher de quarenta e poucos anos, mas nada mais em sua aparência, sua roupa ou acessórios, diz mais sobre ela. “Uma mulher normal”. Patrícia a conduz à cabine, confirma o serviço, pede que fique à vontade enquanto pega a cera.

Inicia o trabalho e a cliente está muda. Patrícia, como é seu costume, faz um comentário qualquer. Sempre faz isso quando suas clientes não dizem nada. Particularmente gosta de conversar com as clientes. Acha que o trabalho fica mais interessante, que o tempo passa mais rápido, mas respeita quando sente que as clientes não querem conversar. Por isso sua tática é: faz um comentário, algo abrangente, sobre o tempo, por exemplo, e espera a reação da cliente. Se a cliente der papo, continuarão a conversar. Se não, ela terminará o serviço sem incomodar a cliente. A cliente dá papo. Conversam e, sem Patrícia saber muito bem como, a cliente comenta que é pesquisadora da UFRJ e que está, no momento, pesquisando a linhaça... “Pesquisadora da UFRJ?” Pensa Patrícia. “Pesquisadora da UFRJ deitada na minha maca, conversando comigo? Que demais!” Patrícia sente um misto de sorte e orgulho. Sorte de ter aquela mulher como cliente, uma mulher importante, inteligente. E orgulho por estar sabendo conduzir uma conversa com uma mulher com este status. Querendo aproveitar ao máximo para aprender, Patrícia faz perguntas e se mostra extremamente interessada e curiosa sobre tudo o que a cliente

pesquisadora da UFRJ fala. A pesquisadora da UFRJ explica que, no momento, está pesquisando a relação da linhaça com o colesterol. Patrícia não sabe exatamente como ou aonde vai utilizar este conhecimento que está adquirindo, se vai ter a chance de replicá-lo; mas aproveita com todas as suas forças para aprender. Pensa: “se a pessoa é pesquisadora, se a mulher foi lá, estudou, foi a fundo e quer passar esse conhecimento pra mim, eu vou aprender de todo o prazer!” Neste momento, é tomada de alegria, a alegria que a faz gostar de seu trabalho.

Patrícia lembra-se das diversas ocasiões em que pôde transmitir a outras clientes um conhecimento que recebeu dentro da cabine. Como, por exemplo, da ocasião em que aprendeu com uma cliente sobre fungos na pele. Não usou este conhecimento por um bom tempo até que um dia, ouvindo a reclamação de outra cliente sobre um problema de pele e a incapacidade do

médico de descobrir a causa, se lembrou dos fungos! Comentou com a cliente que o problema poderia ser causado por um fungo, e a cliente saiu do atendimento duplamente satisfeita.

Satisfeita com a depilação, e também com a ajuda de Patrícia. Assim que saísse do instituto, iria ligar para seu médico e questionar a possibilidade do problema ser causado por um fungo.

Ainda enquanto conversa com a cliente pesquisadora da UFRJ, Patrícia se lembra também daqueles aprendizados que não serviram para ser repassados, ou seja, não ensinaram nada às clientes. Mas que serviram para que ela não se sentisse inferior a elas. Foram momentos em que pôde conversar de igual para igual com suas clientes, ao utilizar conhecimentos

adquiridos em outras sessões. Como, por exemplo, no dia em que atendendo uma cliente mais calada, falou a expressão “ócio construtivo”. Gostou do efeito que a expressão teve sobre a cliente. No momento em que falou a expressão, já nem se recorda sobre o que estavam

conversando. Mas nunca vai se esquecer da cara de espanto da cliente ao perguntar: “Onde você aprendeu isso?!” Como se Patrícia não pudesse saber o que era “ócio construtivo”. Patrícia ri ao imaginar: “Ela devia pensar: ‘essa mulher deve ser uma burra que não sabe conversar’.” E ela não só falou “ócio construtivo”, como explicou o que era “ócio construtivo”. Patrícia respondeu que havia aprendido com outra cliente. E só então, a tal cliente se dispôs a conversar com ela.

Voltando à cabine com a pesquisadora da UFRJ. Patrícia não pode se conter e diz: “Mas olhando assim pra você, ninguém diria que você é pesquisadora da UFRJ!” Ao que a cliente ri. Para Patrícia, aquela cliente é tão rica (de conhecimento), que isto deveria estar sendo transmitido através de roupas e acessórios caros. E fica chocada com a não correspondência dessa crença. Patrícia fica feliz porque a cliente comentou que era pesquisadora, pois “até ali, ela era uma mulher comum, que podia ser uma dona de casa, podia ser uma faxineira, podia ser qualquer pessoa!”

O aprendizado que pode acontecer (e acontece!) dentro da cabine é o que mais dá prazer a Patrícia no trabalho como depiladora. Ela está atenta a tudo o que pode absorver de suas clientes. O conhecimento é um capital que Patrícia consome avidamente. O conhecimento adquirido circula dentro do próprio instituto de depilação. Ele tem uma função específica lá, que é a de enriquecer Patrícia a ponto de colocá-la à altura de suas clientes. Com o conhecimento adquirido, Patrícia sente-se segura para transitar entre os mais diversos assuntos e as mais diversas clientes.

Certa vez depilou uma pesquisadora da Fiocruz. Este foi um acontecimento inesquecível. Segundo ela, foi “o ponto!” No meio da sessão, a cliente pesquisadora da Fiocruz diz: “A saúde do Brasil é top de linha”. Patrícia, que mora em Nova Iguaçu, não possui plano de saúde e está cansada de saber, por experiência própria, da dificuldade que é ter acesso a um atendimento de saúde decente, de qualidade e respeitoso, não se aguentou. Virou-se para a cliente e confrontou-a dizendo: “Só se for em São Paulo!” A cliente rapidamente retificou sua fala, argumentando que estava falando de livros, de estudo: “Se tudo o que estivesse nos livros fosse bem utilizado, nós seríamos top de linha”. Ao que Patrícia responde: “Ah bom!” E, aí sim, “o papo fluiu”. Ao término da sessão, após a cliente ir embora, uma depiladora que estava atendendo na cabine ao lado veio até Patrícia e disse: “Eu e a minha cliente estávamos babando com a conversa de vocês!” A conversa de igual para igual com uma pesquisadora da Fiocruz, o reconhecimento de outras depiladoras e de outras clientes fez deste um momento inesquecível. Patrícia

especialmente adorou esta conversa e disse para a cliente: “Olha, eu te depilava de graça!” E concluiu, assim, que às vezes o ganho de conhecimento se equipara ou pode até superar o ganho financeiro.

A troca de conhecimento no caso de Patrícia é uma via de mão dupla. Ela não só recebe conhecimento, como também transmite. Ela, por exemplo, já aprendeu com uma professora que “a soja é o ‘supra-sumo’ da Europa. A gente planta aqui e eles comem lá”. Por sua vez, durante a depilação também já ensinou, uma receita com chuchu a uma cliente chilena que mora no Brasil acompanhando o marido professor universitário.

A troca de “conhecimento” é o diferencial da sua depilação, acredita Patrícia. “Depilação com uma depiladora muda, a cliente vai encontrar em qualquer lugar. É o que dá humanidade ao atendimento”. Existe algo de específico e particular na relação da depiladora com cada cliente. Não é à toa que quando Dona Beth vai ao salão depilar sua sobrancelha, e Patrícia, por algum motivo, não pode atendê-la, ela não dá o bolo de laranja, que traz todas as vezes, para a outra depiladora. O bolo não é para “a depiladora”, o bolo é para Patrícia.

Um ponto interessante é que todo esse conhecimento parece ter valor apenas dentro do instituto. Raramente Patrícia o utiliza em sua casa, com sua família e seus vizinhos. O único conhecimento útil na sua realidade é o referente a questões de saúde. É como se em sua realidade, no seu dia a dia, aqueles outros conhecimentos fossem inúteis. Talvez não exista interesse em transmiti-lo, talvez não existam ganhos ao transmiti-los, talvez não haja interesse em absorvê-los.

Patrícia fica especialmente atenta às clientes que viajam para o exterior. Uma viagem para outra cultura permite que a pessoa olhe de forma diferente e que questione sua própria cultura. Patrícia consegue absorver a cultura “de fora” que as clientes trazem para ela. E suas clientes viajam muito: Emirados Árabes, Egito, França... Outro dia uma cliente contou a ela que

na Oceania ou na Dinamarca... ela não se lembra bem, “a estrutura é a mesma do Brasil, só que lá o faxineiro ganha x, tão bem quanto um advogado”.

A troca não acontece somente no nível intelectual. Patrícia também tem outras moedas de troca. Ela é católica praticante, e já comentou isso com algumas clientes. Por freqüentar

assiduamente a Igreja e realizar suas práticas, ela se torna um elemento próximo de Deus e poderoso. Por isso, muitas clientes pedem que ela “ponha uma oração”. A esposa chilena já pediu uma oração à Patrícia quando seu marido foi operado.

Em outra ocasião, Patrícia também ajudou uma cliente a encontrar uma casa em São Paulo. Esta cliente passou em um concurso para a Petrobrás em São Paulo, e comentou com Patrícia que não tinha casa. Como a cliente já era sua cliente antiga, e ela sabia que ela era a maior “guerreirona”, decidiu ajudá-la. Passou o telefone de uma amiga que mora em São Paulo, e foi uma amiga desta amiga que conseguiu a casa para a cliente.

O aprendizado

A história de Patrícia nos revela a possibilidade de uma relação de maior simetria entre depiladora e cliente através de trocas que acontecem dentro da cabine. Apesar de encontrar esta prática apenas na fala desta depiladora, ela me pareceu interessante o suficiente para lhe destinar um capítulo. A troca, que pode acontecer em diversos níveis, do intelectual ao culinário,

passando pelo espiritual, confere autoridade a Patrícia que, ao ser útil às clientes, fala de igual para igual com elas.

Patrícia oferece às clientes todas as suas moedas de troca, tais como receitas e orações, além daquilo que aprende com outras clientes. Para Patrícia, conhecimento é sinônimo de status. Não há, em sua fala, cliente que ela mais valorize do que as professoras e pesquisadoras, as quais investem tempo e dinheiro em uma longa formação acadêmica. Enxerga valor real no

conhecimento adquirido com elas e, por isso, até mesmo as depilaria de graça. O conhecimento que adquire tira-a da posição de submissão frente às clientes. A cliente, na imaginação de Patrícia, a considera uma “idiota”, pois crê que ela não é “capaz de conversar”. E só “se abre” e conversa com ela, só inicia uma relação com ela, depois que Patrícia não só mostra que também possui conhecimento, como pode até mesmo ensinar algo a ela, explicando, por exemplo, o que é “ócio criativo”.

Em sua troca com as clientes, Patrícia reafirma seu valor ao aprender, por exemplo, que países desenvolvidos conferem igual valor a um faxineiro e a um advogado. A posse de

conhecimento (e, portanto, de valor) autoriza-a até mesmo a questionar uma pesquisadora da Fiocruz. Este fato que mereceu, inclusive, reconhecimento e elogio de outras ouvintes, é uma das competências sociais que, de acordo com o sociólogo alemão Nico Stehr (2000), dirige as

desigualdades sociais no mundo contemporâneo, a “autoridade para falar”. Na crença de que o conhecimento, enquanto capacidade de ação, é fundamental no processo de formação das

desigualdades na sociedade moderna, Stehr lista algumas competências sociais que, segundo ele, dirigem a desigualdade social no mundo contemporâneo. Entre elas está a “autoridade para falar”, que implica, entre outros, em “uma distinção social em relação aos que não estão autorizados a falar”. Ao interromper uma pesquisadora da Fiocruz e expor seu conhecimento,

Patrícia sente-se autorizada a falar. Ela inverte a lógica “natural” que legitima um determinado regime de dominação (BOURDIEU, 1974), da mesma forma como o faz quando surpreende a cliente que acredita que uma depiladora “não pode” possuir tal conhecimento.

O que possibilita tal inversão é a posse de conhecimento. Patricia não cursou uma faculdade nem lê livros técnicos. Mas toma para si o conhecimento transmitido. Aprende e se capacita com suas clientes. Entretanto, o conhecimento adquirido parece ter valor apenas no trabalho de Patrícia, em Botafogo. Ele funciona como moeda de troca entre mulheres que possuem formação acadêmica, que têm profissões que requerem graduação, mulheres com condições financeiras para viajar para outros países e conhecer outras culturas. Mas não parece ser válido em sua vida privada. Lá, em Nova Iguaçu, apenas o conhecimento sobre saúde é útil. Lá talvez Patrícia não encontre interlocutores interessados em seu conhecimento acerca de linhaça. Lá, perante seus “iguais” familiares, amigos e vizinhos, provavelmente suas

necessidades são de outra ordem e o conhecimento adquirido com as professoras e pesquisadoras que depila não tenha utilidade ou função.

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