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Tem muitas coisas que as pessoas não sabem: que é o que se passa dentro da cabine: um estudo sobre fronteiras sociais

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Academic year: 2017

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

Tem muitas coisas que as pessoas não sabem. Que é o que se passa dentro da cabine.

Um estudo sobre fronteiras sociais

Renata Del Caro Daniel

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO MARIANA CAVALCANTI

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

Tem muitas coisas que as pessoas não sabem. Que é o que se passa dentro da cabine.

Um estudo sobre fronteiras sociais

APRESENTADA POR

Renata Del Caro Daniel

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO MARIANA CAVALCANTI

Renata Del Caro Daniel

Tem muitas coisas que as pessoas não sabem. Que é o que se passa dentro da cabine.

Um estudo sobre fronteiras sociais

Dissertação de Mestrado Profissional apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV 

 

 

 

 

Daniel, Renata Del Caro 

    Tem muitas coisas que as pessoas não sabem: que é o que se passa dentro da  cabine: um estudo sobre fronteiras sociais / Renata Del Caro Daniel. – 2012. 

    106 f.  

 

 Dissertação (mestrado) ‐ Centro de Pesquisa e Documentação de História  Contemporânea do Brasil, Programa de Pós‐Graduação em História, Política e  Bens Culturais. 

 Orientadora: Mariana Cavalcanti.   Inclui bibliografia. 

 

1. Relações humanas. 2. Comportamento humano. 3. Comunicação

interpessoal. 4. Comportamento do consumidor. I . Cavalcanti, Mariana. I I . Centro

de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Programa de

Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. I I I . Título.

CDD – 302

(5)

RENATA DEL CARO DANIEL

FUNDAÇÃO G1JLlO VRAS

TEM MUITAS COISAS QUE AS PESSOAS NÃO SABEM. QUE É O QUE SE PASSA DENTRO DA CABINE. SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PROFISSIONAL

E CLIENTE DENTRO DE UMA CABINE DE DEPILAÇÃO EXPRESSA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil para obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais

Data da defesa: 28/03/2012

Aprovada em:

ASSINATURA DOS MEMBROS DA BANCA DA DEFESA DE DISSERTAÇÃO

: I'

Mariana C. valcallti Rocha dos Santos

Orientador (a)

Jl1lia Galli O'Dollncll

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AGRADECIMENTOS

Escrever esta dissertação foi um trabalho árduo e extenuante. Mas esta afirmação é

principalmente verdadeira para aqueles que me acompanharam durante este processo de criação, mas estiveram fora dele. Para mim ela certamente representou muito trabalho, mas também alegria e realização. Infelizmente, quem esteve do lado de fora não participou da euforia ao surgimento de cada insight, da satisfação em articular ideias ou do entusiasmo ao encontrar fontes que se encaixavam perfeitamente com ideias ainda insipientes. Momentos estes solitários e noturnos.

Agradeço a todos aqueles que estiveram presentes em minha vida nos últimos dois anos, mesmo que para estes, este processo possa não ter parecido tão prazeroso como de fato foi.

À minha mãe Leila por acreditar em mim sempre, a meu pai Marcos e aos meus irmãos Gustavo e Fernando.

Ao Rogerio pela compreensão, pelo carinho e pela infinita paciência.

À minha orientadora Mariana Cavalcanti pela capacidade de transformar momentos de desespero em leves risadas e, com sua empolgação, me inspirar sempre.

À Professora Lúcia Maria Lippi de Oliveira pela dedicação e orientação em sala de aula. À Diana Nogueira de Oliveira Lima que, mesmo sem saber, há muito tempo me inspirou a trilhar o caminho da Antropologia.

À Tatiana Siciliano, que de professora se tornou mentora e amiga.

Em especial à Márcia Amorim pela confiança e amizade.

A todos os amigos que me acompanharam, mas que não veem a hora de tudo isto terminar. E aos meus colegas de Mestrado da FGV/ CPDOC pelo interesse e troca tanto na sala de aula como após a mesma.

(7)

RESUMO

Ambientes voltados para o embelezamento corporal, tais como salões de beleza e institutos de depilação são frequentemente palco de uma inusitada relação entre cliente e profissional que é a tomada por parte da cliente da profissional como sua confidente. O presente trabalho propõe uma reflexão sobre esta relação interclasses, sobre as fronteiras sociais, em um instituto de depilação expressa. A principal questão discutida é a forma como a prestadora de serviço lida com as diferenças socioeconômicas e a ordem hierárquica existente entre ela e sua cliente. Foram realizadas observações e sete entrevistas em profundidade com depiladoras em um instituto de depilação expressa localizado na cidade do Rio de Janeiro. São expostos comportamentos observados, onde a relação de intimidade e entrega por parte da cliente vem a ser apenas um deles, e como as diferenças existentes são naturalizadas.

(8)

ABSTRACT

Beauty salons and waxing institutes are often the stage of an unusual relationship between client and professional. That is, the attitude of the client of taking the professional as her confident. This paper proposes a reflection on this kind of relationship that evolves a client belonging to a higher social class than the professional. The main issue discussed is how the professional handles hierarchical order and socioeconomic differences between herself and her client. That is, how they deal with the social boundaries existing between them. Observations and seven

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SUMÁRIO

UMA BREVE INTRODUÇÃO NO MUNDO DA DEPILAÇÃO...9

A busca por intimidade...15

O trabalho como depiladora...17

ENTRANDO NA CABINE – O trabalho em questão...19

Sobre a observação e condições de realização das entrevistas...21

Assumindo o “meu lugar”...28

QUATRO HISTÓRIAS...34

Da Indonésia a Duque de Caxias – a história de Mari...34

O próximo e o distante...40

Clientes preferidas e clientes temidas...46

Trocas válidas – a história de Patrícia...50

O aprendizado...56

Uma simples sobrancelha com carinho e com amor – a história de Janaína...59

O desabafo...65

A questão da nudez...70

A importância de acolher...70

Como lidar com a carga emocional...77

Não pode misturar as coisas, porque é diferente – a história de Rosi...79

A importância do profissionalismo – a ambiguidade nas relações de trabalho...81

O escândalo...91

A importância da confiança...92

Profissionalismo e lógica relacional...95

CONSIDERAÇÕES FINAIS - “Aguardando aqui fora...”...97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...100

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UMA BREVE INTRODUÇÃO NO MUNDO DA DEPILAÇÃO

Imagine um dia em uma das maiores cidades do mundo moderno. Pegue o Rio de Janeiro

num dia especialmente bonito e agradável, no início de janeiro. Escute as belas e tristes letras

compostas por um grupo de jovens considerados a nova geração do samba. Observe técnicos da

Agência Nacional de Vigilância Sanitária cancelar o registro de uma marca holandesa de

próteses de silicone acusadas de vazamento. Acompanhe o trabalho de bombeiros no salvamento

de uma família inteira que ficou soterrada no desmoronamento de sua casa depois de fortes

chuvas de verão. Ouça o triste lamento dos funcionários da mais tradicional churrascaria da

cidade consumida pelas chamas causadas por curto circuito em um assador elétrico. Assista a

lindas e esbeltas modelos desfilarem coleções de vestidos com transparências, bordados de linha

e trabalhos em fita no maior desfile de modas da cidade.

Enquanto isso, em diversos locais espalhados pelo Rio de Janeiro, outros eventos

acontecem. Eventos que não deixarão marcas na opinião pública e que atrairão a atenção

somente daqueles que estão diretamente envolvidos neles 1. Mulheres das mais variadas idades,

tons de pele, profissões e estilos de vida se submetem a um curioso e doloroso procedimento: a

retirada dos pelos de seus corpos. Trata-se de um procedimento em geral mensal; tempo que os

pelos levam para crescer e alcançar o tamanho mínimo até serem, mais uma vez, arrancados.

Devido à popularidade que a prática alcançou nos últimos anos, diversos

estabelecimentos foram abertos especificamente para este fim. Eles são compostos basicamente

de dois ambientes: uma sala de espera pública, onde as mulheres aguardam atendimento e onde

      

(11)

eventuais acompanhantes devem esperar, e uma área privada. Estes dois ambientes são separados

por uma porta, e quem está na sala de espera não vê o que acontece na área privada. Nesta área

encontram-se diversas cabines de poucos metros quadrados, e em cada uma há uma maca, uma

mesa de apoio e um cabide para que a mulher pendure sua bolsa e roupas.

Assim que chegam ao estabelecimento as mulheres são solicitadas a se identificarem a

uma sorridente e geralmente maquiada recepcionista. Através do nome, número de telefone ou

número de carteira de identidade a recepcionista acessa o cadastro da cliente. O cadastro é feito

logo na primeira visita da cliente e utilizado para envio por email de informações “úteis” como

eventuais promoções e descontos, alterações de horário de atendimento, entre outras. Uma vez

acessado o cadastro, a recepcionista pergunta à cliente sobre qual a área do corpo onde ela deseja

ter seus pelos arrancados nesta nova visita. Em caso de dúvida, a cliente conta com a ajuda de

um cartaz afixado na parede com todas as possibilidades e seus respectivos preços.

O corpo é dividido em áreas, mas a lista segue a ordem alfabética: axila, ânus, abdômen,

braço, buço, costas, coxa, faixa (a faixa funciona como uma espécie de coringa e pode ser

adicionada a qualquer área. Assim, se uma mulher, por exemplo, tem muitos pelos na virilha,

mass não quer depilar a perna, ela pode comprar uma faixa para retirar o excesso de pelos da

virinha), nádegas, nariz, perna inteira, ½ perna, queixo, seios, sobrancelha, sobrancelha

modelada, tricotomia (total retirada dos pelos pubianos), virilha, virilha contorno, virilha

completa, virilha artística. A lista é extensa. Chama a atenção a quantidade de opções e

especificações para a virilha, uma área tão pequena do corpo. Pequena, mas complexa.

“Tricotomia”, como já disse, é a retirada total dos pelos. “Virilha” é a retirada apenas dos pelos

excedentes, aqueles que estão quase na coxa. “Virilha contorno” retira os pelos que aparecem

(12)

último, na “virilha artística” a profissional faz um desenho artístico nos pelos pubianos. Um

molde descartável é colocado sobre os pelos e apenas o excesso é retirado. Os modelos de

moldes variam. Pode-se ter uma virilha em forma de meia lua, seta, maçã mordida, estrela,

coelhinho da Playboy, coração... Através da oferta de desenhos, podemos ver que esta prática

está intimamente associada à erotização do corpo. De acordo com Mauss (2003), a educação das

técnicas consistiria em “fazer adaptar o corpo a seu uso”. (p. 421). Através da depilação

adquire-se uma pele adquire-sem pelos, lisa, e considerada esteticamente mais bonita e atraente por mulheres e

homens. Muitas vezes a mulher realiza esse procedimento para agradar o sexo oposto, que

costuma apreciar uma virilha “limpa”. Diz-se também que, quando o homem pratica sexo oral na

mulher, é mais agradável para ambas as partes quando a virilha está sem ou com poucos pelos.

Isto talvez explique a complexidade da virilha.

Este serviço é pago e não é barato. O valor do serviço varia de acordo com a área do

corpo que será depilada, podendo ir de cerca de R$ 9,00 para áreas de menor tamanho como

nariz e buço, até R$ 32,00 para perna inteira ou R$ 40,00 para a tal virilha artística. Em geral a

mulher acaba depilando mais de uma parte do corpo, e o valor final consiste na soma das partes.

Confirmado o serviço a recepcionista entrega à cliente um kit que, de acordo com o

serviço contratado, pode conter luvas, uma pinça, um palito de madeira que se assemelha a um

palito de picolé e uma pequena fita. A espera não é longa e é atenuada por diversas revistas de

moda e futilidades. E em alguns estabelecimentos, também por uma televisão. A cliente aguarda

até que uma profissional apareça na porta que divide as áreas, e a chama pelo nome e sobrenome.

(13)

As profissionais que arrancam os pelos são treinadas para receberem suas clientes de

forma simpática e educada. Com um sorriso nos lábios perguntam como vai a cliente. Elas

vestem uniformes cujas cores e estilos variam de estabelecimento para estabelecimento. Mas as

cores não variam muito, passando sempre pelo rosa, lilás e roxo, cores consideradas femininas.

Todas as profissionais, as depiladoras, têm que ser formadas por um curso profissionalizante que

dura cerca de três meses. Diversas instituições oferecem tal curso, sendo o mais conhecido o do

SENAC. À cliente não importa onde a depiladora se capacitou. Também não importa se a

depiladora tem grande experiência na atividade, e se tem ou não uma vasta clientela. Ela não

conhece a depiladora quando contrata o serviço. Confia no estabelecimento e, como

conseqüência, na depiladora. A partir de agora chamarei o estabelecimento de instituto de

depilação expressa. Existem diversas marcas de institutos de depilação no Rio de Janeiro, e eles

estão em franca expansão. Tais institutos se tornaram comuns nos anos 90 com o surgimento do

primeiro e até hoje o mais conhecido de todos: o Pello Menos. Com a promessa da cliente não ter

que marcar hora ou esperar para ser atendida, o Pello Menos foi sucesso imediato na cidade do

Rio de Janeiro. De acordo com dados de 2011, “a rede possui 41 lojas concentradas entre Rio de

Janeiro e São Paulo. Tem um leque de atendimento com mais de 75.000/clientes mês. Um

cadastro de mais de 450 mil clientes cadastradas e um know how de mais de 17.000.000 de

depilações executadas” 2.

Antes do seu surgimento o procedimento de arrancar de pelos já existia, mas era mais

discreto. O Pello Menos apostou na massificação e popularização da técnica. Criou lojas de

depilação onde a cliente não teria mais que marcar hora para ser atendida. Se antes o

procedimento era realizado em locais “escondidos” como salões de beleza, academias de

      

(14)

ginástica ou na própria casa da depiladora ou da cliente, agora ele é “escancarado”. Há lojas de

depilação por toda parte. Se antes o procedimento era realizado por uma mesma depiladora que

atendia a cliente todos os meses, no Pello Menos pode acontecer da cliente nunca ser atendida

por uma mesma depiladora duas vezes. Ela será sempre atendida pela depiladora que estiver

disponível no momento. O benefício para a cliente é a agilidade do atendimento. Ela não só não

tem que se adaptar à disponibilidade da depiladora, como o próprio procedimento em si é mais

dinâmico. O Pello Menos desenvolveu uma técnica de depilação que consiste na depiladora

espalhar a cera diretamente na pele da cliente. Não que isto não fosse feito anteriormente. Mas

não era feito em grandes áreas de uma só vez, como, por exemplo, na perna inteira da canela à

coxa.

Voltando para o procedimento: nos fundos de todos os institutos de depilação há uma

espécie de cozinha onde a cera é esquentada em um fogão. Ela é o veículo utilizado para arrancar

os pelos. Fabricantes de cera, provavelmente com a intenção de suavizar o procedimento, muitas

vezes inserem nela ingredientes naturais como mel de abelhas ou algas marinhas. Uma

funcionária é responsável por deixar a cera sempre “no ponto” para que o atendimento seja o

mais rápido possível. A depiladora que recebe a cliente apresenta-se dizendo seu primeiro nome.

Entra, então, em uma das cabines com a cliente, confirma o serviço, isto é, a área que a cliente

deseja depilar e diz: “Fique à vontade que eu já volto”. Sai da cabine e vai até a cozinha pegar

uma panela com cera quente. Quando volta a cliente já está deitada na maca com a área a ser

depilada despida. A depiladora veste as luvas, cobre boca e nariz com máscara cirúrgica, testa a

temperatura da cera espalhando uma pequena porção no antebraço da cliente e, após a

autorização da mesma, dá início ao procedimento. Com embalagem adequada a depiladora

(15)

grossa camada de cera quente sobre a pele da cliente. O talco ameniza o impacto da temperatura

na pele, diminuindo a dor. Assim que a cera seca, após poucos segundos, ela é arrancada no

sentido contrário do crescimento dos pelos. O tempo de secagem é acelerado através de um

pequeno ventilador que, preso na parede, pode ser direcionado para o local desejado. Com os

dedos a depiladora bate na cera para sentir se ela já está no ponto de ser retirada. Se os dedos já

não grudarem na cera, ela solta a extremidade de cera que está contrária ao crescimento dos

pelos e, sem dó nem piedade, arranca-a de uma só vez. A cliente deitada na maca se contorce de

dor. Algumas mais. Outras, mais resistentes à dor, menos. Mas em geral todas concordam

tratar-se de um procedimento doloroso. Mal uma parte é retirada, outra já é preparada da mesma forma:

espalha cera quente, espera esfriar e arranca. Isso é feito nos braços, seios, queixo, axilas, virilha,

ânus, dedos dos pés e onde mais houver pelos. As áreas que serão depiladas são escolha da

cliente. Este é um procedimento absolutamente voluntário. Todas as que se submetem a ele o

fazem por livre e espontânea vontade, buscando alívio de verem sua pele livre de pelos.

Convencionou-se considerar pelos algo antiestético e também anti-higiênico. Uma pele lisinha é

mais bonita e mais limpa. Principalmente em cidades de praia, como o Rio de Janeiro, esta se

tornou uma prática comum. As clientes chegam, esperam alguns minutos, deitam-se na maca e a

tortura começa. Muitas vezes elas sequer conhecem a profissional que realiza o serviço.

Entregam sua pele, sua intimidade, abrem suas pernas, como o fazem a um ginecologista, para

(16)

A busca por intimidade

Hoje em dia notamos que alguns institutos abertos após o Pello Menos oferecem à cliente

a possibilidade de escolher a profissional por quem quer ser atendida. Oferecendo, assim, além

da agilidade, um atendimento personalizado e cuidadoso. Entre alguns exemplos, a rede Depil

Out divulgação seus serviços da seguinte forma: A cliente chega e é atendida na hora, pela

depiladora de sua preferência.” 3. Já a rede Pelo Sim, Pelo Não, promete: “um novo conceito em

depilação expressa. Um espaço que une a rapidez de um serviço expresso com o carinho de um

atendimento personalizado e cuidadoso.” 4. E eis meu ponto de interesse. Esta tendência

demonstra que alguns donos de negócios perceberam que muitas clientes demandam por um

atendimento mais ‘personalizado’. Demandam conhecer a profissional que as atende. Seja

porque gostaram do resultado do trabalho da depiladora, seja porque gostaram da pessoa da

depiladora, muitas clientes não querem ficar trocando de profissional. Nestes novos institutos a

possibilidade da cliente escolher por quem quer ser atendida passa a ser um diferencial. No Pello

Menos e em outros institutos que priorizam a agilidade e o vínculo da cliente com o instituto e

não com a profissional, a cliente não pode decidir por quem será atendida. De acordo com

minhas entrevistadas, nestes locais a depiladora é instruída a não estimular a conversa com a

cliente.

Assim como acontece em salões de beleza, na depilação algumas clientes gostam de criar

vínculo com a profissional que a atende. As depiladoras encaram isso como algo natural,

Segundo elas, muitas clientes gostam de ser atendidas pela mesma profissional, porque o       

(17)

procedimento pode envolver grande exposição física dependendo da parte do corpo a ser

depilada. Para se depilar a virilha, a cliente tem que unir os pés pela sola e abrir os joelhos.

Algumas ficam nuas, outras optam por ficar com a calcinha, e aí a tal fita entregue no kit é

utilizada. A depiladora amarra a frente da calcinha para que ela não se suje de cera. Na visão da

depiladora, se a cliente já conhece a depiladora, o mal estar da exposição é minimizado.

Além da exposição física, outra razão para a preferência de depiladora é o vínculo

emocional. Algumas clientes gostam de conversar com suas depiladoras: de contar intimidades,

problemas, ou fazer confissões. Embora algumas clientes façam isso com qualquer depiladora,

em muitos casos o vínculo também fortalece este comportamento de exposição. É importante

notar que esta é uma característica dos serviços de beleza em geral, não se limitando apenas à

depilação.

O interessante nesta relação é que uma exposição dessa natureza às profissionais,

dificilmente aconteceria em outro ambiente, que não no salão de beleza ou instituto de depilação.

As depiladoras deslocadas do contexto do instituto de depilação, provavelmente não seriam

eleitas como possíveis ouvintes de intimidades, pois as diferenças de nível socioeconômico,

cultural etc. são muitas, e afastam cliente e profissional de um contato social mais freqüente. E

foi justamente esta peculiar relação de intimidade que motivou minha escolha pelo estudo da

relação entre cliente de níveis socioeconômicos mais altos e depiladoras. Não me detenho apenas

no estudo da relação de intimidade, mas na relação como um todo, onde a intimidade é apenas

(18)

O trabalho como depiladora

Parece-me necessário dizer algumas palavras sobre o trabalho da depiladora em um

instituto de depilação expressa. Em geral, todas as depiladoras me disseram estar extremamente

satisfeitas com o trabalho. Os principais motivos, que são a oportunidade de conhecer pessoas

diferentes e a possibilidade de fazer bem às clientes, seja físico ou psíquico, estarão mais

detalhadamente descritos nos capítulos seguintes. Mas depois de realizadas todas as entrevistas,

fiquei com a forte impressão de que muitas consideram o trabalho com depilação como um meio

para se alcançar algo maior. Muitas depiladoras me disseram ter o desejo de se especializar em

outras técnicas de estética, principalmente as de maior visibilidade, como cabelos e maquiagem.

Além disso, também ouvi de algumas delas que o trabalho seria muito repetitivo, não trazendo

desafios ou oportunidades de crescimento.

Sobre a forma como ingressaram na profissão, quase todas foram estimuladas por alguma

amiga ou parente que já trabalhava como depiladora ou na área de beleza. Consideram que a área

da beleza não conhece crises financeiras, e acreditam que a mulher brasileira seja muito vaidosa.

Mas não é qualquer uma que está apta a trabalhar com depilação. Ouvi diversas vezes que as

principais características de uma boa depiladora são acalma e a tranquilidade. Pela depilação ser

um procedimento que causa dor, as clientes geralmente chegam à cabine tensas, e a profissional

deve lhes transmitir calma e segurança.

Depiladoras devem ser formadas em um curso profissionalizante. No entanto nenhum

curso profissionalizante ensina a técnica da depilação expressa. Esta elas têm que aprender no

(19)

médio completo. De acordo com ofertas de emprego disponíveis na Internet o salário gira em

torno de R$ 800, a R$ 1.500,5. Mas, como na maioria das vezes ele é composto basicamente de

comissão, quanto mais clientes, maior o salário.

      

(20)

ENTRANDO NA CABINE: O trabalho em questão

Com o presente trabalho minha intenção foi a de apreender as formas de lidar com as

diferenças socioeconômicas existentes na prestação do serviço de depilação. Através de uma

pesquisa de campo em um instituto de depilação voltado para a classe média, procurei entender

como as depiladoras lidam com as clientes que vivem uma realidade socioeconômica superior a

das delas e como as diferenças existentes são naturalizadas.

Através de observações e entrevistas em profundidade com depiladoras em um instituto

de depilação localizado na cidade do Rio de Janeiro, pude acessar como as depiladoras se

relacionam com suas clientes, como as classificam, estereotipam entre outros. Esta dissertação

procura ‘alongar’ o momento do encontro que, muitas vezes dura apenas minutos, a fim de

revelar a estrutura do encontro, a partir do ponto de vista da depiladora.

Fui obrigada a me deter e a focar em apenas uma categoria profissional, para que o

presente trabalho fosse possível. Escolher uma única categoria, um único âmbito de encontro de

realidades socioeconômicas significa, de certa forma, excluir diversas particularidades que

ajudariam numa visão mais ampla do objeto. Por outro lado, esta restrição possibilita o

aprofundamento e a compreensão mais densa da dinâmica da relação. A equação é óbvia. Se a

pesquisa perde em variedade, ela ganha em profundidade.

A questão da escolha pela categoria profissional foi pautada por duas diretrizes. A

primeira, a de que a relação deveria supor um profissional de baixa renda e um cliente de renda

superior. A segunda seria a de que o vínculo profissional não fosse responsabilidade direta do

(21)

finalidade. Por ser eu mesma uma freqüentadora de tais estabelecimentos, tal como já mencionei

acima, sempre me fascinou a atitude de algumas clientes de exposição de assuntos íntimos às

profissionais. Uma vez que a depilação é uma técnica embelezadora e que, muitas vezes,

propicia uma grande intimidade entre cliente e profissional, considerei-a particularmente

interessante para a presente dissertação. Além disso, o mercado de beleza no Brasil movimenta

milhões e está em constante crescimento. O Brasil é o terceiro país que mais gasta em produtos

de higiene e beleza, estando atrás apenas dos estados Unidos e do Japão. E em algumas

categorias específicas de produtos, como produtos de cuidados dos cabelos, cuidados do corpo,

química e coloração de cabelos, o Brasil é o primeiro da lista mundial6.

Minha intenção com esta dissertação foi transmitir ao leitor a sensação de estar dentro de

um instituto de depilação. Mais precisamente dentro de uma cabine de depilação, ouvindo uma

conversa entre cliente e depiladora que acontece na cabine ao lado. Assim reproduzo minha

sensação ao realizar as entrevistas. Curiosamente, os principais resultados da pesquisa foram

revelados através de histórias particulares. E assim resolvi mantê-los. Optei por escrever quatro

histórias romanceadas. Das histórias, nenhuma informação foi inventada. As informações foram,

no máximo, editadas. Histórias que aconteceriam em diferentes dias, passaram a acontecer em

um único dia, por exemplo. Entrevistei ao todo sete depiladoras. Quatro foram muito claras e

objetivas em seu jeito de lidar com as clientes. Resolvi transformar as quatro histórias nos quatro

principais capítulos, e complementá-los com as informações das outras depiladoras. Afinal, as

quatro histórias acontecem com praticamente todas as depiladoras entrevistadas, em maior ou

menor escala.

      

(22)

A estrutura narrativa me obriga a não só separar os momentos, como a colocá-los em

uma ordem. Mas é importante ter em mente que eles não acontecem de forma cronológica ou

lógica. O tempo todo me refiro a sentimentos e comportamentos das depiladoras que entrevistei

ao atenderem diversos tipos de clientes. Uma cliente, por exemplo, pode suscitar apenas um tipo

de comportamento, enquanto outra pode suscitar os quatro. A quatro histórias são as seguintes.

No primeiro capítulo “Da Indonésia a Duque de Caxias”, exponho o momento de identificação e

caracterização da cliente: como a depiladora define sua cliente, o que leva a uma maior ou menor

identificação e consequências. No segundo capítulo “Trocas Válidas”, abordo a troca entre

depiladora e cliente e a possibilidade de uma relação de igualdade. O terceiro capítulo é o

momento da entrega: “Uma Sobrancelha com Carinho e com Amor”.É o momento em que a

cliente ultrapassa qualquer limite de profissionalismo e considera a depiladora sua confidente. O

quarto e último capítulo retrata o momento de retomada de controle por parte da depiladora.

“Não pode Misturar as Coisas” é o momento em que a depiladora se recusa a assumir o papel de

confidente da cliente. Ela preserva seu profissionalismo que a coloca em posição de igualdade

dentro da cabine.

Sobre a observação e condições de realização das entrevistas

A pesquisa de campo consistiu em observação participante e entrevistas em

profundidade. Através da observação participante, tive acesso não só à dinâmica de

(23)

comportamento das depiladoras enquanto não estão atendendo as clientes. Mas foram as

entrevistas em profundidade que me permitiram entrar na intimidade da cabine de depilação.

Através das entrevistas, além de levantar dados pessoais das entrevistadoras, tais como

bairro de moradia, idade, composição familiar e atividades realizadas antes de se tornar

depiladora, pude investigar a forma de se relacionar com suas clientes. Algumas perguntas do

roteiro (que se encontra em anexo), foram: se depiladora e cliente se conheciam pelo nome, se

existia algum tipo de contato fora do instituto de depilação, quais eram as clientes preferidas e

quais as menos, se as depiladoras faziam algum tipo de classificação de suas clientes entre

outros.

O acesso às entrevistadas foi o mais fácil possível. Depois de uma infrutífera tentativa

de me aproximar de profissionais de baixa renda em um bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro,

resolvi apelar para o temível e detestável “você sabe com quem está falando?” tão estudado por

DaMatta e do qual tanto procurei fugir. No entanto, como explicarei a seguir, foi isto que me

possibilitou realizar minha pesquisa de campo. Utilizando os conceitos desenvolvidos por

DaMatta em A Casa e a Rua (1987), me aproveitei do meu status de “pessoa”, em oposição à

condição de “indivíduo”, lancei mão das minhas relações e utilizei meus contatos.

Considero relevante me alongar sobre as dificuldades e soluções encontradas durante a

pesquisa de campo. Este relato tem o objetivo de esclarecer, não só o motivo da escolha do

campo, como o lugar que eu ocupei enquanto pesquisadora, o qual, invariavelmente, vai

influenciar na interpretação dos dados obtidos e na condução da análise.

Conheço a proprietária de um instituto de depilação. Como mencionei, de início resisti

(24)

idealizado um trabalho “puro”, no sentido de que apenas eu seria a responsável por todas as

etapas da pesquisa. Não tinha dúvidas de que identificar um campo promissor, encontrar

informantes e ganhar sua confiança eram tarefas de minha responsabilidade, cuja realização

(com sucesso, claro) revelaria meu êxito como pesquisadora. Fruto, sem dúvida, da visão

romantizada da aproximação de Foote-Whyte com Doc e seus rapazes(2003), sonhei com o dia

em que seria “aceita” no campo. A mim seriam confidenciadas intimidades às quais outras

pessoas do meu meio não teriam acesso. Faria parte do mundo dos meus informantes. E com o

tempo, eles até mesmo ignorariam o fato de que não pertencemos ao mesmo meio. Agiriam

despreocupados da minha presença. Acreditei de forma sincera que isto aconteceria, até porque

não consegui imaginar de que outra forma seria possível realizar uma pesquisa etnográfica de

qualidade. Como poderia “acreditar” nas informações que me seriam passadas, tomá-las como

verdadeiras, se não estivesse até o último fio de cabelo imersa entre meus pesquisados? Como

saberia que não estariam dizendo algo em que não acreditam ou que não sentem? Ou que não

estariam me dizendo “tudo”, se não tivesse a certeza absoluta de que estariam me tratando como

uma deles? Foi com esta ingênua certeza debaixo do braço que fui a campo.

Frequentei durante um ano um salão de beleza localizado no bairro Maria da Graça, na

Zona Norte do Rio de Janeiro. Na época escolhi aquele salão por sua localização vizinha a uma

favela (a favela do Jacaré) e também por ser um salão de bairro, atendendo basicamente aos

moradores da redondeza. No início da pesquisa de campo ainda não estava certa sobre qual seria

o tema da minha pesquisa, mas como sabia que estudaria beleza e baixa renda, essas

características me pareceram fundamentais.

Optei por não identificar tanto o instituto de depilação no qual realizei minha pesquisa,

(25)

da Graça. Lá fui sempre fui muito bem acolhida, mas, algo curioso ocorreu. Me senti como uma

estrangeira no meu país, na minha própria cidade. Em Maria da Graça me inseri, ou melhor,

tentei me inserir em um mundo ao qual, claramente, não pertencia. Maria da Graça é um bairro

de classe média baixa. Seus vizinhos são os bairros do Jacaré, Del Castilho, Higienópolis e

Cachambi. O salão fica na Rua Miguel Ângelo, uma larga rua de mão dupla, com intenso

movimento de carros e ônibus. O interessante da localização do salão é a proximidade com

condomínios populares (condomínios financiados pelo BNH), com um comércio tradicional, e

com uma comunidade carente. E também fica a poucos metros de uma favela no asfalto com

barracos em tijolo aparente, um riacho tomado de lixo, alguns porcos e da subida do morro do

Jacarezinho. Além disso, há muitos usuários de crack perambulando pelas proximidades do

salão. Tudo isto parece caracterizar uma região não miserável, mas pobre.

Como comentei anteriormente, praticamente todos os freqüentadores do salão eram

moradores das proximidades. Os donos do salão, um casal, moravam a poucos metros do mesmo,

assim como seus clientes. Apesar de todos sempre terem sido muito simpáticos comigo, era claro

que, assim como eu estava interessada em observá-los, eles também me observavam. Assim, eu

era alvo de perguntas curiosas. É natural e esperado que o pesquisador seja alvo da curiosidade

dos pesquisados. No entanto, o ponto que me chamou a atenção foi o fato de eu me ver diante de

uma realidade que não era a minha e da impossibilidade de fazer parte da mesma. Não seriam

algumas visitas ao local de trabalho daquelas mulheres que fariam com que compartilhássemos

dos mesmos hábitos, dos mesmos programas, da mesma visão de mundo. Estava diante de

pessoas que tinham hábitos de consumo de bens, de mídia e de serviços diferentes dos meus.

Pessoas que tinham uma forma de interpretar o mundo diferente da minha. Uma diferença entre

(26)

educação e formação, a escolha do local de moradia, a qualidade dos bens e serviços

consumidos, o conhecimento de outros países, entre outros. Me diferenciava dos profissionais e

clientes do salão pelas roupas que vestia, pelos produtos que consumia, e pelas opiniões acerca

dos mais diversos assuntos. Por diversas vezes me vi numa classificação diferente da deles com

diferentes de hábitos de consumo, bairro de moradia, profissão... e me sentia um peixe fora

d’água. Na realidade, era eu quem era observada e analisada. Era eu que não pertencia àquele

local. Era como se tudo em mim denunciasse que não pertencia àquela realidade. E isto

acontecia, por mais que eu tentasse me despir dos símbolos que eu acreditava que me

denunciavam como pertencente a outro nível socioeconômico. Procurava me vestir com roupas

simples e antigas, aquelas que não utilizaria no meu bairro. Queria parecer que pertencia a uma

realidade diferente da minha, mas obviamente não consegui. Não era apenas o visual e muito

menos o tempo de uso das roupas que iriam me igualar a eles. Eu me vestia “diferente”, me

comportava “diferente”, falava “diferente”, meus gostos eram “diferentes”. Minha percepção de

roupas “simples e velhas” provavelmente era diferente das deles. E me perguntava o quê

exatamente em mim me “denunciava”. Hoje acho que era tudo. Mas penso que nunca saberei ao

certo. Sem dúvida não poderia reduzir as diferenças apenas à questão de recursos financeiros.

Obtive algumas dicas: eu não gostava de unhas decoradas, eu só pintava as unhas de esmalte

clarinho, eu só usava perfume importado... eram algumas projeções que faziam sobre mim. Sabia

que, por mais que tentasse, nunca iria fazer parte daquele grupo. Eram muitas as diferenças que

nos afastavam. Pertencíamos a mundos que, assim como Park tão bem descreveu já em 1916 em

A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano (1916), “se

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Durante minhas visitas ao salão, me alentava quando a televisão estava ligada. Uma

televisão antiga, grande e com uma grande mancha esverdeada do lado esquerdo. A televisão

disfarçava parte do abismo que nos separava e atenuava o desconforto da identificação que não

acontecia, da conversa que não progredia. Sentia-me tão desamparada e solitária como

Malinowski em sua iniciação no trabalho de campo na Nova Guiné: Imagine o leitor que, de

repente, desembarca sozinho numa praia tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu

material, enquanto a lancha ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista...

(1984:19). Pois era exatamente assim que eu me sentia, mas sem perspectivas de adentrar no

mundo nativo.

Na televisão, quase sempre ligada, assistia-se ao programa Mais Você da apresentadora

Ana Maria Braga e a telejornais da Rede Globo e da Record. Procurava atentamente nestes

programas assuntos que fizessem a ponte entre nossos mundos. Maffesoli em O Tempo das

Tribos (1987) ressalta o papel da mídia como mediadora na comunhão e identificação entre as

pessoas. As mídias confirmariam “o sentimento de participar de um grupo mais amplo, (...)

permitindo a expressão de uma emoção comum, daquilo que faz com que nos reconheçamos em

comunhão com os outros.” (1987:40). No meu caso, a TV era um santo remédio. Podíamos

conversar sobre qualquer assunto que passava nela. Ela funcionava como uma espécie de

mediadora das relações. Quando eu não estava perguntando na tentativa de satisfazer minha

curiosidade quanto às suas realidades de vida, a TV funcionava como uma terceira pessoa na

conversa. Além da TV, também falávamos sobre artistas e personalidades famosas: quem era ou

não viciado em drogas, quem estava namorando ou havia se separado de quem, qual seria a

opção sexual de fulano etc. Enfim, assunto básico de salão de beleza. Além da mídia, as revistas

(28)

Algumas vezes cheguei até mesmo a comprar produtos AVON na esperança de estreitar meus

laços com Ivone, a dona do salão.

Mas isto não quer dizer que não houvesse momento algum de identificação. Havia estes

momentos, mas tinha a absoluta certeza de que nossa relação estava fadada a existir somente

enquanto durasse o serviço de manicure. Afinal, em todas as visitas, me submeti a este serviço.

Esta sensação não era diferente da que tenho quando faço algum serviço estético no meu salão de

hábito. A relação que mantenho com minha depiladora ou manicure (serviços de estética dos

quais sou cliente com regularidade), apesar de parecer e ser muito íntima em alguns momentos,

se limita ao tempo de duração do serviço. Tal reflexão sobre a qualidade da relação estabelecida

no salão foi o ponto de partida para o presente trabalho.

Em nossa sociedade, marcada por forte desigualdade socioeconômica, a relação

patrão-empregado muitas vezes não se limita apenas a uma relação profissional de prestação de serviço

e pagamento pelo mesmo. Com frequência ela adquire generosas doses de pessoalidade. Não

raro patrão e empregado, ou cliente e prestador de serviço, conversam sobre suas vidas. No caso

de prestação de serviço de beleza, como acontece em espaços dedicados ao cuidado da beleza, é

muito comum que as clientes falem de suas vidas e revelem intimidades às prestadoras do

serviço. Em salões localizados em regiões cujos moradores e freqüentadores têm maior poder

aquisitivo, raramente vermos a prestadora de serviço expondo sua vida para. É mais comum a

cliente assumir esse papel, como se o pagamento do serviço incluísse, além do serviço em si,

também a disponibilidade dos ouvidos da profissional.

A relação entre profissional de beleza e cliente tem uma característica híbrida típica da

(29)

mas também nenhum dos dois. Não assumo que todas as clientes exponham suas vidas pessoais

às manicures, mas a relação da forma como a conhecemos permite que isso aconteça. Esta

característica de proximidade e pessoalidade presente de um modo geral nas relações

profissionais em nossa sociedade, a qual irei me aprofundar no decorrer do presente trabalho,

seria, segundo DaMatta (2001), fruto de um sistema marcado pelo trabalho escravo onde “as

relações entre patrão e empregados ficaram definitivamente confundidas.” (DAMATTA 2001:

32).

Assumindo o “meu lugar”

O que quis expor até aqui foi como cheguei até meu campo dentro de um instituto de

depilação, mas também como este caminho foi determinante na definição do objetivo da

pesquisa, e na análise das informações obtidas. Ao perceber minhas dificuldades de inserção no

salão de beleza em Maria da Graça, acreditei que poderia tirar proveito do estranhamento ao qual

fui objeto. Já que seria sempre a cliente, decidi assumir este lugar. Optei então por estudar a

relação a partir do lugar de cliente de nível socioeconômico mais alto e mudei geograficamente o

campo de lugar. Trouxe o campo para a Zona Sul do Rio de Janeiro. Em Maria da Graça percebi

a dificuldade em não possuir uma pessoa que servisse como ponte e me inserisse no campo. Na

Zona Sul, me inspirando em DaMatta, sou “pessoa”e tenho os contatos necessários que me

(30)

que estava falhando na tarefa de me inserir por conta própria no campo, como mencionei acima,

foi determinante para a conclusão do trabalho no período estipulado pelo curso de mestrado.

Entrei em contato com uma pessoa conhecida, dona de um instituto de depilação e lhe

expliquei meus objetivos. Num piscar de olhos o campo estava à minha disposição. No mesmo

dia as gerentes das lojas de depilação, uma em Botafogo e outra na Tijuca, foram informadas de

que eu iria conversar com as depiladoras. Simples assim!

O instituto de depilação é relativamente novo. Existe há cerca de cinco anos e já possui

grande movimento. Os preços e tipos de serviços realizados não diferem muito de outros

institutos de depilação espalhados pelo Rio de Janeiro. No entanto, por sua decoração que

considerei de muito bom gosto, eu o classificaria como um instituto voltado para as camadas

média e alta. As lojas são pintadas de cores marcantes, alternando branco com outras cores

fortes. Na sala de espera há uma grande televisão LCD presa à parede, e a oferta de revistas às

clientes é um grande diferencial. Ali pode-se encontrar títulos como Bazzar, Elle e Vogue.

Por questões administrativas internas, ficou decidido que eu iniciaria as entrevistas pela

Tijuca. A loja da Tijuca foi aberta recentemente. Realizei três visitas, de segunda à quarta feira e

pelas manhãs, quando o movimento é menor. A cada visita fiz uma entrevista. Cada uma delas

durou, em média, uma hora. Este também foi o tempo médio das de Botafogo. Ao todo foram

realizadas sete entrevistas, três na Tijuca e quatro em Botafogo. Apenas uma depiladora não quis

ser entrevistada. A recusa me pegou de surpresa porque seria a última entrevista que realizaria

em um campo sem percalços. A depiladora justificou a recusa com o fato de não gostar de falar,

(31)

essa recusa foi essencial para a minha compreensão da forma como as depiladoras encararam a

pesquisa.

Já na minha primeira visita notei que o campo fluiria sem grandes dificuldades, graças à

intervenção da dona do instituto. Cheguei à loja da Tijuca em uma segunda feira pela manhã. Me

apresentei à recepcionista, que já estava ciente da minha visita. Muito educada, me pediu que

aguardasse, pois iria avisar às depiladoras. Não sei o que foi passado para elas, nem como minha

visita foi explicada, mas não demorou até que minha primeira entrevistada se apresentasse.

Praticamente o mesmo aconteceu em Botafogo duas semanas depois.

A impressão de que as depiladoras não haviam tido a possibilidade de escolher se

queriam ou não participar da pesquisa me incomodou de início. Não gostaria que as entrevistas

tivessem o caráter obrigatório. Mas quando a última depiladora em Botafogo se recusou a ser

entrevistada, entendi que, por mais que uma ou outra pudesse ter se sentido pressionada a

participar da pesquisa pela mesma ter sido anunciada pela dona do estabelecimento, elas não

interpretaram como uma imposição.

Não acredito e não me iludo a respeito de uma possível ‘invisibilidade’ do entrevistador.

Mesmo se não abrirmos a boca e não dissermos nada durante a entrevista, o entrevistado sempre

fará alguma imagem sobre nós entrevistadores. Nossas roupas, nosso modo de sentar, a forma

como somos apresentados, enfim, diversos fatores vão falar sobre nós. O que falarmos e a forma

como seremos lidos e interpretados, só o entrevistado saberá. E certamente influenciará na

dinâmica da entrevista. Encaro esta inevitável influência da pesquisa qualitativa como positiva.

Empobrecemos os resultados de uma pesquisa quando ignoramos o lugar que o entrevistador

(32)

entrevistador, suas perguntas, suas reações quando é surpreendido por ações inesperadas,

informando ao espectador as condições de sua condução e realização, assim também eu me

incluo enquanto entrevistadora no cenário desta pesquisa. Os resultados seriam outros se eu não

fosse ‘a amiga da dona do instituto’? Provavelmente sim. Se eu fosse amiga íntima de uma das

depiladoras, certamente outras informações teriam surgido, outro tom seria dado ao que foi dito,

e a conversa poderia ter seguido um caminho diferente do que seguiu. Por acreditar que o lugar

que eu ocupei influenciou na dinâmica da entrevista e nas informações que foram transmitidas, o

presente trabalho também levará em consideração a minha presença.

Não procurei me tornar imparcial ou invisível diante das minhas entrevistadas, mas

procurei, sim, me aproximar delas anulando ao máximo a incômoda sensação de superioridade.

Estava ciente de que minha presença como ‘amiga da dona’ definiria, de certa forma, o rumo da

conversa. Mas não queria me afastar ainda mais das minhas entrevistadas. Esperava que, uma

vez iniciada a entrevista, elas relaxassem e conversassem comigo como fariam com uma pessoa

não muito distante. Para isso, fiz questão de chamar a entrevista de “bate-papo” ou “conversa”,

procurando despir o momento de formalidades. Esta busca intencional por aproximação nem

sempre funcionou. Logo na minha segunda entrevista a depiladora, ao me explicar onde mora,

diz: “Perto de Gramacho, sabe?”. “Não, não sei e há grande chance de que nunca venha a

conhecer Gramacho”, penso. A distância entre nós é latente e impossível de maquiar.

Considerei necessário explicar que a finalidade da pesquisa era minha dissertação de

mestrado, que não se tratava de nenhum tipo de teste, que tudo o que viesse à mente delas era

importante e que não havia “certo ou errado”. A fim de garantir o anonimato, assegurei que, caso

utilizasse alguma fala, elas não seriam identificadas e que a gravação servia apenas para meu

(33)

Também procurei a aproximação física no momento da entrevista. Era necessário que a

entrevista fosse realizada dentro do instituto ou em um local muito próximo, pois meu acordo

com as gerentes foi o de que faria uma pausa na entrevista sempre que alguma cliente entrasse na

loja. Na Tijuca, optei por não realizar as entrevistas dentro da loja, pois gostaria que a depiladora

pudesse pensar e falar sobre seu trabalho com algum distanciamento em relação a sua atividade,

local de trabalho e clientes. As entrevistas foram realizadas do lado de fora da loja. Em um banco

de madeira sentamo-nos lado a lado, mas viradas de frente uma para a outra, com o gravador no

meio aparado por um livro. Quando uma cliente chegava à loja, parávamos a entrevista e depois

retornávamos. Em Botafogo, devido à localização da loja, não foi possível realizar as entrevistas

fora dela. A sala da gerente, que só chegaria à loja na parte da tarde, me foi oferecida. Aceitei,

embora ciente de que este seria mais um símbolo da hierarquia, da qual eu estava procurando

fugir. E, ao invés de sentarmo-nos com a mesa entre nós, como em um ambiente profissional,

aproximei as cadeiras da quina da mesa, onde coloquei o gravador.

Além das explicações anteriores à entrevista, e da escolha de um local apropriado,

também me preocupei com minha aparência. A decisão sobre o que vestir ou não vestir, a fim de

não me distanciar demais das entrevistadas, foi por intuição. Procurei me vestir de forma

simples, de preferência com calça, blusa e tênis. E também procurei evitar assessórios. Em um

dia específico, precisava ir a outro local após as entrevistas. Como habitualmente costumo fazer,

usava uma echarpe no pescoço. Não saberia ao certo quais acessórios me identificariam como

pertencendo a uma classe mais alta do que a das entrevistadas. Mas como mencionei, por

intuição, chegando ao instituto de depilação, aquela echarpe definitivamente não me pareceu

apropriada. Rapidamente decidi retirá-la do meu pescoço enquanto já estava subindo as escadas

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muito chique “aqueles cachecóis” que algumas clientes suas usavam. Tenho minhas dúvidas

quanto a se ouviria isto se ainda estivesse com minha echarpe no pescoço.

As entrevistas de Botafogo também foram realizadas em três dias e, como mencionei, na

sala da gerente. É interessante notar que a sala em questão fica dentro do ambiente privado do

instituto de depilação. Normalmente em um instituto de depilação expressa existe o ambiente

público. Este, aberto às clientes, compõe-se da recepção, da sala de espera com toalete, e das

cabines onde é realizada a depilação. Mas existe também outro ambiente que é onde as

depiladoras esperam por suas clientes, onde elas podem socializar, descansar, utilizar o toalete,

assistir à televisão e lanchar. Naturalmente seguindo o padrão cultural ao qual estamos

vastamente acostumados, onde aos empregados são destinados os aposentos próximos à cozinha

e à área de serviço, também esse local fica nos “fundos da casa”. É neste mesmo local que a cera

é aquecida por uma zelosa funcionária, que mantém diversos canecos prontos com cera na

temperatura certa para serem utilizados.

A utilização desse local me possibilitou o ingresso no ambiente privado das depiladoras.

Entre uma pausa e outra, enquanto aguardava as depiladoras terminarem seus serviços, preferi

aguardar neste local e não na sala de espera, como se fosse mais uma cliente. Agora, enquanto

escrevo, cada vez mais me parece óbvio meu lugar de cliente. Lembro-me de que uma

depiladora, ao me ver sentada à mesa onde lancham e descansam, se surpreendeu e me sugeriu

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QUATRO HISTÓRIAS

1. Da Indonésia a Duque de Caxias - A história de Mari

Mari fala pouco, baixo e pausadamente. Tem vinte e sete anos, mas seu corpo um pouco

acima do peso e sua postura curvada fazem com que aparente ser mais velha. Mari tem duas

filhas, Jacqueline de dez anos e Daniele de oito. É casada há dez, desde o nascimento de

Jacqueline. Mari é evangélica e mora em Caxias “perto de Gramacho, sabe?” com o marido e as

filhas. Antes de casar Mari trabalhou em uma padaria e em uma sorveteria, mas depois do

nascimento das filhas virou dona de casa. Ajudava nas despesas da casa vendendo produtos de

catálogo para amigas e vizinhas. O marido de Mari é caldeireiro e encanador industrial, e

trabalha em turnos alternados a cada semana. Seu marido a ajuda muito em casa. Sempre que

pode leva as filhas à escola, mas não consegue buscá-las. Mari também não consegue, já que

demora cerca de duas horas no trajeto entre seu trabalho e sua casa. Sendo assim, conta com a

ajuda de uma vizinha que pega as meninas na escola todos os dias.

No tempo livre, quando o turno de seu marido permite, Mari gosta de ir ao shopping

passear com a família. O Caxias Shopping oferece uma grande variedade de lojas de vestuário,

calçados, artigos do lar, além de seis salas de cinema e praça de alimentação com diversas

opções de restaurantes e redes de fast food. No shopping Mari gosta de ir ao cinema e ao Mc

Donald’s. Mari também gosta muito de ir à praia, mas o esquema de turnos do trabalho atual de

seu marido não tem permitido que eles conciliem trabalho com a ida à praia nos finais de

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Há dois anos Mari percorre diariamente cerca de trinta quilômetros para chegar a

Botafogo, seu local de trabalho. Ela acorda pouco antes de seis horas da manhã. Enfrenta um

ônibus lotado com dezenas de trabalhadores que diariamente, como ela, deixam seus locais de

moradia na periferia do Rio de Janeiro e se dirigem à Zona Sul, onde trabalham. Na Zona Sul

encontram-se as principais praias, atrações turísticas, hotéis e restaurantes do Rio de Janeiro, e é

a região que tem o metro quadrado mais caro do Brasil. Diz-se, inclusive, que a cantora

Madonna e o estilista Valentino estariam em lista de espera para adquirir suas propriedades no

Leblon, definitivamente o bairro mais exclusivo da cidade.

Uma vez em Botafogo, pouco antes de oito horas da manhã, Mari entra em um típico

sobrado do final do século XIX ou início do século XX, onde fica seu trabalho. É uma

construção antiga, já um tanto descaracterizada devido às freqüentes e nem sempre cuidadosas

reformas que sofreu, mas que ainda mantém seu imponente estilo clássico e ar nostálgico. Mari

dá bom dia à recepcionista e se dirige aos fundos do sobrado, onde originalmente ficava a

cozinha, a área de serviço e uma área descoberta. Hoje, depois de inúmeras reformas, está tudo

coberto por telha de material transparente que deixa a luz do sol entrar. Lá Mari encontra

Patrícia, sua colega de trabalho. Patrícia também trabalha no turno da manhã. Denise, Rosi e

Andressa, as outras colegas de trabalho, só chegarão por volta do meio dia, quando começa o

turno da tarde. Elas ficarão no trabalho até as dezenove horas, fim do expediente. Mari e Patrícia

sairão às dezesseis horas.

Nos fundos do sobrado existe uma área comum, dois banheiros, uma mini cozinha e uma

despensa que também serve como vestiário. Mari troca sua roupa e veste seu uniforme de

trabalho. Enquanto isso, Patrícia está preparando café em uma pequena máquina na cozinha. O

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manhã, assim como todas as refeições, é tomado na pequena mesa redonda que fica no centro

desta área comum. Em um canto da sala há uma televisão pregada no alto da parede. A esta hora

a televisão está ligada no programa Mais Você da apresentadora Ana Maria Braga, que começa

às 8:15 da manhã. Mari e Patrícia assistem à televisão, tomam café e conversam enquanto

esperam a campainha que irá tocar anunciando a chegada de uma cliente. A primeira a atender

será Patrícia, pois chegou antes de Mari.

Após alguns minutos, novamente a campainha toca e é a vez de Mari. Mari se levanta,

lava as mãos, escova os dentes, se olha no espelho, ajeita seu uniforme retirando eventuais

migalhas de pão que possam ter caído em sua blusa e se dirige à recepção. Ao invés de entregar

apenas uma ficha, a recepcionista lhe entrega duas fichas. Mari reconhece os nomes, se trata de

mãe e filha que fazem questão de serem atendidas juntas. E dão preferência por serem atendidas

por Mari. Já conhecem e confiam em seu trabalho. Mari gosta quando isso acontece, quando as

clientes dão preferência ao seu serviço. Sente-se recompensada pelo bom serviço prestado. Se

não tivessem gostado do seu trabalho, não voltariam ou escolheriam ser atendidas por uma de

suas colegas de profissão. Além da gratificação de saber que realizou um bom trabalho, como

seu salário é composto basicamente de comissão, quanto mais clientes derem preferência a ela,

maior será seu salário.

Mari abre a porta da sala de espera, abre um sorriso no rosto e chama as clientes pelo

nome. Elas prontamente se levantam e cumprimentam alegremente Mari. Mari as dirige à cabine,

onde as três têm que se apertar. A cabine foi desenhada para acomodar confortavelmente uma

pessoa deitada na maca e uma pessoa em pé. Mas estas clientes fazem questão de serem

atendidas juntas. Mari sabe disso e não pode se opor. Com o tempo, ela passou até mesmo a

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Dentro da cabine Mari confirma o serviço solicitado, e orienta que a primeira a receber o

serviço deva se despir, deitar na maca e ficar “à vontade”, pois ela volta já. Ela sai da cabine para

pegar seu material de trabalho nos fundos do sobrado, no mesmo local onde toma café e assiste à

televisão enquanto espera suas clientes.

Quando Mari volta à cabine, a mãe já está deitada sobre a maca e a filha está espremida

em um cantinho, procurando não atrapalhar. A mãe está com a parte de baixo do corpo nu. Mari

orienta que ela abra as pernas e a mulher já sabe exatamente a posição em que tem que ficar. Já

está acostumada, uma vez que repete este serviço todos os meses. A posição se assemelha a de

um sapo, deitada de barriga para cima, com os joelhos abertos caídos para fora, e os pés unidos

pelas solas. Mari começa espalhando a cera quente pelas partes íntimas da mulher. Espalha em

mais de uma área, assim pode retirar a cera de uma área, enquanto espera que a outra esfrie. A

fim de se certificar de que a cera está no ponto de arrancar, Mari bate nela com os dedos. Se

grudar no dedo, deve esperar um pouco mais. Se não grudar, pode puxar. A cera é puxada

sempre no sentido contrário ao crescimento dos pelos, o que facilita sua saída. O puxão não deve

ser violento, mas também não pode ser muito suave, ou a cera fica grudada na pele. Cada

arrancar de cera é acompanhado pela cara de dor e por um gemido da cliente. Em geral o gemido

é baixo, mas às vezes ela grita. Mesmo assim, sofrendo de dor, a cliente não deixa de falar.

Especialmente com essas duas clientes o papo na cabine é animado. Mari, que não é muito de

falar, gosta especialmente de atender essas clientes. Elas falam bastante, contam muitas coisas, e

Mari ouve muito mais do que fala.

Mari gosta muito delas, as acha “meio doidinhas”. Elas falam de assuntos muito distantes

do dia a dia de Mari. Alguns assuntos que Mari gosta de ouvir são sobre “baladas”, bares e festas

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em quem. Mari também gosta muito quando falam sobre viagens. Aliás, este é um dos principais

motivos pelo qual Mari gosta de seu trabalho. Ela gosta de conversar com suas clientes. Gosta de

ouvir o que elas têm a dizer. E quando não conhece alguma coisa ou palavra que elas falam,

(afinal, ela ouve muita coisa nova com elas), Mari pergunta sem medo de parecer ridícula ou

ignorante. Sabe que elas responderão pacientemente.

Mãe e filha clientes contam sobre a viagem que acabaram de fazer a diversos países,

entre eles Indonésia e Índia. Mari, que nunca foi à Indonésia ou à Índia, ouve muito interessada.

Elas contam que compraram muitas coisas e que compraram especialmente muitas coisas dentro

do avião. Explicam à Mari que quando se compra dentro do avião, não existe “aquele negócio de

cota”. Ou seja, não existe limite de compras, e elas podem comprar muito mais do que se

tivessem comprado em outros países.

Terminada a depilação no corpo da mãe, é a vez da filha se deitar na maca. Este

procedimento de depilação do corpo é realizado mensalmente. A mãe tem quarenta e nove anos,

e a filha, dezenove. Já explicaram à Mari que gostam de fazer tudo juntas e, como a filha sente

muita dor na depilação, pede que a mãe a acompanhe para distraí-la e reconfortá-la. Na vez de

depilar a filha, é a vez da mãe esperar em pé no canto da cabine. A conversa continua animada.

Quando as duas já estão depiladas, se despedem de Mari lembrando-lhe de que em breve

voltarão para depilar a sobrancelha como, de hábito, fazem a cada quinze dias.

Mari arruma a cabine, volta aos fundos do sobrado e, enquanto aguarda outras clientes,

assiste à televisão. No horário de almoço, horário de maior movimento nos primeiros dias da

semana, chega a cliente preferida de Mari. A recepcionista informa que Mari está em

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profissional disponível. A cliente prefere aguardar. Senta-se na sala de espera e pega uma revista

para folhear. Olha o relógio tentando estimar quanto tempo terá livre para almoçar, e procura em

sua memória quais locais por perto oferecem a opção de um rápido almoço. O laboratório de

análises clínicas onde trabalha é bem próximo do instituto de depilação, e certamente encontrará

um lugar para comer. Apesar de ter que almoçar mais rápido do que gostaria, acha que vale a

pena esperar e ser atendida por Mari. Não que não vá gostar do serviço da outra profissional, mas

gosta de conversar com Mari e sabe que o sentimento é recíproco.

De fato, esta é a cliente preferida de Mari. A cliente mora perto de Mari, “três bairros

depois de Caxias”. Fico na dúvida se este depois é se aproximando ou se afastando do centro da

cidade. Mas não importa. O que importa é que Mari se sente próxima dela. Uma proximidade

não só geográfica, mas também de modo de pensar. A cliente, assim como Mari, também é

evangélica.

Depois que Mari termina o serviço que estava fazendo, se despede da cliente, arruma a

cabine, e chama sua cliente preferida com um sorriso mais do que sincero nos lábios. Uma vez

na cabine, o procedimento é como o das demais clientes. Mari confirma o serviço solicitado,

pede que a cliente se dispa e fique “à vontade” enquanto pega a cera e o material. Quando volta à

cabine, a cliente já está pronta e elas começam a conversar. O assunto, como de costume, é

(41)

O próximo e o distante

Mari lida com clientes próximas e distantes dela. E se sente, de formas diferentes, atraída

por ambas. As clientes distantes as fazem sentir algo novo. Com elas, através delas, aprende

coisas novas, entra em contato com um mundo ao qual não pertence. Se imagina numa festa

cheia de pessoas jovens e bonitas, sente o frisson que um novo namorado causa, viaja a lugares

exóticos, compra como quem não tem limitações financeiras.

Por outro lado, se sente acolhida por clientes que vivem realidades parecidas com a dela.

Clientes que moram perto dela, que provavelmente conhecem Duque de Caxias e Gramacho. E

não como eu, que conhecem Caxias apenas por ouvir falar. Clientes que falam o que ela quer

ouvir, falam sobre coisas que ela vive em seu dia a dia como, por exemplo, o caminho de Deus

que ela está trilhando. A não desigualdade fora do instituto entre Mari e suas clientes parece

reverberar dentro do instituto de depilação. Lá elas são, acima de tudo, vizinhas que

compartilham da mesma opção religiosa.

O trabalho no instituto de depilação permite que as depiladoras atendam uma quantidade

grande de mulheres. São cerca de dez a vinte clientes por dia, dependendo do dia da semana e do

clima. São clientes que pertencem a níveis socioeconômicos distintos, e têm as mais variadas

profissões, idades, cor de pele, estrutura familiar, jeito de falar etc. Como o serviço pode chegar

a durar uma hora, dependendo da área a ser depilada, e como a freqüência é mensal, é comum

que as depiladoras passem a conhecer suas clientes. Muitas vezes acabam conversando durante o

serviço. É comum que algumas clientes dêem preferência para uma depiladora específica e isso

(42)

Como as clientes são variadas, é comum que as depiladoras sintam maior ou menor

afinidade por elas. Como Mari nos conta, existe maior afinidade com a cliente que mora perto

dela. Têm a mesma religião, conhecem os mesmos lugares e as duas conhecem mais e melhor

uma a vida da outra. Por outro lado, Mari tem menor afinidade com as clientes que vivem na

Zona Sul. Estas vão a festas e baladas, namoram, viajam para lugares exóticos e contam de

poucas limitações financeiras. Isto não tem nada a ver com a vida de Mari, mas nem por isso

impede que ela goste de ouvir sobre o que é diferente. Essas clientes são simpáticas, educadas,

deixam Mari à vontade, explicam pacientemente tudo o que ela pergunta.

O trabalho da depiladora envolve estar em contato com realidades próximas e distantes

das dela. Assim como quando conhecemos alguém, uma imagem da cliente é formada à primeira

vista a partir de preconceitos que se têm sobre coisas. E, à medida que vai conhecendo as

clientes, vai gradativamente lapidando a imagem que criou delas.

Em meu primeiro dia de entrevistas fui à Tijuca vestindo minha tradicional roupa de

pesquisa de campo: tênis All Star branco, calça jeans velha e camiseta de malha. Também

troquei minha bolsa de couro por uma de lona. Quando comecei a fazer pesquisa de campo ou

entrevistas de mercado com pessoas de baixa renda, acreditava que, me vestindo assim, meus

entrevistados se sentiriam mais próximos de mim e, portanto, mais dispostos a falar. O mesmo

faço quando entrevisto pessoas de nível socioeconômico alto ou empresários, por exemplo. Saio

de casa como se fosse a um encontro de negócios ou trabalhasse em empresa. Verifico se minhas

unhas estão feitas e meu cabelo arrumado. Ninguém jamais me ensinou nada disso, mas minha

intuição me dizia que a entrevista seria mais proveitosa se pudesse me aproximar, mesmo que

aparentemente das pessoas. Isto para que elas me identificassem como pertencendo ao seu

(43)

Minha primeira entrevistada foi Janaína, talvez a depiladora mais experiente e sensível de

todas no lidar com as clientes. Ela passou por mim quando eu estava sentada na recepção

folheando uma revista. Fomos apresentadas pela gerente e tomamos um café juntas, em pé na

recepção, antes de iniciarmos a entrevista. Terminando a entrevista, perguntei a ela como

classificava suas clientes. Ela me disse que sabe que a cliente é da Zona Sul e de nível

socioeconômico mais alto pelo jeito como a mulher segura uma revista e folheia suas páginas,

pelo jeito como cruza as pernas quando está sentada, e pela forma delicada como segura a alça da

xícara de café com os dedos polegar e indicador. Ao listar símbolos de distinção (BOURDIEU,

2006), não preciso dizer que senti como se ela estivesse me descrevendo. Não foi naquele

momento que deixei de acreditar em meu disfarce de pobre, mas este evento certamente

contribuiu.

Percebi que as depiladoras, principalmente aquelas com menos experiência, procuram

classificar suas clientes. É uma atitude natural e muitas vezes involuntária, e que tem o objetivo

de saber com quem estão lidando. Clientes de nível socioeconômico mais alto, com certeza não

necessariamente, podem ser mais difíceis de lidar do que clientes mais próximas e parecidas com

elas.

O bairro de moradia e a profissão são sem dúvida alguma os maiores indicadores de nível

socioeconômico. Muitas depiladoras perguntam sobre isso às clientes para classificá-las. Essas

informações muitas vezes são utilizadas como categorias de classificação sócio-econômica.

Carla é uma dessas depiladoras: sempre pergunta o bairro onde as clientes moram. E acha que

suas clientes pertencem a uma classe social diferente da dela, afinal, muitas moram na Zona Sul.

Aqui a gente atende de faxineira a executiva da empresa x. (Patricia)

Referências

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