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Um andarilho [desnudo] colocando o corpo na pista

Como pesquisar um fenômemo como a prostituição, que está taticamente invisível, tacitamente ocultado na geografia da cidade? Como reconhecer os fluxos, as linhas e os códigos que compõem e atravessam tais territórios por onde o sexo pode ser negociado como uma mercadoria? Seria possível experimentar essas margens que desterritorializam códigos econômicos, sexuais e eróticos e os reterritorializam e os atualizam em outras modelizações? Certamente não se trata de se buscar uma representação acabada do que se passa nos fluxos do mercado do sexo, mas de acompanhar alguns movimentos que se pode tatear, testemunhar, flertar. Reconhecendo meu limitado acesso

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aos territórios existenciais que se produzem no contexto que busquei problematizar (haja vista meu lugar de fala enquanto sujeito não trabalhador do sexo), as cartografias que se desenharam nessa tese se situam nas adjacências de universos visíveis, veiculados por regimes de visibilidade pelos quais se pode acessar a prostituição (ainda que de forma discreta), como se pode observar na internet (sites, blogs, salas de bate-papo), nas ruas e em determinados espaços públicos; como de universos micropolíticos, que não são imediatamente representáveis pelas narrativas dominantes sobre a prostituição e sobre os sujeitos envolvidos nela, mas se efetivam nos encontros, nas práticas, nos erotismos performatizados, nas negociações invisíveis nas ruas, nas performances corporais nas saunas e nos espaços de subjetivação onde o sexo comercial ocorre. Essa pesquisa, portanto, localiza-se no interstício de um campo molar, que considera o campo político e discursivo a partir do qual os sujeitos são nomeados, interpelados e produzidos como supostos “sujeitos da prostituição”; e um campo molecular, onde encontramos movimentos singulares, contra-narrativas e processos que tensionam lógicas morais, seja através de subversões de normas que prescrevem os “bons usos” que se deve fazer do corpo, ou através da reiteração de lógicas normativas que se recodificam a partir de outros sistemas, nem sempre tão subversivos assim.

Para responder à pergunta sobre como proceder com essa aposta de investigação, tomei como estratégia lançar meu próprio corpo na experimentação dos afetos eróticos mobilizados em situações onde o sexo é negociado comercialmente. Assim, busquei “habitar como um andarilho”40

territórios que são tidos como espaços onde tradicionalmente se pode encontrar homens trabalhando com prostituição. Conhecer esse universo e se afetar por ele durante o doutorado foi um processo gradual de tatear essas margens e ir, aos poucos, explorando melhor essas realidades que busquei acompanhar. É importante salientar que os “temas” relativos à prostituição masculina eram necessariamente “novos” para mim. Em minha experiência pessoal como sujeito que se localiza como gay e que freqüenta diversos

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A aparente contradição da expressão “habitar como um andarilho” é usada aqui de forma proposital. A ideia de “habitar algo” nos remete a uma ação fixa e estática, pois como sujeitos não-nômades estaríamos sempre agarrados aos territórios que nos são familiares. Já a figura do “andarilho” sugere movimentos e deslocamentos. “Habitar como um andarilho”, portanto, sugere a possibilidade de estar e circular por certos territórios sem necessariamente se fixar nesses espaços, como um flâneur que caminha e experimenta novos territórios.

territórios de sociabilidades gays, em variados contextos, o tema da prostituição masculina e dos mercados do sexo em geral não é algo tão distante como possivelmente se pode supor, pelo menos entre os espaços pelos quais já perambulei. Entre grupos de amigos e conhecidos o imaginário sobre os “boys” circula de maneira muito habitual. “Aquela sauna é de michê?”. “A bicha tá trabalhando de boy agora!”. “O viado tá fazendo a linha boy pra juntar uma grana”. “Naquele parque tem pegação, mas também rola muito michetagem por lá”. “To ‘laica’, acho que vou fazer michê!”. “Ouvi dizer que ele foi pra São Paulo e tá fazendo programa”. “To precisando de ‘aqué41’, acho que vou vender meu corpo”. Essas são frases comumente ouvidas entre alguns círculos de homens gays com os quais já tive e tenho contato. É certo que essas falas, dependendo do contexto, carregam um tom de humor e não necessariamente estão expressando algum fato ou intenção, mas a questão é que, ainda que de modo jocoso, a figura do garoto de programa habita o imaginário de certos grupos e circuitos gays/homossexuais urbanos.

Essas experiências prévias me proporcionaram, até certo ponto, um olhar privilegiado sobre algumas questões que favoreceram o reconhecimento de códigos e o conhecimento sobre o acesso a territórios específicos (como as saunas gays). A experiência localizada de um pesquisador (HARAWAY, 1995; HARDING, 2015), nesse caso específico de um pesquisador gay e homem cisgênero, é importante a ser considerada, pois ela pode também funcionar como um analisador reflexivo sobre a inserção do cartógrafo em campo. Como homem cisgênero, reconheço que possuo alguns “privilégios” que me permitiram circular por determinados espaços e territórios de forma relativamente segura e autorizada. Um exemplo disso, é que pude caminhar sozinho, inúmeras vezes, nos finais de tarde e à noite, pelas ruas do centro velho de Florianópolis e pela praça central da cidade para observar algumas movimentações de garotos de programa que circulavam pela região. Nessas caminhadas, tive a oportunidade de me aproximar, conversar e interagir com eles. É sabido, como denunciam diversos movimentos feministas, que os espaços públicos, sobretudo à noite, oferecem riscos às mulheres que “ousam” caminhar sozinhas. Uma mulher que circula desacompanhada à noite no centro de uma cidade é frequentemente assediada e moralizada e sua reputação pode

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No Bajubá ou Pajubá, linguagem usada entre grupos LGBT que combina diversas palavras de algumas línguas africanas e da língua portuguesa, a palavra aqué significa “dinheiro” e laica significa “pobre, sem dinheiro”.

ser colocada em “dúvida”, especialmente se estiver usando “roupas curtas demais” diante de certas vigilâncias de uma moral sexista. Desse modo, ser socialmente lido como homem cisgênero me confere privilégios para, por exemplo, caminhar à noite com uma margem de segurança no centro de uma capital para fazer observações em pesquisas de campo.

Outro ponto importante sobre ser um homem cisgênero fazendo pesquisa sobre prostituição masculina, é que eu pude ter acesso inquestionado às saunas, locais privilegiados para a prática da prostituição. As saunas42 (e aqui me refiro às chamadas saunas gays que funcionam como espaços de interações sexuais entre homens) são espaços de e para homens. Mulheres cisgêneros e transexuais e travestis43 não podem entrar nesses locais, pois há uma lógica de que esses espaços seriam exclusivos para a interação sexual entre homens (cisgêneros). Nesse sentido, muito provavelmente uma mulher que se propusesse a realizar uma pesquisa com tema semelhante ao meu, encontraria dificuldades que se colocariam justamente por causa de sua identidade de gênero. Não quero dizer com isso que mulheres não poderiam realizar uma pesquisa sobre prostituição masculina, como já fizeram Barreto, Silveira e Grossi (2012). Apenas sinalizo, no entanto, que o acesso a determinados territórios, como as saunas, seria vedado a elas, de modo que não seria possível circular por esses espaços. De modo semelhante, um homem heterossexual que não estivesse familiarizado com certos códigos que circulam em territórios ditos “gays”, provavelmente também se sentiria mais estrangeiro em sua interação com o campo.

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No capítulo 4 desenvolvi uma discussão mais aprofundada sobre a dinâmica do trabalho sexual dentro das saunas.

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Apesar das saunas restringirem o acesso unicamente aos homens cisgêneros, em algumas saunas que frequentei durante a pesquisa pude observar a presença de pessoas trans. Nesses casos, essas pessoas estavam sempre acompanhadas por um grupo de outros homens e pareciam precisar se “comportar” de uma forma que suas travestilidades e/ou transexualidades não ficassem tão evidentes aos olhos do público em geral. Para isso, notei que sempre estavam mais cobertas e/ou vestidas do que os outros (cobrindo os seios siliconados), não acessavam as partes da sauna onde ocorriam interações sexuais, e circulavam mais nas “áreas comuns” do estabelecimento, como o bar. Algumas saunas possuem espetáculos de drag-queens e também empregam travestis na recepção da casa e/ou nos serviços de limpeza. Nesses casos, pessoas trans acessam a sauna por exercerem algum tipo de trabalho (não sexual) no interior desses espaços, o que é muito diferente de transitar neles como clientes.

Dois elementos que dizem respeito a minha posição de sujeito, portanto, foram importantes para o traçado das cartografias dessa tese: o fato de eu ser um homem cisgênero que possui o privilégio de acesso autorizado aos espaços públicos (espaços esses que estão historicamente delimitados por relações de poder que autorizam o masculino e interditam o feminino); e a minha experiência enquanto sujeito que se reconhece como gay (ainda que eu considere o caráter ficcional e performativo dessa categoria identitária, distante de qualquer essencialismo ontológico), e que possui certa vivência por entre traçados marginais nos espaços urbanos. Essas vivências facilitam o reconhecimento de locais de “pegação”, a intimidade com certos códigos-território (PERLONGHER, 2008), o conhecimento sobre o funcionamento e dinâmica de saunas gays, a familiaridade com territórios de sociabilidades, entre outros “saberes menores”.

Para Preciado (2008b), esses elementos produzem uma dupla situação que traz alguns efeitos para uma cartografia queer:

[...] la doble situación de habitante legítimo del espacio público (por su condición masculina) y de cuerpo marginal sujeto a vigilancia y normalización (por su condición homosexual) convierte al sujeto gay en un hermeneuta aventajado del espacio urbano: “el gay puede ser entendido como un flâneur perverso que pasea sin rumbo determinado por la ciudad en busca de novedades y acontecimientos. Su experiencia le convierte en un privilegiado observador que todo lo ve y todo lo conoce de una ciudad que parece no tener secretos para él... el gay penetra más allá de la superficie y descubre el carácter oculto de las calles, convirtiéndose en un intérprete de la vida urbana (sobre todo nocturna).

Destaco esses pontos sobre minha posicionalidade como pesquisador gay não por acaso. Considero de fundamental importância analítica e problematizadora localizar-me como sujeito que também está imerso e atravessado por interpelações identitárias que não podem ser menosprezadas ou ignoradas quando, por exemplo, circulo em uma praça pública onde ocorrem negociações de sexo comercial entre homens ou quando adentro em uma sauna gay. Levar em consideração minhas identidades, os modos como sou socialmente lido e percebido, meu corpo e os meus gestos também foi uma ferramenta importante para a análise dos agenciamentos que se compunham nos territórios por onde

circulei. Ao estar atento a essas dimensões, busquei não ignorar os efeitos produzidos a partir dos encontros no campo, como por exemplo, os códigos invisíveis que se fazem entender nas comunicações sexuais entre boy-cliente, a excitação sexual que tais encontros podem produzir (haja vista as frequentes investidas de vários garotos para que eu pagasse por um programa) e até mesmo relações de amizade que surgiram em algumas ocasiões. Procurei, portanto, não me colocar como um cartógrafo desencarnado que se abstrai de sua própria posição identitária e que procura uma posição neutra, como criticou Preciado (2008b) ao problematizar as possibilidades de se traçar cartografias queer.

Ao considerar os pontos destacados acima, pude, aos poucos, acessar e conhecer (mesmo dentro dos limites do que seria esse “conhecer”) algumas práticas, performances, negociações, itinerários, regras, narrativas, projetos e estratégias que circulam nos territórios por onde a prostituição masculina se exerce. Meu percurso de pesquisa durante o doutorado foi se desdobrando aos poucos, pelas “beiradas”, na medida em que eu fui me deixando afetar mais pelo tema das minhas investigações.