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Um exemplo de aplicação do modelo de análise

Como exemplo de aplicação do modelo apresentado na tabela 1, proponho a análise de um caso bastante afastado do que conhecemos como livro: uma inscrição pública em fachada de edifício. A figura 2 mostra a epígrafe arquitetônica —uma inscrição contendo o nome dos engenheiros-arquitetos responsáveis pelo projeto— encontrada na fachada do edifício Anhembi, localizado no número 64 da Rua Senador Feijó, no centro histórico da cidade de São Paulo, próximo à Praça da Sé.

Este tipo de inscrição é tão recorrente na área central da capital paulista que poderíamos considerar a própria cidade como ‘volume,’ e cada um dos edifícios como ‘páginas.’12 No entanto, para restringir a análise a limites pertinentes aos objetivos deste

12. A pesquisa sobre epígrafes arquitetônicas como elementos da paisagem tipográfica da cidade, da qual o exemplo aqui proposto foi extraído, toma as cidades como ‘volumes,’ tendo em vista análises comparativas sobre a presença deste tipo de inscrição em diversas localidades (Gouveia et al. 2008, Farias et al. 2012a e 2012b).

artigo, será suficiente designar como limite macroscópico o edifício, e como limite microscópico as letras em sua fachada.

Figura 2. Epígrafe arquitetônica encontrada na fachada do edifício Anhembi, no centro histórico da cidade de São

Paulo (foto por Patrícia Gatto).

A fotografia em alta resolução reproduzida na figura 2 permite apreciar aspectos materiais e de produção da inscrição (o fato de ser gravada em baixo relevo em granito, por exemplo). Uma análise dos níveis mais microscópicos de sua dimensão sintática, porém, requerem outro tipo de visualização, com maior detalhe e contraste, como a da ilustração vetorial reproduzida na figura 3.

Analisando as letras na figura 3, podemos observar, no que se refere à dimensão sintática, que são formas baseadas em módulos geométricos, produzidas através de processo de letreiramento (gravação); com estrutura de letras maiúsculas do alfabeto latino; que são robustas em relação ao peso; eretas em relação à inclinação; e que algumas (por exemplo, as letras U e E da primeira linha) são condensadas em relação à proporção altura/largura.

Em relação à dimensão semântica das letras, além do valor fonético e alfabético de cada uma, podemos notar que a velocidade implícita nas formas é lenta, e que há uma valorização da expressividade em detrimento da legibilidade. As formas fazem clara referência à cultura visual art déco, em voga na década de 1930, quando o edifício foi construído, sinalizando refinamento e domínio de ferramentas geométricas por parte de seu produtor.

No que diz respeito à dimensão pragmática, entre os efeitos e conseqüências da presença destas letras na paisagem urbana da cidade podemos destacar sua baixa visibilidade (devido ao baixo contraste entre figura e fundo), e sua contribuição na construção de uma imagem de modernidade e sofisticação para São Paulo. Isso pode ser dito

também em relação à palavra e ao texto da epígrafe. Ainda na dimensão pragmática, podemos observar que, como conseqüência de seu modo de produção (letreiramento), as letras na inscrição não são idênticas (há, por exemplo, variações de proporção no desenho do ‘E’ nas 4 primeiras linhas).

Figura 3. Versão vetorial de epígrafe arquitetônica encontrada na fachada do edifício Anhembi (ilustração por

Thiago Pacheco).

Passando ao nível da palavra, na dimensão sintática podemos observar que todas aquelas encontradas na epígrafe arquitetônica do edifício Anhembi são formadas por letras segmentadas, e que a distância entre caracteres é uniforme e regular. O mesmo não pode ser dito em relação ao texto, já que há uma certa inconsistência de espaçamento entre palavras na primeira linha. Também podemos observar que, com exceção do ‘o’ de ‘architectos,’ as palavras são compostas por letras do mesmo tamanho. Ao nível do texto, há variações de tamanho entre as palavras, sendo que as maiores são usadas para os nomes dos engenheiros-arquitetos Nelson Luiz do Rego e Samuel Roder. Há também variações no alinhamento do texto, predominando a sensação de um conjunto de linhas blocado (alinhado tanto à esquerda quanto à direita) somente graças à inclusão de fios e ornamentos.

No que diz respeito à palavra e ao texto, uma reflexão sobre a dimensão semântica da inscrição aponta para o prestígio do nome dos engenheiros-arquitetos, indicado pelo uso de letras maiores. A relevância do uso de concreto armado na edificação é indicada pelo uso de letras ligeiramente maiores do que as da linha anterior, e pela inclusão de ornamentos ao redor desta expressão. Estes ornamentos, curvilíneos e assimétricos, contrastam com o tom modular e contido das letras. A abreviação de engenheiros (‘engs’) contrasta com o uso por extenso da expressão ‘architectos,’ indicando que Rego e Roder talvez se considerassem

mais artistas do que técnicos, e que a inscrição foi executada antes da reforma ortográfica de 1943.

Passando à dimensão pragmática, além das observações sobre visibilidade e modo de produção feitas acima, podemos acrescentar que a presença de textos como este nas ruas da cidade fornecem aos cidadãos informações sobre autoria do patrimônio construído e configuração da paisagem urbana que de outra forma seriam difíceis de obter. Não por acaso, em algumas cidades como Barcelona (Espanha), Manizales (Colômbia) e, mais recentemente, Rio de Janeiro, há esforços feitos pelo poder público para incluir informações sobre autoria do projeto e ano de construção na fachada de edifícios. Outras conseqüências da presença destes textos no espaço público são o fornecimento de evidências sobre a atuação de arquitetos e construtores, muitas vezes desconsiderados pela historiografia corrente (a epígrafe arquitetônica em análise é um exemplo disso), e sobre a formação de um sentimento de classe profissional em momentos de regulamentação ou de debates sobre a profissão de arquiteto.

Avançando para o nível da ‘página,’ devemos considerar a interação entre blocos de texto e outros elementos visuais em um formato com certos limites. Neste exemplo de aplicação do modelo de análise, tomaremos como nível macroscópico intermediário (‘página’) a portada ou entrada principal do edifício Anhembi, delimitada pelas colunas ao lado da porta e o beiral no topo dela (figura 4), e no nível macroscópico maior (‘volume’) o próprio edifício (figura 5). Neste sentido, outros andares, empenas, ou mesmo espaços internos do edifício poderiam ser considerados como outras ‘páginas’.

Figura 4. Entrada principal do edifício Anhembi (foto por João Bacellar).

Do ponto de vista da dimensão sintática, dentro do espaço delimitado da portada do edifício, a epígrafe arquitetônica (localizada próxima ao limite superior e ao centro da placa de granito escuro aplicada ao lado direito da porta) interage somente com um outro elemento

gráfico verbal (o nome do edifício), e com uma série de outros elementos visuais formados pela porta e pelos ornamentos arquitetônicos associados à fachada e à portada.

Em relação à dimensão semântica da tipografia presente na entrada principal, o valor sonoro ou ‘tom de voz’ associado ao nome do edifício é muito mais alto e assertivo do que aquele da epígrafe arquitetônica. Ambas as inscrições tem caráter perene, e usam materiais que as valorizam. O baixo contraste e a dimensão modesta da epígrafe arquitetônica exigem do leitor uma postura atenta, algo que não ocorre com o nome do prédio. Do ponto de vista pragmático, o efeito do conjunto reforça as idéias de geometria, modernidade e sofisticação identificados ao nível da letra, palavra e texto.

A presença de outras inscrições, bem mais assertivas, de ambos os lados da portada, assim como a pixação com giz de cera no topo do painel de granito, competem por atenção e reduzem o valor sonoro da epígrafe arquitetônica, fazendo com que sua narrativa de qualidade e sofisticação se perca na cacofonia da cidade.