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As descrições apresentadas ao longo desse item apresentam análises já tecidas no texto “Interseccionalidade categorias articuladas a experiências de trabalhadoras em contexto de Pandemia de COVID-19” de Barbosa; Paiva (2020), articulado aos desafios enfrentados ao investigação sobre olhar interseccional, junto ao grupo de trabalhadoras em contexto de deslocamento entre o campo e a cidade no contexto da comunidade de Capela.

A interseccionalidade, enquanto instrumento teórico-metodológico de análise da intersecção de marcadores sociais nos estudos feministas contribui para entender e evidenciar a transversalidade e interação de diferentes linhas e estruturas de dominação sobre a articulação de gênero, classe, raça, território, dentre outros marcadores identitários. Por consequência, essa categoria/ferramenta epistemológica corrobora para olhar o cruzamento de diferentes marcadores identitários e a complexidade de relações de poderes que concebe as trajetórias e experiência constituídas por indivíduos e grupos.

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriacado - produtores de avenidas identitária onde mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classes modernos aparatos coloniais (AKOTIRENE, 2018, p.14).

A investigação sobre a premissa da interseccionalidade consiste em compreender o cruzamento de múltiplas relações de poderes imbricados em sistemas e estruturas sociais que repercutem nos diferentes campos (BOURDIEU, 1998), experienciados por indivíduos e grupos. As relações de poder transcendem o público e privado, o individual e coletivo que diante do contexto de intersecção de diferentes sistemas de dominação consiste em

produção e reprodução de desigualdades sociais, perpetuada em todas as dimensões, seja econômico, social, cultural, político, religioso, dentre outras.

O marco da origem do termo interseccionalidade reside no movimento afro- americano. mais propriamente ligado ao movimento Black Feminism, por intermédio da jurista Kimberlé W. Crenshaw, ao designar a interdependência de relações de poder no que tange a questões de gênero, raça e sexo. Embora ancorado ao movimento feminista, a categoria tem por horizonte reconhecer e entender a “diferença, diversidade, diferenciação” (BRAH, 2006) de mulheres nos distintos contextos culturais de diferentes territórios.

A interseccionalidade traduz a tentativa epistemológica de distanciar-se do olhar essencialista e universalista que atribui-se aos estudos de gênero, tendo em vista que as análises a partir da perspectiva interseccional pondera acerca das especificidades e heterogeneidade presente, ao investigar as diferentes realidades sociais experienciadas a partir transversalidade de marcadores de gênero, classe, raça e sexualidade. Portanto, em conformidade com Bhah (2006), nessa perspectiva teórica, as desigualdades não estão descontextualizadas das disparidades sociais vivenciadas em níveis nacionais e internacional.

Dessarte, pode-se concluir que a interseccionalidade enquanto pressuposto teórico- metodológico propõe-se a dar visibilidade a experiências de indivíduos e grupos com relação à transversalidade de relações e interação de “sistema de opressão interligado”, composto pela junção do capitalismo, racismo e sexismo.

Quando tem a pretensão de entender a realidade de trabalhadoras em contexto de deslocamentos pendulares torna-se indispensável refletir acerca da interação de identidades sociais que refletem as raízes histórias e socioculturais a respeito da supremacia cisheteronormativa.

Tecer uma investigação sobre a realidade das mulheres da comunidade a partir do olhar interseccional institui-se como desafio etnográfico, pois enquanto teoria interpelada porinterações de identidades individuais e sociais. Neste sentido, é preciso que as interlocutoras identifiquem em termo de gênero, classe, raça e sexualidade, sendo esse reconhecimento individual, sobre o horizonte dessa perspectiva o questionário (em anexo 1) aplicado entre três trabalhadoras questionava a respeito da identidade de gênero e raça (esse questionário aplicado considera o princípio da autodeclaração, seguindo a definição descrita por Osório (2003), no texto, “ O sistema classificatório de ‘cor ou raça’ do IBGE). Demonstraram a uniformização e consenso entre identificarem racialmente enquanto

mulheres pardas, sendo consenso entre as mulheres o entendimento de morena como sinônimo de parda, e esse reconhecimento independe se a mulher é mais ou menos retintas.

Em alguns momentos de investigação percebia que o termo moreno, morena, moreninho e moreninha era usual nas falas para evitar as palavras: negro/a ou preto/a. Por vezes, as mulheres e homens afirmavam que chamar alguém de negro/a ou preto/a significa ser está sendo preconceituoso e racista. Em conversa alguns moradores/as refletiam frases racistas como “negro não sou, pois negro são aqueles com cor de carvão que só os dentes são brancos”. Para Osório (2003) o obstáculo para pesquisa de auto atribuição está na variação da cor, tendo em vista que a

extensa literatura disponível sobre o assunto, a despeito das ênfases diferenciadas em classe ou raça, é unânime em afirmar que a ascensão social pode embranquecer, havendo copiosos exemplos do fenômeno. Sabendo-se que, à luz do ideal de brancura vigente, é de se esperar que as pessoas que carregam menos traços negros em sua aparência tendam a se considerar brancas, e que essa tendência varia de acordo com a situação socioeconômica, com as pessoas mais abastadas também tendendo à escolha do branco, o fato de a classificação de cor ser realizada por auto- atribuição pode se afigurar problemático. Se, por exemplo, a grande diferença nas médias da renda domiciliar per capita de negros (pretos ou pardos) e brancos for considerada, poder-se-ia perguntar quanto dessa diferença, na verdade, dever-se-ia ao fato de a reivindicação da brancura ser maior entre os mais ricos e menor entre os mais pobres. (OSÓRIO, p. 13,2003)

De acordo com Osório existe similaridades entre pretos e pardos no que referente à realidade socioeconômica, sendo esse fruto das marcas da negritude presente entre os dois grupos. Ter o olhar acerca do questões referentes a questões étnicos-raciais tornou-se o principal obstáculo para avaliar a interconexão de relações entre os marcadores de gênero, classe e raça. Essa dificuldade enfrentada na comunidade de Capela reflete o problema sócio- histórico do Brasil, onde racismo e colonialidade são os eixos estruturantes que resultam no afastamento cultural de parcela significativa da população brasileira do reconhecimento (HONNETH, 2003) da população negra e indígena.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio Continuo – PNDA - do ano de 2016 do IBGE – apontou para crescimento da população brasileira em 3,4% entre os anos de 2012- 2016, chegando no período a 205,5 milhões de habitantes. Essa pesquisa também evidenciou a queda de pessoas que se autodeclaram brancos em contrapartida à ampliação de número de brasileiros/as se reconhecem enquanto pardos.

brancos/as com a queda 1,8%, em 2016 passou ao percentual de 44,2%, chegando a 90,9 milhões. Em contrapartida, levando em conta os respectivos anos houve a ampliação de 6,6% de pessoas que autodeclarada parda passando assim de 45,3% para 46,7%, totalizando 95,9 milhões. O crescimento de pretos representou 14,9%, indo de 7,4% para 8,2%, população estimada em 16,8 milhões. (ver detalhes no gráfico abaixo).

Gráfico 2 - Distribuição da população, por cor ou raça no Brasil – 2012 -2016

Fonte e elaboração: IBGE - Diretoria de Pesquisa – DEP (2017)

Ao longo desse texto não tenho pretensão em ser fiscal de pretitude, no entanto, como essa questão apresentou-se ao longo da pesquisa empírica, tornou-se desafio sistemático de debater acerca de questões a respeito da luta pelo reconhecimento ou relações étnico-raciais no pensamento contemporâneo (HONNETH, 2003).

No primeiro capítulo dessa dissertação descrevo sobre a formação da comunidade e população que originou a Comunidade, sendo essa composta hegemonicamente por negros e camponeses. A realidade da miscigenação brasileira que reflete no contexto do campo empírico, nessa conjunção a adoção do termo parda como identidade racial parece ser a melhor saída para autodeclaração das interlocutoras.

Sobre a miscigenação no Brasil Carneiro (2011, p.64) afirma que

vem desde os tempos da escravidão a manipulação da identidade do negro de pele clara como paradigma de um estágio mais avançado de ideal estético humano que todo negro de pele escura deveria perseguir

diferentes mecanismos de embranquecimento. Aqui, aprendemos a não saber o que somos e sobretudo o que devemos querer ser. Temos sido ensinados a usar a miscigenação ou a mestiçagem como uma carta de alforria do estigma da negritude: um tom de pele mais claro, cabelos mais lisos ou um par de olhos verdes herdados de um ancestral europeu são suficientes para fazer alguém descendente de negros, se sentir pardo ou branco, ou ser ‘‘promovido” socialmente a essas categorias. E o acordo tácito é todos fazermos de conta que acreditamos.

Dados do IBGE (2018) “Desigualdade Sociais por Cor e Raça”, sintetiza as posições de ocupadas por mulheres, pretas e pardas no campo profissional, demostram que pretas e pardas ocupam 29,9% dos cargos de gerenciais. No tocante a salários, se comparados aos gêneros, mulheres recebem 44,4% a menos que homens brancos. Em uma escala de remuneração referente a níveis salariais, se considerando gênero e raça no Brasil apresenta a seguinte hierarquia: homens brancos, seguidas por mulheres brancas e negros, pardas e negras.

A realidade apresentada no parágrafo anterior reflete a desigualdade estrutural interseccionada por relações de poder de gênero, raça e classe. Sobre essa conjuntura as posições ocupadas por mulheres independem do nível escolaridade, pois cargos e profissões ainda estão ancorados em padrões de gênero, classe e raça. Neste contexto, cargos e profissões aparentemente respeitam estereótipos pré-estabelecidos.

As disparidades e dificuldades no mercado de trabalho independem do nível escolaridades de mulheres, negros e pardos. Tendo em vista que essa realidade no Brasil refletem a fusão de sistema capitalista, bem como sistemas precedentes como escravocrata e patriarcal. De acordo com Saffioti (1987, p.60)

Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração [...]. Só mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-se separar estes três sistemas. Na realidade concreta eles são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denominado patriarcado-racismo- capitalismo.

A interpretação de Saffioti (1987) considera a inter-relação de sistemas de dominação- exploração. A interseccionalidade como ferramenta investiga de que forma os sistemas refletem o cruzamento desses sistemas não são meramente sobreposições, pois esses refletem nos cotidianos dos atores sociais desigualdades sociais, principalmente no tocante a gênero, classe e raça, disparidades evidenciadas nas experiências de homens e mulheres.

Para Bhah (2006) a experiência é peça chave para as análises dentro movimento feminista, pois para o feminismo contemporâneo trabalhar as diferenças torna-se instrumento de radicalização sobre o debate de gênero, tendo em vista que marcadores sociais da diferença consiste em dar força social e psicológica na pretensão de compreende as construções sociocultural referente à transformação da fêmea em mulher.

O gênero não deve ser analisado fora do contexto, realidade sociais expressas em níveis local, nacional e internacional de forma a articular a relações de classe e raça dentre outras. Quando no item anterior descrevo as trajetórias de Alzira, Nísia, Zila, Clara e Auta evidencia-se que as experiências são campo de espaços de escolhas e ações de agentes frente ao repertório social inter-relacionado a marcadores sociais de gênero, classe e raça.

Contra a idéia de um “sujeito da experiência” já plenamente constituído a quem as “experiências acontecem”, a experiência é lugar da formação do sujeito. Essa noção muitas vezes falta nas discussões sobre diferenças entre pessoas onde a diferença e a experiência são usadas principalmente como “termo de senso comum”. (BHAH, p. 360, 2006)

A autora enfatiza a importância do debate da experiência como espaço de formação da realidade do sujeito. No entanto, delimita essa categoria concebe ser indispensável contextualizar e discutir a partir das diferenças trajetórias experienciadas pelos distintos sujeitos no percurso da vida. Nesta perspectiva pensar a experiência e a formação do sujeito como processo é reformular a questão da “agência”. O “eu” e o “nos” que agem não desaparecem, mas o que desaparece é a noção de que essas categorias são entidades unificadas, fixas e já existentes, e não modalidades múltiplas localidade, continuamente marcadas por práticas culturais e políticas cotidianas. (BHAH, p. 361, 2006).

Sendo esse campo de transformação de agência dos sujeitos, rompendo com a ideia unificada da categoria, pois mesmo a categoria de gênero, atrelada aos marcadores de classe e raça traduzem experiências distintas ao longo da trajetória de mulheres. Também considero a diferença territorial como marca imprescindível para investigação interseccional referente ao contexto das trabalhadoras em deslocamentos pendulares na comunidade de Capela.

Tendo em vista esse marcador é sempre indicado pelas interlocutoras como categoria elementar nas escolhas, principalmente no campo educacional e profissional. Zila e Alzira, por exemplo, abandonaram o emprego de babá, no primeiro caso na cidade de Natal/RN e no segundo em Recife/PB, por não estarem próximas ao território e optaram

por trabalhar na Guararapes e CD Riachuelo, por tratar-se de empresa que disponibiliza translado entre a comunidade de Capela e a cidade de Extremoz.

Dentre uns pontos mais enfatizado ao longo das entrevistas foi o fato de espaços rurais não disponibilizem estruturas físicas que possibilitem a população ter acesso à educação superior, que de acordo com a interlocutoras seria campo de possibilidades de melhores condições de vida. Somado ao fato do trabalho ou salário, é para muitas mulheres das classes populares é meio de ter acesso a bens e serviços. A exemplo das histórias de vidas de Nísia, Zila e Alzira, que por meio do trabalho ou salário as mulheres conquistaram a casa própria, transformou as mulheres em chefe de família.

Essas conquistas são fruto de trajetória permeada por relações interseccionais expressas em de experiências articuladas a marcadores sociais de gênero, classe, raça e pertencimento territorial. Cruzamentos que se articula de sistemas de opressão que direciona essas mulheres para fazer uso da agência na construção de projetos de vidas alternativos.

4.3. Etnográfia em tempo de pandemia: as alterações e novas perspectivas em