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Um projeto de ecumenismo católico: tensões, continuidades, rupturas

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41 A bula papal em destaque convocou a Igreja Católica para a realização do Concílio Vaticano II em meio à complexa paisagem religiosa da modernidade européia, parte da qual tentamos analisar em traços largos até aqui. O conclave despontava como inequívoco sinal de esperança para muitos fiéis católicos ao redor do mundo, como uma luz capaz de nortear a milenar instituição romana numa época de incertezas. Era um tempo de acirradas disputas ideológicas, sobretudo, entre as duas potências rivais. Época em que os sonhos de paz nutridos após o término da Segunda Guerra Mundial (1945) já se haviam esvaecido, dando lugar a uma sensação muito diferente. De um lado da “arena”, os Estados Unidos da América (EUA) buscavam atrair corações e mentes para a sua proposta calcada, em especial, no liberalismo econômico, nas liberdades democráticas e no capitalismo. No extremo oposto, e com igual ímpeto, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) tentava persuadir a todos de que era possível estabelecer o comunismo em todos os países, o qual seria infinitamente superior ao capitalismo e à democracia estadunidense. A Igreja Católica, por sua vez, estava às voltas com problemas de grande monta a serem discutidos: a crescente perda de fiéis em várias partes do mundo; a crise que se abateu sobre as famílias tradicionais99 européias elevando a níveis alarmantes o número de separações e divórcios; a questão da liberação do uso dos modernos métodos contraceptivos; o antigo desejo dos leigos por posições mais significativas no seio da Igreja; a demanda das mulheres por um lugar de atuação mais expressivo; o fim do celibato clerical pretendido por sacerdotes ao redor do mundo, entre outros. Todos esses temas deságuam no pós-Segunda Guerra como frutos

99 Em A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1989, Eric Hobsbawm apresenta um amplo leque de

transformações nos padrões socioculturais de proporções mundiais na contemporaneidade, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, no capítulo “revolução cultural”. In: HOBSBAWM, Eric. São Paulo: Cia das Letras, 1997. No bojo dessa “revolução cultural” operando em grande parte do mundo de que nos fala Hobsbawm, se encontravam alguns problemas difíceis de serem contornados não só pela Igreja Católica, mas por todas as religiões tradicionais.

42 indesejados da modernidade. No início dos anos 1960, tais questões avolumavam-se ainda mais devido o impulso de distintos movimentos sociais que eclodiam em diversos paises.

De fato, naquela época, boa parte da alta hierarquia da Igreja Católica já parecia haver percebido que o mundo de então jamais voltaria a ser como antes do advento da modernidade, quando a religião, em especial na maior parte da Europa, possuía força incontestável de integração e de regulação social. No entanto, a tarefa de enfrentar tais problemáticas não era simples. Ademais, havia ainda outro ponto (de grande relevância para nosso objeto de pesquisa) a desafiar os clérigos reunidos no conclave: como levar a cabo a proposta do pontífice de diálogo com a modernidade e com as demais igrejas e religiões, assegurando, ao mesmo tempo, a fidelidade da Igreja Católica à sua “Tradição”100

constituída no tempo da longa duração. Ressalte-se que com a expressão “Tradição” fazemos referência ao conjunto dos dogmas, leis, doutrinas, costumes, filosofias e idéias que, ao longo de sua história, o catolicismo romano, desde o século IV, incorporou.

Convém explicitar desde já, como sugere o padre e teólogo Gustavo Gutiérrez, que é possível sintetizar em três grandes eixos a proposta do papa, quais sejam: “a abertura ao mundo moderno, a unidade dos cristãos, a Igreja dos pobres.”101

Segundo Beozzo, as idéias de João XXIII na convocação para o Concílio foram recebidas com perplexidade pelos cardeais presentes quando de seu anúncio em Roma, mas “levantou na opinião pública mundial, católica e leiga, imediata onda de esperança e otimismo.”102

Com tal palavra de ordem

aggiornamento João XXIII parecia vislumbrar, de fato, uma série de mudanças para a

efetivação da pretendida atualização da Igreja Romana. Como observa Eduardo Hoornaert, uma palavra dessa natureza proferida por um romano pontífice causou de fato muito impacto, sobretudo, por não ser algo típico dos papas, pois eles “falam em tradição. Nas altas esferas da hierarquia, o termo „novidade‟ é suspeito, cheira a heresia.”103

Com efeito, entre alguns setores leigos e da hierarquia da América Latina, inclusive entre algumas igrejas protestantes, a iniciativa deve mesmo ter sido um sinal positivo, anunciando rumos completamente diferentes a serem seguidos pelo catolicismo. Beozzo lembra que além dos “2.540 padres conciliares” presentes na abertura do Concílio na basílica de São Pedro, em Roma, havia a presença “dos observadores das demais Igrejas cristãs, dos outros hóspedes do Secretariado para a União dos Cristãos, de delegações oficiais dos Estados e organizações internacionais.”104

Segundo o sociólogo protestante Waldo Cesar, o Concílio contou com “representantes de 28 igrejas não católicas.”105

Para ele, essa abertura católica surtiu efeito imediato no contexto de repressão que se instalou no Brasil logo após o golpe militar de 1964, sobretudo por propiciar a aproximação e o fortalecimento dos segmentos cristãos católicos e protestantes que buscavam uma forma de atuar diante de uma realidade histórica que se tornava cada vez mais inaceitável.

Para o teólogo católico Paulo Suess, “inserção na realidade, consciência histórica, contemporaneidade, sem concessões aos modismos, e visão utópica delineiam o campo

100 Nesse sentido, é possível dizer que sua cosmologia constitui-se de um “depósito tradicional” formado na

longa duração do tempo histórico. Somente quando consideramos isso, podemos compreender as especificidades das múltiplas formas como a Igreja Católica norteia sua prática e concepções, inclusive, através de seus documentos e pronunciamentos oficiais ante as demandas de cada época.

101 GUTIÉRREZ, Gustavo. “O Concílio Vaticano II na América Latina”. In: BEOZZO, José Oscar (org.). O

Vaticano II e a Igreja Latino-americana. São Paulo: Edições Paulinas. 1986. p. 23.

102 BEOZZO, José Oscar. “O Concílio Vaticano II: Etapa Preparatória”. In: Ibid. p. 10.

103 Cf. HOORNAERT, Eduardo. “Os quarenta anos do Concílio Vaticano II”. Revista Eclesiástica Brasileira. v.

66. n. 261. jan. 2006. p. 151.

104 BEOZZO, José Oscar. Op. cit., p. 15.

105 CESAR, Waldo. “Igreja e Sociedade ou Sociedade e Igreja?”. Religião & Sociedade. Rio de Janeiro, v. 23.

43 semântico do aggiornamento.”106 Eis aqui, a nosso ver, outra questão crucial que desafiava o conjunto dos clérigos católicos reunidos naquele conclave: como abandonar a postura oficializada desde o Concílio de Trento e confirmada pelo Concílio Vaticano I (1869-1870) caracterizada pelo fechamento e condenação do mundo moderno e de suas mazelas, bem como das outras igrejas e crenças religiosas sem, ao mesmo tempo, contradizer a própria “Tradição”? Ademais, aparentemente, o desejo de João XXIII e, também, o de muitos outros bispos e teólogos congregados no Vaticano II, ia de encontro aos interesses de eminentes figuras da Cúria romana e do “baluarte e guardião” da tradição católica, o Santo Ofício. Nesse sentido, Beozzo observou que “(...) o Concílio provocou internamente muita resistência, e sua preparação foi toda no sentido de reconfirmar Pio XII, as condenações anteriores, mantendo-o sob a hegemonia romana, dentro das comissões (...).”107

Ainda segundo o autor, houve um tremendo esforço em termos de articulação “política” por parte dos grupos mais conservadores108 no intuito de dominarem as posições-chave nas referidas comissões responsáveis pela preparação dos chamados “esquemas” espécie de projetos de textos a serem votados pelas assembléias oficiais do conclave. Uma tensão constante perpassaria tais discussões preliminares configurando um verdadeiro campo de batalhas em torno das versões finais dos esquemas que deveriam ser, posteriormente, colocados em votação. Tal preocupação de setores da cúpula da Sé romana é compreensível. Uma vez que se esses documentos fossem aprovados, representariam a posição oficial da Igreja Romana. A tensão entre os adeptos da mudança e os que se agarravam a todo custo à Tradição acompanharia o transcorrer do Vaticano II.

Ainda em 1959, o próprio anúncio do papa de que convocaria o referido Concílio foi uma grande surpresa para muitos cardeais e membros da alta hierarquia católica, os quais não julgavam ser necessário, ou mesmo importante, a discussão de questões novas. Na opinião destes, o Concílio Vaticano I teria sido suficiente. Logo, não fazia sentido algum a realização do Concílio Vaticano II. Acerca das reações conservadoras que a convocação papal suscitaram em Roma, José Comblin vai ainda mais além em sua análise, destacando que

a Cúria romana organizou a sabotagem da preparação do Concílio. Não conseguiu impedir a sua realização, mas continuou organizando a oposição durante todo o Concílio. O temor da Cúria era que os bispos adquirissem maior autonomia, o que era justamente a esperança de muitos bispos. Durante todo o Concílio os bispos tiveram a consciência de que havia um combate permanente entre eles e a Cúria romana e que o Papa não podia ou não queria decidir.109

A observação lapidar de Comblin sintetiza a complexa tarefa a que se propunha o Concílio, configurando, pois, um verdadeiro campo de batalha. A disposição de João XXIII de buscar o diálogo com o mundo e com as outras igrejas, adotando, inclusive, um claro projeto de ecumenismo, era, talvez, um dos pontos que mais desagradavam àqueles elementos contrários a mudanças na instituição católica, os quais integravam a cúpula da Sé romana. João XXIII exortava sua Igreja, também, naquele momento histórico, a uma aproximação mais intensa junto aos “pobres e excluídos do mundo”. Nesse ponto, encontramos a sinalização para um caminho que seguia em direção à “teologia da libertação” (a respeito da

106

SUESS, Paulo. “A missão no canteiro de obras do Vaticano II”. Revista Eclesiástica Brasileira. v. 66, n. 261, jan. 2006. p. 115-136.

107 BEOZZO, José Oscar. “Indícios de uma reação conservadora: Do Concílio Vaticano II à eleição de João

Paulo II.” Estação de seca na Igreja. Comunicações do ISER, v. 9, n. 39, 1990. p. 6.

108 Conservadores, aqui, se refere àqueles clérigos mais zelos e apegados à Tradição e aos dogmas e leis

eclesiásticas da Igreja Romana, independente do contexto histórico que possa vivenciar a Instituição.

109 COMBLIN, José. “As sete palavras-chave do Concílio Vaticano II”. In: LORSCHEIDER, Aloísio. et. al.

44 qual discutiremos mais adiante): opção teológica (e política) que conquistaria diversos setores da Igreja Católica na América Latina, sobretudo, após a Conferência Episcopal de Medellín, em 1968. Daí em diante, um tipo peculiar de ecumenismo passava a ser construído dentro de condições específicas, e em diálogo com setores das igrejas protestantes com perspectivas teológicas e políticas aproximadas, como ainda procuraremos mostrar.

Um ponto que interessava particularmente aos bispos do chamado “Terceiro Mundo”, ali reunidos e, em certa medida, a João XXIII, era a necessidade de tornar o governo da Igreja Católica menos centralizado (quase imperial), deixando de orbitar em torno da figura do pontífice. Tal modificação era pensada pelos bispos como a possibilidade concreta de promover uma abertura nos setores decisórios da instituição, levando-a ao distanciamento da sua excessiva centralização administrativa. O governo da Igreja Romana, então, passaria a se apoiar, também, com o referendo da chamada “colegialidade”, formada por integrantes eleitos do alto clero. Na perspectiva desses bispos, era uma reforma urgente que poderia efetivamente atualizar a instituição com os tempos da democracia, levando-a, inclusive, a abrir maior espaço para a inclusão do trabalho dos leigos e das mulheres, setores que há muito reclamavam tal direito.

No entanto, surgia, a partir daí, outro grande dilema: como promover um tipo de mudança na forma de governo, tornando-a de certo modo, mais democrática sem, contudo, contradizer o dogma da infalibilidade papal outorgado no Concílio Vaticano I por Pio IX? E mais: como pensar uma nova forma de dirigir a Igreja se a Cúria romana identificava-se ao extremo com aquela orientação praticada pelos antecessores de João XXIII? Como romper com a tradicional aura de sacralidade conferida aos papas, “deixando de lado aquela majestade que havia alcançado o auge com Pio XII - que parecia um ente celestial dotado de um poder total e absoluto”110

?, como lembra o padre Beozzo. Questões com as quais figuras controladoras da Sé romana não estavam dispostas a se confrontar, diferentemente da maioria dos bispos oriundos dos mais diferentes países, sobretudo da América Latina, que ansiavam por maior autonomia para suas dioceses.

Diante desse quadro tenso, João XXIII parecia estar mesmo motivado a agir no enfrentamento dessas questões, imbuído da convicção de que era necessário mudar algo na Igreja Romana a fim de garantir a permanência de seu rebanho, também ele, envolvido com as forças da modernidade. Contudo, infelizmente, não lhe fora permitido viver o suficiente para que pudesse contribuir com mudanças nos rumos da Instituição segundo sua visão do

aggiornamento, pois em 1963, chegava ao fim de seu pontificado sem que o Concílio tivesse

sido concluído. A sensação que se tem é a de que os bispos mais interessados no

aggiornamento, tal como almejava João XXIII, viram-se, subitamente, sem o devido respaldo

pastoral para levarem a cabo tal empreitada. O novo chefe supremo da Igreja, Paulo VI, apesar de se apresentar como alguém comprometido com a mesma visão de João XXIII, parece não ter conseguido levar adiante a tarefa de promover mudanças com a mesma disposição e força interiores que os bispos percebiam em seu antecessor. Beozzo, ao refletir sobre o que chamou de “indícios de uma reação conservadora”111

, sustenta que essa incapacidade percebida em Paulo VI tinha a ver com a sua postura na condução do Concílio ao tentar buscar sempre a “unanimidade” de opiniões dos bispos nas discussões em torno dos assuntos que os documentos finais deveriam conter. Para Beozzo, enquanto João XXIII priorizava o diálogo, o abandono das condenações do passado e, por fim, buscava sempre acatar a opinião da maioria dos bispos nas decisões acerca dos textos em fase de preparação, Paulo VI agia de forma diferente: sua estratégia era sempre a de “trabalhar um documento até

110 COMBLIN, José. Op. cit., p. 64.

111 BEOZZO, José Oscar. “Indícios de uma reação conservadora: Do Concílio Vaticano II à eleição de João

45 a exaustão, até que a formulação pudesse alcançar não apenas uma maioria, mas uma unanimidade.”112

Buscar a unanimidade, na opinião dos bispos que clamavam por mudanças, significava obrigatoriamente fazer muitas concessões aos conservadores, o que inevitavelmente dificultaria a possibilidade de se produzirem documentos que contemplassem algo novo. Ainda assim, mesmo após a morte de João XXIII, muitos bispos e membros do clero ali reunidos, bem como muitos leigos católicos ao redor do mundo, tinham a firme certeza de que mudanças poderiam ser esperadas até 1965, quando terminaria o Concílio.

De fato, no contexto inicial de discussões, marcado pelos embates de opiniões, a postura de João XXIII de priorizar a opinião da maioria na preparação dos textos conciliares significava um claro posicionamento de oposição à rígida e conservadora Cúria romana. Figuras do alto clero que negavam-se a aceitar as mudanças nos rumos da Instituição. Contudo, apesar de o papa Paulo VI afirmar seu desejo de continuidade da visão de João XXIII, na realidade parecia mais propenso a aceitar certas posições conservadoras do que permitir rupturas ou dissensões significativas entre os prelados, preocupado em manter uma linha de continuidade em relação ao Vaticano I e, assim, dirigir o Concílio Vaticano II à luz dos ensinamentos seguros da Tradição. Assim é que em sua primeira encíclica, Eclesium

Suam, de 6 de Agosto de 1964, apresenta-se como um herdeiro “do estilo e da diretriz

pastoral” de pontífices bastante conservadores em matéria de teologia como, por exemplo, Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). A respeito de seu antecessor imediato, o papa João XXIII, apesar de citá-lo como exemplo de quem melhor buscou “unir o pensamento divino ao pensamento humano”, tece palavras mais ardorosas ao “magnífico e opulento patrimônio doutrinal” deixado por Pio XI e Pio XII. Entre as referências sugeridas por Paulo VI, a título de inspiração, ao conjunto dos bispos do Concílio, estava a necessária atenção voltada para “o culto de Nossa Senhora”. Para o papa, “a regeneração espiritual e moral da vida da Santa Igreja” durante o Concílio poderia ser mais bem sucedida se os bispos atentassem mais detidamente para “o culto de Maria”, pelo fato de constituir “fonte de ensinamentos evangélicos.”113

Mais que buscar elementos novos para pensar os problemas da modernidade, Paulo VI parecia orientar os bispos conciliares a examinarem melhor a própria “Tradição” da Igreja, vendo os ensinamentos do “Concílio Vaticano Primeiro” como “fase obrigatória no caminho do conhecimento exaustivo de Cristo”. O Concílio Vaticano II, presidido por ele, não representava, então, algo totalmente novo: “não passa de continuação e complemento do Primeiro”, explicou o papa. Com relação ao tema do diálogo, o papa o considerava a partir de diferentes eixos: o diálogo dentro da Igreja, o diálogo com os “cristãos irmãos separados” e o diálogo com o mundo secular, no qual o “comunismo ateu” representava o desafio maior. Tais elementos do discurso de Paulo VI pareciam confirmar um perfil de pontificado um tanto diferente se comparado ao de João XXIII. A perspectiva de um jesuíta, Henri de Lubac, acerca da essência intrínseca do catolicismo, que parecia permear a mentalidade do papa Paulo VI, ajuda-nos a compreender os valores que defendia:

o catolicismo é a Religião. Ele é forma da qual a humanidade se deve revestir para ser finalmente ela mesma. Única realidade que não precisa se opor para ser, ele é entretanto o oposto de um “sociedade fechada”. Eterno e seguro de si mesmo como seu fundador, a própria intransigência de seus princípios, impedindo-o sempre de emaranhar-se em meio a valores perecíveis [...]114 (grifo do autor).

112 Ibid. p. 7-8.

113 BEOZZO, José Oscar. Op. cit., p. 39.

114 LUBAC, Henri de. “Catolicismo: Circumdata varietate”. Cadernos do ISER, Rio de Janeiro. n. 22, p. 28-31.

46 Talvez, pelo fato de o pontífice se sentir tão ligado aos referenciais doutrinários do Vaticano I, não tenha se sentido na necessidade de ir muito adiante no processo de renovação de sua Igreja. Afinal, o horizonte de mudança e abertura vislumbrado pelos bispos no Concílio também parecia provocar nele algumas suspeitas.

Alguns dos documentos finais resultantes dos trabalhos do Vaticano II sobre os quais nos deteremos com maior atenção adiante refletem em vários pontos a paradoxal postura de Paulo VI de tentar conciliar a novidade com a tradição. De fato, Paulo Suess conseguiu identificar aí um dos maiores limites do Concílio, ao assinalar que “pelo Vaticano II (1962-1965), a Igreja não conseguiu livrar-se totalmente do peso que acumulou nos séculos de cristandade [...].”115

Contudo, há opiniões divergentes. O historiador norte-americano Kenneth Serbin, por exemplo, conhecido “brasilianista” estudioso de assuntos referentes à Igreja Católica , sustenta que “o Vaticano II foi, sem dúvida, a mais ampla reforma da história da Igreja.”116

Com efeito, a opção de não se distanciar da tradição, inevitavelmente se refletiria nos documentos finais do Concílio Vaticano II. Alguns deles apresentam as marcas deste posicionamento de Paulo VI e de outros bispos conciliares, exibindo certas ambigüidades, paradoxos e, em alguns casos, até contradições insolúveis. Com relação à tentativa precária de alcançar a unanimidade entre os “padres conciliares”, Beozzo observou que:

Há vários textos no Concílio onde temos primeiro a afirmação da maioria conciliar e imediatamente uma frase que diz exatamente o contrário e é expressão doutrinal da minoria. Então, em muitos lugares do Concílio, a gente tem não apenas uma solução de compromisso, mas a justaposição de duas concepções heterogêneas.117

A nosso ver, um dos motivos que contribui para o resultado dúbio dos documentos, tem a ver com o não rompimento da noção perpetuada pelo Concílio de Trento de igualdade valorativa entre a Tradição e a Bíblia. Desse modo, no plano oficial das decisões práticas, o

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