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Como constatamos, cada uma das categorias de respostas identificadas nas falas dos professores, representam temáticas já estudadas e criticadas por sua ineficiência explicativa e, em muitos casos, por serem responsáveis por efeitos nefastos ao processo educacional e, principalmente, às crianças escolarizadas.

Embora combatido por muitos, como os autores aqui citados (Lajonquière, 1992, 1998, 1999, 2010; Patto, 1984, 1993; Couto, 2012), o processo de psicologização da educação, ao qual somamos uma bio-sócio-pedagogização, se mantém no cotidiano das escolas públicas, como nossa pesquisa atualiza.

Reconheçamos o valor desses estudos e, principalmente, o valor de advertência que suas reflexões possuem. Nosso objetivo, contudo, não se dirige à mera atualização dessas constatações. Embora isso não deixe de ser necessário, como forma de assinalar o fato de que, a despeito das diversas advertências já feitas, não alteraram-se substancialmente os

argumentos com os quais, na escola, se justificam as dificuldades de aprendizagem das crianças.

De outro modo, ao retomar os argumentos escolares para as supostas dificuldades de aprendizagem, independentemente das justificativas utilizadas, deparamo-nos com o efeito segregador dos mesmos. Logo, para além da maneira como se constituem, evidencia-se a natureza segregadora do conjunto de justificativas estabelecido sobre as dificuldades de aprendizagem das crianças. O que pretendemos fazer avançar, contudo, diz respeito a uma certa generalização desse efeito. Como afirmamos acima, percebemos que não só as ditas ciências psicológicas acabam por produzir efeitos dessa ordem. Constatamos a atualização e a reprodução, no interior das escolas, de um mosaico constituído de saberes provenientes de diversos campos da ciência: psicologia, pedagogia, sociologia e medicina, todos desempenhando igual função. Ficou evidente, nas entrevistas realizadas, um esforço dos professores em serem bastante abrangentes na gama de justificativas levantadas para explicar as dificuldades das crianças. Alguns chegaram a afirmar a existência de vários fatores intervenientes no processo de aprendizagem.

P4: Agora os fatores a gente, são muitos né, a gente não consegue na verdade definir um fator.

Repete-se, assim, a velha fórmula, defendida por Arthur Ramos, onde se propõe uma abordagem o mais abrangente possível das variáveis intervenientes no processo educativo. Lembrando a expressão utilizada por Ramos, u a o stelaç o de a i eis ue e t a em jogo, a o p ee s o do es ola difí il, auda de lasse Ra os, , p. , referindo-se aos ambientes familiar e social e aos aspectos orgânicos.

O esforço em elencar diversos fatores em torno da questão, em não deixar nada de fora, não seria um esforço exatamente para deixar algo de fora? Essa questão, assim formulada, apoia-se naquilo que Miller (1998) apontara como o efeito de evitação que se constata face à repetição significante. Segundo ele:

Existem sucessões que não podem aparecer, como se a máquina significante as o to asse […] o o o esíduo i possí el do fu io a e to da epetiç o. […] o o se a uilo ue se epetisse, de ais i po ta te, fosse a e itaç o. […] Repetição da ausência, da evitação, do contorno, que, para o sujeito, se constitui precisamente como uma pedra de tropeço. (MILLER, 1998, p. 65-66)

Encontramos leitura semelhante realizada por Voltolini (2011, p.252), ao referir-se ao pedagógico em sua relação com a questão do poder. Ao ser identificado com a posição de combate ao poder, principalmente no que concerne à autoridade do professor, o discurso pedag gi o atual, afi a o auto , fi a o de ado a o to -lo, mascará-lo com algum outro nome, já que extingui-lo i possí el.

No nosso caso cabe perguntar o que estaria sendo evitado através do conjunto de justificativas reunido pelos professores? A resposta parece inevitável, aquilo mesmo que o saber segrega: o sujeito que se apresenta em cada uma das crianças com as quais lidam. Em nome disso, pareceu-nos necessário ir ao encontro das falas dessas crianças. Entendíamos que era o momento de dar-lhes voz para que pudessem nos dizer de que maneira lidam com esse saber universalizante, aparentemente completo, que denominamos bio-psico-sócio- pedagogizado, parafraseando Lajonquière (1998).

Assim, circunscrito o saber predominante sobre as supostas dificuldades de aprendizagem das crianças atendidas pelo PIP, partimos ao encontro da parte excluída. Fomos ouvir as próprias crianças sobre o que acontecia nas escolas.

Antes de prosseguir, porém, entendemos ser o momento de uma avaliação da metodologia utilizada em nossa pesquisa. O momento escolhido para a mesma será compreendido em seu desenrolar. Poderíamos antecipar, contudo, que até aqui, nos dedicamos à análise da produção de um saber no qual o objeto, como lhe é próprio, encontra-se silenciado. As crianças, sobre as quais historicamente, se recaíram os saberes efe e tes a u dese pe ho i ade uado a es ola, o e o t a a , as fontes até agora examinadas, um espaço para que pudessem dizer, elas mesmas, sobre o que acontece. Por isso dizemos que o objeto, que para nós tem o estatuto de um sujeito, permaneceu até aqui silenciado. A introdução de uma discussão metodológica se justifica nesse momento, ao nosso ver, pois demarca-se aqui uma virada. Uma mudança de perspectiva na abordagem do fenômeno analisado por nós e que recebeu, como observamos, tantos nomes até aqui. Mais do que isso, trata-se de uma virada ética, que pretende dar à ciência, seu devido peso enquanto um saber entre os vários possíveis e ao sujeito a possibilidade de dizer por si mesmo o que lhe acontece. Entendemos que dar voz ao sujeito até então silenciado constitui-se, assim, em uma mudança radical de perspectiva no contexto desse trabalho.

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Como tantos outros autores, entendemos que aqui também seria interessante iniciarmos pela etimologia da palavra. Método vem do grego méthodos que é constituído de

metá que significa através e hodós denotando caminho. Depreendemos daí que um método

deve referir-se a um caminho a ser atravessado. Concordamos com Castro (2010, p.24) quando afirma também que o método, assi o e ido, de e fo e e uma orientação no campo a ser atravessado, uma concepção de objeto a ser pesquisado e até mesmo o uso de instrumentos para fazê-lo. O a, se o todo de e espo de a ta tas e ig ias, orientando a pesquisa em seus principais requisitos, devemos considerar que um método implica necessariamente em uma concepção da realidade, uma teoria, senão não seria possível atender às exigências acima. Canguilhen (1958/1973, p.104) é quem nos ampara nessa fo ulaç o ua do afi a ue toda ciência se dá mais ou menos seu dado e se apropria, assim, daquilo que se chama seu domínio, o conceito de uma ciência, p og essi a e te, fez ale ais seu todo ue seu o jeto. . P ossegue seu a io í io afi a do ue a o epç o de o jeto, essa pe spe ti a, ta se alte a. Diz ele O objeto da ciência não é mais somente o domínio específico dos problemas, dos obstáculos a resolver, é também a intenção e o alvo do sujeito da ciência; é o projeto específico que o stitui o o tal u a o s i ia te i a. I ide . Logo, um método refere-se necessariamente a pressupostos teóricos anteriores que, por essa via também definem os objetos a serem pesquisados. Como propõe Cast o , p. Metodologiza faze uso de recursos [...] simbólicos e de saberes [...] o que nos afasta radicalmente das contingências ( manifestações do eal .

Assim, a pesquisa que empreendemos, como todas, irá se fundamentar em uma certa concepção do que seja a produção de conhecimento. Na verdade, sustenta-se na interrogação, estimulada pela teorização psicanalítica lacaniana, sobre o que chamamos ciência e a maneira como procede a investigação dos fenômenos. Dessa perspectiva, podemos afirmar que a ciência é caracterizada por um certo tipo de saber entre muitos existentes. Tal afirmação pode ser tomada como um duro golpe na concepção comum que se tem de ciência, pois, a despeito das discussões epistemológicas que se dedicaram a essa questão, ainda hoje deposita-se o ha ado o he i e to ie tífi o , e essi a o fia ça e esperança de que este possa responder às principais questões humanas. Ou seja, o que comumente se entende por ciência ainda se apresenta socialmente como a única

modalidade de saber válida e capaz de responder todas as questões e não como mais uma entre várias possibilidades existentes.

Partindo dessa pressuposição quanto à ciência, fomos ao encontro dos saberes produzidos pela psiquiatria enquanto primeira a circunscrever aquilo que não ia bem no encontro das crianças com o universo escolar instituído formalmente, nosso objeto de pesquisa. Ali pudemos testemunhar a maneira como se erige um saber sobre determinado fenômeno e como esse saber inaugural acaba por referendar, ou, no mínimo influenciar, os saberes produzidos posteriormente. No contexto que examinamos, também constatamos que, na essência, o que se impõe é um certo paradigma36 que subsistirá por longo tempo até ue u a uptu a episte ol gi a a o teça e su e ta o odo o o se a o da os fe e os. Mais do ue u a e is o de lite atu a , o o se ostu a ha a , us a os nas fontes teóricas identificar a maneira como circunscrevem determinado fenômeno, produzindo-o. Essa maneira de conceber a ciência, enquanto produtora de seus objetos de estudo, na medida em que os define localizando-os com os recursos da linguagem, é tributária de uma nova concepção de ciência que, como veremos, coloca em questão os fundamentos epistemológicos propostos por Descartes, fundantes do que conhecemos como ciência moderna.

Como passo seguinte, propusemo-nos a escutar os professores da escola pública municipal de Belo Horizonte visando apurar a maneira como, também eles, traduziam o mesmo fenômeno que em suas falas, j e e ia o tulo de difi uldades ide tifi adas e seus alunos no processo de aprendizagem. O que constatamos é que o modo de conceber aquilo que se coloca como obstáculo ao desempenho ideal das crianças na escola, permanece o mesmo desde as primeiras formulações erigidas no seio da psiquiatria clássica. As entrevistas com os professores confirmaram a permanência de determinadas ideias sobre a educação e as questões que lhe são inerentes, especialmente quanto ao que se considera razão das supostas dificuldades das crianças com a aprendizagem. Assim, como vimos, na concepção dos professores, pe a e e a ideia de u a ie te i ade uado , ue a a ge o

36 Aqui adotamos a concepção de paradig a de Tho as Kuh , p. ue o e te de o o a uilo ue

os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste de homens ue pa tilha u pa adig a. A uilo , a ue se efe e Kuh diz espeito ao ... o ju to de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na

o se aç o. ide , p. E fatiza-se, na definição proposta por Kuhn, o caráter complexo de composição de

um paradigma onde os resultados da pesquisa científica estritamente falando se associam à sua aplicabilidade e, acima de tudo, à sua possibilidade de reunir um grupo significativo de cientistas, de ser compartilhado por eles.

contexto sócio econômico e a organização familiar nos quais uma criança se insere, como ausa de seus o po ta e tos ta i ade uados so a pe spe ti a da es ola. Nessa mesma lógica explicativa, identificamos, nas falas dos professores, uma crítica aos, também

i ade uados , esfo ços pedagógicos de muitos de seus pares.

Pudemos, assim, identificar como um conjunto de saberes se organiza e se mantém ao longo do tempo reproduzindo-se para além do restrito ambiente científico onde tem origem. A sociedade como um todo e, particularmente, aqueles para quem determinados saberes constituem uma resposta às suas maiores dificuldades, como, no nosso caso, os professores, se incumbem de propagar e referendar determinadas concepções geradas no meio científico.

Ainda na perspectiva de uma ampliação das concepções sobre o fenômeno em questão, fomos ao encontro das crianças identificadas, pela escola, como possuidoras de dificuldades para aprender. Ao dar a palavra às crianças, descobrimos, aí sim, outras versões sobre o que parecia não ir bem na escola. Na verdade, várias significações novas surgiram das falas das crianças entrevistadas. O saber das crianças sobre os impasses que experimentam na aprendizagem escolar, os quais para algumas nem sequer se constituem como dificuldades, abriu-nos uma outra perspectiva de abordagem do fenômeno que elegemos como objeto de pesquisa. Fenômeno que vimos naturalizar-se, no contexto da i ia psi ui t i a, o eado at a s das di e sas espe ifi idades do espe t o Difi uldades de Ap e dizage e ue, a es ido de argumentos psicologizados, pedagogizados e sociologizados, acabou por ser generalizado em uma concepção predominantemente funcionalista, na análise dos professores entrevistados. As crianças, contudo, nos apresentam as questões que tocam a aprendizagem escolar, de maneira bastante distinta, pois incluem sua perspectiva absolutamente singular no modo como abordam a questão que lhes propusemos.

Esses foram nossos passos. Cabe-nos aqui explicitar, contudo, qual foi, nesse processo, a orientação metodológica utilizada? O que justifica fazer o que fizemos? Constatamos, a posteriori, que o caminho percorrido havia sido análogo ao empreendido por Lacan ([1966] 1998; [1969-1970] 1992), ao questionar a natureza do conhecimento científico para ali reintroduzir a dimensão do sujeito. Vejamos, então, como se deu esse processo, a partir das orientações de Lacan, a fim de verificarmos se a analogia proposta procede.