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(Um tributo a Fernanda Henriques) Helena leBre

Professora do Ensino Secundário. Doutoramento em Filosofia na Universidade de Évora. Membro do Lab­ Com.IFP /Universidade de Évora.

O conhecimento tem como objecto, quase sempre, o que nos apaixona. No entanto, não deve excluir o resto. Antes permite fazer incursões no diferente: incorpora o descon- hecido que se vai revelando. Numa palavra, torna -se variedade no que articula e des- envolve, no que desenha e constrói, no que se estrutura e nos estrutura e, se possível propõe -nos uma proximidade à verdade que se dá, inserida no resgatar de todas as pers- pectivas possíveis. Torna -se amor à sabedoria.

Ponto Zero – Contextos

A proposta que quero explorar refere -se a dois aspectos do trabalho de Fernanda Henriques, os quais aparentemente se encontram inseridos em áreas de pesquisa dife- renciadas. No entanto, parecem -me ser duas preocupações e/ou inquietações transver- sais à sua obra, que sobrevêm com maior ou menor intensidade, consoante o cerne da investigação que se leva a cabo, acabando por ser a possibilidade do corpus que confi- guram. Refiro, por um lado, a questão da transmissão dos conteúdos filosóficos para os aprendentes do filosofar, privilegiando a utilização do texto; por outro, a problemática discriminatória dos géneros que se foi sedimentando ao longo do tempo.

O contexto que, de um ponto de vista, permitirá a integração destas polaridades ad- vém da convicção de que a índole do saber veiculado pela filosofia possui um potencial de legitimação sobre o ser e o realizar -se da humanidade, formatando atitudes a partir de padrões éticos e sociais que os orientam, projectando mundividências e impondo esquemas simbólicos de pensamento. Igualmente, se crê que a marginalização do femi- nino criou memórias históricas que, usurpando o seu carácter relativo sem o reconhecer como tal, foram o baluarte incontestável de uma universalidade que escreveu a tradição onde a cultura ocidental se revê. Repor uma nova interpretação e assim, resignificar é, primeiro que tudo, ter a consciência clara de que o que se tomou como pacificamente capaz de ostentar estabilidade e / ou certeza nada mais é que a atribuição sobrevalo- rizada e abusiva de um ponto de vista determinado: o masculino como o paradigma da Humanidade.

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Ponto Um – Uma forma de ser kantiana (pensar é um assunto da liberdade) 1 Se a filosofia é ou não um saber transmissível, de que modo o pode ser, qual o seu papel no seio de um elenco de saberes que se organizam disciplinarmente, e, enquan- to tal apresenta necessariamente, peso institucional, qual a sua dimensão e estatuto educacional -formativo: são algumas das questões lícitas, cujas respostas sendo abertas exibem a sua complexidade e problematicidade.

Partindo do princípio, restringindo a problemática, de que os conteúdos filosóficos podem ser comunicados surgem, imediatamente, dois aspectos que se salientam para que a abordagem do tema seja devidamente perspectivada: o enquadramento científico – epistemológico, por um lado, e a natureza pedagógica desta área do saber, por outro. Ambos são auto remissivos e retro alimentam -se.

Herdeiros que somos de Kant e da sua conhecida distinção filosofia -filosofar, recon- hecendo a importância deste horizonte reflexivo e alargando para algumas das âncoras estruturantes da sua filosofia critica, apercebemo -nos, com relativa facilidade, que o espaço proposto para o saber filosófico é o do exercício livre da razão (processo prático), que nos faz caminhar para as finalidades últimas da mesma (natureza do pensamento e da racionalidade). Como qualquer problema bem colocado comporta já a sua resposta, então efectivamente, o que se está a tentar determinar e enfrentar é o encontro da hu- manidade consigo mesmo. Tal será realizado a partir da análise dos limites do que o ser humano pode com verdade conhecer, passando pelo jogo de interdependência entre o dever e liberdade no seu agir, e, finalmente interpelando a relevância de alcançar a uto- pia de uma comunidade humana que cumpra o ideal de racionalidade. Refiro -me ao que é sistematicamente exibido, com as perguntas kantianas, modelo sinóptico da sua arqui- tectura filosófica e, que se tornaram lapidares: O que posso saber”?, O que devo fazer?, O que me é permitido esperar?, colmatando na última que, embora subsidiária de todas as outras, é, simultaneamente, a sua síntese e finalidade, O que é o homem?.

Voltando ao que aqui nos interessa, e, reformulando: como se ensina História da Fi- losofia, senão filosofando, isto é pelo uso puro prático, leia -se livre, da razão humana?!

Uma conclusão se estabelece: não se ensina, aprende -se, isto é, os ditos processos de transmissão de saber, descentralizam -se salientando os processos de aprendizagem, cujos atributos desejáveis seriam o de criar um pensar autónomo, consistente e universal.2

De tudo isto parece impor -se que a filosofia só se pode aprender, isto é, adquirir atra- vés de uma adesão subjectiva, de um envolvimento pessoal que crie ou recrie um pro-

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cesso de pensar. Esta será sempre a grande limitação de qualquer acto transmissivo de uma filosofia e também aquilo que o torna particularmente desafiador3

Estamos, pois, num paradigma que se constrói pela radicação na subjectividade da existência. Mais ainda, movemo -nos num espaço que se alarga a toda a formação/edu- cação, à totalidade da tessitura social: pensar por si de acordo consigo mesmo, pensar com o outro e no seu lugar, o que nos conduziria ao reino dos fins, comunidade de seres estritamente racionais, isto é, pessoas.

E como se cria e/ ou recria um pensar?

Pelo diálogo com a tradição (passado), pela reflexão com a realidade circundante (presente) e pela capacidade de fazer e/ou ser projecto(s) (futuro).

E como realizar esta “contracção temporal”?

Lendo e interpretando textos, escrevendo e produzindo texto. 4 Ponto Dois – Movemo ‑nos na(s) linguagen/m(s)

Curiosamente, a tradição que devemos a Kant, aquela que salienta o exercício conti- nuado do pensar, pode alimentar questões não respondidas pelo autor, mas tendo a ex- celência de estimular uma reflexão sistemática e se profícua, a possibilidade do encontro de uma outra perspectiva, a qual não se revendo na primeira, não lhe é contrária nem a contradiz, mas propicia um olhar diverso.

Deixando para trás, a transcendentalidade kantiana e introduzindo a temporalida- de, enfrenta -se um outro ponto de (re)começo que se consubstancializará na ideia de que a filosofia é essencialmente uma poiética, um agir, produz obra. E fá -lo no contex- to da mundaneidade5, na sua relação evidente com a vivência temporal num trabalho de reflexão e de decifração do primeiro. Tempo e Mundo são, por isso, simétricos e heterodeterminam -se.

A importância do eixo antropológico, evidente na Filosofia Crítica, é substituída pela relevância, agora central, da obra produzida e a produzir. O espaço fundamental da filo-

3 HENRIQUES Fernanda, 1998 “A transmissão da filosofia como exercício do uso livre e pessoal da razão” in HENRIQUES Fernanda e BASTOS DE ALMEIDA Manuela (coord), Os actuais programas de Filosofia do

Secundário Balanço e Perspectivas, Lisboa CFUL & DES p. 63

4 As respostas e as perguntas propostas desviam -se deliberadamente da Filosofia kantiana. Dito de outro modo, Fernanda Henriques alarga e torna abrangente a proposta de Kant, trazendo -as para a contem- poraneidade, dialogando com a hermenêutica, sem que tal corresponda a qualquer desvirtuamento. 5 Pelo que a pergunta do saber específico da filosofia e a sua relação com o espaço escolar, se torna rele-

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sofia é, por isso o da hermenêutica6: o processo de captação do real é um acto constru- tivo/desconstrutivo de codificação/descodificação de linguagens que são constitutivas da realidade -para -nós.

A filosofia é mediação e selecção, interpretação e valoração capaz de tornar o mundo habitável: articula sentidos, organiza mapas e desvenda o território. O tempo privilegia- do é o do diálogo entre passado e futuro, cuja possibilidade reside na interpretação do texto. Este torna -se mestre porque é fonte do ensinar/aprender verdadeiro da filosofia, seu valor e sentido, presentificando o passado, trabalho de composição e decomposição de memórias, e projectando o futuro.

A prática da filosofia, quer seja, enquanto uma hermenêutica, portadora e criadora de sentidos do Mundo, quer seja enquanto puro uso e exercício da razão do ser humano mostra a indispensabilidade do texto como topos polivalente do saber filosófico. Ponto Três – Com textos

Usar o texto, erigi -lo como fonte de onde emana saber e simultaneamente considerá- -lo como criador de saber novo, dirige -nos para um diálogo, pela transtextualidade, en- tre a tradição e a época contemporânea. Ora, não se fala, apenas, do uso do texto como uma mera estratégia ou simples metodologia e parco recurso de comunicação, mas an- tes ao perceber a sua excelência, de alguma forma tentacular, compreender igualmente, que tal significa mudar o paradigma que preside ao acto pedagógico – didáctico. Ele é o caminho (e, assim verdadeiramente método) não só, porque desloca o sentido do saber para a aprendizagem, que é doravante o seu topos e finalidade, mas afirma que o acto de aprender é um agir radicado na interpretação e enquanto tal, só pode ser concebido como um acto investigativo.

Explorando um pouco mais: a filosofia é um pensar/saber comprometido, ele é lugar onde se analisam, debatem questões fundamentais e configuram princípios fundantes que orientam, influenciam e condicionam toda a cultura. É, no entanto, uma área es- pecífica e propõe a formação de uma consciência autónoma. Da aparência ao que é, do irreflectido ao reflectido, do inconcebível ao concebível, da descoberta das condições de possibilidade, necessárias e suficientes, o conhecimento filosófico é mediador de um processo que, pelas competências inerentes, faz emergir de uma amálgama informativa e aleatória, a intencionalidade de uma consciência, tanto pessoal quanto social.

Este processo, que é verdadeiramente construção da identidade (subjectiva, social, histórica, política), torna o texto indispensável, visto a potencialidade que o mesmo pos- sui de interpelar quem o lê. Todo esforço de compreensão é actividade que implica uma

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tomada de posição própria, uma abertura interpretativa intratexto e desejavelmente in- tertextos, o alargamento à alteridade, a necessidade de responder, criando argumentos, face a uma tese que se julga justa. Este é, todo o inicio da responsabilidade, legítimo e congruente, porque não advém de qualquer outro ponto de vista que não o próprio. Uma outra potencialidade a aludir, é a correspondência e equivalência entre o acto de leitura e o acto de escrita, sendo a inversa igualmente verdadeira. Assim, pelo dizer, sobretu- do textual, a filosofia mostra -se como um fazer, um fazer de sentidos, um desvendar o mundo.

Cito Vergílio Ferreira:

Quando nasci, os problemas que me ocuparam já estavam problematizáveis e a vida seguia o seu curso. Então meti ­me nela e fui andando com os outros. Mas houve um mo­ mento que chamei a mim esses problemas para lhes aceitar ou recusar a solução alheia. E nesse momento eu nasci realmente e fui único no mundo.7

Não foi fortuito ou ocasional a citação de um escritor a fim de corroborar o que se tem vindo a expor. Está implícito que, dado o tema e o enquadramento, o texto que se fala é tomado claramente, como um texto de índole filosófica. No entanto, igualmente pelo dito, ao assumir a imprescindibilidade do mesmo, a referência alarga -se ao tex- to literário, sem que este apresente quaisquer indícios de menoridade face ao primeiro para as finalidades propostas. Pelo contrário, para o filosofar, o texto literário não deve ser tomado, apenas, como suporte ou suportável, mas muitas vezes ele é o match point decisivo.

Evidentemente que, a herança da hermenêutica está presente e ela convoca -nos para pensar que o texto literário nos apresenta modalidades de estar e habitar o mundo, aponta percursos diferenciados, supera alguma da estreiteza do existir, e, por aí pode impelir -nos para outros temas e discussões, mesmo que sejam, tão -somente, sugeridos. O labor filosófico é conceptual, a reflexão crítica é insubstituível, o confronto com novas situações, a sua dissecação necessária e o cotejo com outros textos, outras aprendiza- gens fortalecem o estatuto e o papel da filosofia proporcionando o seu crescimento, a sua dinâmica de um recomeçar sistemático. Desta forma, os textos literários, porque narrativos trazem experiências outras, diferenciadas do comum e rotineiro de quem quer saber, emitindo juízos, discorrendo fora de preconceitos, ou hábitos inibidores.8

Assim, corroborando o afirmado, declara Fernanda Henriques:

Algumas verdades que dizem respeito à vida humana só podem ser correctamente expressas pela narrativa.9

7 FERREIRA Vergílio,1993, Pensar, Lisboa, Bertrand Ed., p.312

8 Eventualmente, esta uma prática possível do conceito de auto motivação, essencial à pedagogia de Ausubel 9 HENRIQUES Fernanda, 2012 “A imprescindibilidade do texto na transmissão da filosofia” in RIBEIRO FER-

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Provavelmente, e quase como nota de rodapé, poder -se -ia evocar como sendo esta uma das razões para existirem casos de filósofos que foram igualmente escritores: Mír- cea Elíade, Simone de Beauvoir, Iris Murdoch, Albert Camus, Sartre, Bertrand Russel, e que trataram de temas ou descreveram experiências, num sentido lato, filosóficas. Ou situações de limiar de grandes obras filosóficas que foram igualmente belíssimas obras de literatura: refiro -me especificamente a Platão. Outros casos, igualmente interessan- tes, e que à primeira vista não seriam veículos ajustados para alguns problemas do saber filosófico: que melhor obra literária para pôr questões da lógica do que alguns textos de A Alice no País das Maravilhas? Que melhor obra para problematizar a complexidade da retórica do que o “Elogio Fúnebre” em Júlio César de Shakespeare?!.

Com efeito, o texto literário não se apresenta tout court, ele representa e representa- -se como algo: como é, como deve ser, isto é, numa plasticidade que lhe é própria. E é este algo, não sendo coisa nem conceito, mas fenómeno pré -compreensivo que autoriza a solicitação para que o leitor o reescreva, o reinterprete, o seleccione, o aceite ou re- cuse, isto é, exercite a sua liberdade. Muitos textos não filosóficos, ficcionais alimentam interrogações próprias do campo da filosofia. Não que esta se torne dependente da pri- meira, mas possa acolher outros sentidos e experiências presentes, em outras áreas cul- turais, fortalecendo o pensar filosófico pela proficuidade desta comunicação mútua. Não se trata de heteronomizar a filosofia em relação a outros discursos, mas de instaurá -la no seu lugar próprio: o da elucidação e da abertura face ao não filosófico. Esta a sua tarefa e a sua excelência. Como exemplo: a função da metáfora no texto de ficção é o de apontar, indicar; a especulação filosófica através do conceito determina o sentido da metáfora, que a mesma possui no contexto que o apoia. Digamos que a filosofia é uma espécie de consciência de si da literatura: seria a metáfora do grilo falante no Pinóquio.

Voltemos ao caso peculiar do texto ficcional: Fernanda Henriques refere o caso mo- delar de Martha Nussbaum 10 que na sua pesquisa sobre a moralidade afirma perempto- riamente da importância do texto literário. Este supõe uma adesão emocional e não só racional, tornando a compreensão do gesto ético mais efectiva e profunda se realizada através da produção própria da literatura. O âmbito da ética exige, segundo a autora, uma articulação entre o intelectual e o emocional, priorizando o agir concreto perante o princípio abstracto. É, por isso, adequado o uso do texto literário que nos dá o exem- plo particular, pelas situações narradas, propiciando o entendimento e a elucidação das questões fundamentais da ética. Sendo investigadora da Grécia Antiga, mostra que a leitura dos trágicos gregos é tematicamente mais forte e problematicamente mais rica do que o é na literatura estritamente filosófica. O texto literário reelabora o ser humano e favorece a formação da sua identidade:

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expressar o ser da realidade na sua imensa complexidade e liberdade de habitar essa complexidade a partir de si mesmo e da sua particularidade.11

Para concluir é conveniente reforçar a ideia, o não esquecimento, que os diversos discursos culturais são diferenciados embora, de certa forma se retroalimentem. Ponto Quatro – Com texto e Contexto (da indiscriminação dos géneros)

Pela análise e papel do texto, em particular do texto literário, ainda que de um modo relativamente superficial, é possível vislumbrar o universo de fundamentação que lhe é subjacente: o que está em questão não são os vários discursos de áreas culturais distin- tas, mas antes a necessidade de pensar os vários usos da linguagem e até que ponto, esta plasticidade do dizer corresponde a realidades que em si mesmas serão distintas.12 Paul Ricœur mostra a importância de resolver Babel:

Estamos hoje em busca de uma grande filosofia da linguagem que desse conta das múltiplas funções do significar humano e das suas relações mútuas.13

Para o caso interessa -nos relevar a importância e o significado da linguagem, dos diversos usos dos quais nos servimos, e de que modo eles são portadores de virtuali- dades e desvirtuamentos que se naturalizaram. Afortunadamente, é igualmente pela e na linguagem que os hábitos enraizados podem ser questionados. Assim, se pensarmos que o estado do mundo é proveniente de estados da linguagem, pode -se afirmar com Fernanda Henriques, a sua importância:

(…) para reificar o passado, repetindo ­o, ou para o desenvolver numa dinâmica de possibilidades futuras, procurando dizer palavras novas.14

Articulando este facto com o papel que a filosofia (também) desempenha, enquanto reprodutora de estereótipos (in)conscientemente consolidados social e historicamente, importa declarar a sua não neutralidade ou descomprometimento. Assim, se garantirá que a reflexividade do acto filosófico não fique fossilizada ou cristalizada com base em falsos argumentos de autoridade. Assumir que a filosofia apresenta uma responsabili- dade incontornável na formação do modo de pensar e agir de cada um de nós, sendo lugar privilegiado de criação de memórias novas e da exploração de memórias passadas, como nos ensinaram, de modo diferente, mas igualmente relevante, Gadamer e Ricœur.

11 Op. citada p. 215

12 Vilém Flusser, que em parte da sua obra, se dedicou a esta pesquisa, afirma que para cada linguagem (e língua) correspondem níveis de realidade distintas.

13 Ricœur Paul, Le volontaire et l’involontaire, Paris, Aubier -Montaige, 1950, p. 417

14 HENRIQUES Fernanda, 2000, “Filosofia, Cultura, Linguagem”, in AAVV, Aristotelismo e Antiaristotelismo,

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Uma das problemáticas, aparentemente pacífica pelas interpretações sucessivas e sedimentadas, é a descriminação dos géneros e dos sexos que efectivamente existe e existiu, nunca sendo tomada enquanto tal. É convicção comum e, por isso, incontestada que a Humanidade é representada pelo masculino, pensado como um universal neutro. O feminino é topos de uma ausência “natural”, e não um igual/diferente, simétrico.

Revisitar este tema, sem preconceitos, é ser capaz de reescrever a História, de cons- truir uma memória colectiva onde a paridade dos géneros esteja inscrita. Fazê -lo requer que se possa desconstruir a veiculação que a reflexão filosófica e o seu aparato concep- tual desenvolveu e perpetuou 15. Muitos foram os responsáveis quer por omissão quer por posição assumida: Freud e Rousseau, Aristóteles e Lacan, para mencionar alguns.

A importância da educação neste processo é inestimável e incontornável, e a com- petência para despertar uma nova atitude face à temática, pertence em grande parte, por argumentos sobejamente referenciados, ao pensar da filosofia. Fernanda Henriques di -lo -á, propondo a exploração do Programa do Ensino Secundário sob o ponto de vista do Género, Em torno do Programa de Filosofia do Ensino Secundário do ponto de vista de Género, Subsídios para um olhar não discriminador sobre o material pedagógico e Do uso da literatura na Transmissão da Filosofia. 16 Os dois primeiros documentos relacionam -se directa e explicitamente com o trabalho proposto pela autora; o terceiro liga -se indisso- luvelmente à problemática em causa, mas não apresenta um enfoque literal no tema que agora se analisa. Estes documentos não serão ser exaustivamente dissecados: isso es- taria fora do propósito pretendido. No entanto, alguns aspectos serão referidos, outros meramente aludidos, visto serem essenciais para esta breve reflexão.

Numa análise, item a item do programa, a autora inventariará fundamentadamente sugestões de trabalho, apontará caminhos para que se evite, mesmo involuntariamente, reforçar a discriminação do sexo na leitura e na transmissão dos conteúdos da disciplina. Efectivamente, e em torno do que se tem vindo a dizer, a comunicação filosófica é um acto difícil e com vários constrangimentos, sobretudo aqueles com um enraizamento