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Uma História que não foi contada marIa Do Céu PIres

Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa (1984), Doutorada em Filosofia pela Univer­ sidade de Évora (2014); autora das obras: Pão & Rosas – exercícios de cidadania, Colibri, 2012 e Ética e

Cidadania – um diálogo com Adela Cortina, Colibri, 2015.

Onde poderemos encontrar uma História da Filosofia que faça referência aos ensi- namentos de ética que Temistocleia, sacerdotisa de Delfos, terá transmitido a Pitágo- ras? E uma História Universal em que os conflitos, as guerras, os jogos de poder, mas também as criações, incluam toda a Humanidade, isto é, homens e mulheres? Entre as muitas questões que poderia colocar, estas duas servem de exemplo para aquilo que é, na minha perspetiva, um problema essencial da nossa evolução histórica e cultural: por que razão metade da Humanidade foi remetida, historicamente, para uma situação de invisibilidade?

Face a esta interrogação fundamental surgem distintas possibilidades de resposta, apresentando cada uma um certo horizonte de interpretação acerca do passado e, por consequência, de perspetivação do futuro. Neste âmbito, são de salientar os trabalhos da investigadora Riane Eisler que defende a existência, subjacente a toda a cultura huma- na, de dois modelos organizativos, o dominador e o de parceria e cooperação. Partindo de recentes descobertas arqueológicas sobre a arte, a tecnologia e a religião na pré- -história, a autora de The Chalice and the Blade1 atesta a existência de sociedades não hierarquizadas, pacíficas e onde a diferença não era equacionada no sentido de inferiori- dade nem no sentido de superioridade. Mesmo que a evolução neste sentido inicial tenha sido interrompida quando guerreiros nómadas impuseram aos agricultores sedentários um modo de vida onde prevalecia o poder baseado na força, na ameaça e no domínio dos homens sobre as mulheres, a existência deste tipo de sociedades que apontavam para a parceria, assegura a possibilidade de um modelo de organização social que não seja dominador.

Deste modo, como resultado da confluência dessa nova visão do passado com os mais recentes estudos em várias áreas científicas, nomeadamente as teorias dos siste- mas, coloca -se como viável um outro modelo de sociedade e de socialização. Apesar de milénios de dominação, que levaram a acreditar na “naturalidade” e na “inevitabilidade” da superioridade de uns seres humanos sobre outros, podemos conceber outro modo

1 EISLER, Riana, The Chalice and the Blade, O Cálice e a Espada, trad. Luís Torres Fontes, Porto, Via Óptima, Oficina Editorial, 2003.

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de vida, dado que também sabemos que não somos determinados geneticamente, de forma rígida, para determinadas funções. Biologicamente, não nos encontramos pré- -definidos, pelo contrário, temos potencialidade para os mais diversos comportamen- tos, sendo que o conteúdo do estereótipo que define lugares e funções é uma construção social que não está imune à tarefa crítica. Homens e mulheres são cocriadores da sua evolução, possuidores de múltiplas capacidades e dotados de flexibilidade adaptativa e, por isso, transformadora. O século XX foi, talvez, o século em que a consciência desta situação se tornou mais percetível e deu origem a muitos debates e produções teóricas nas várias áreas do conhecimento. Não por acaso, foi identificado por Vitoria Camps como “século das mulheres”.

Neste rio caudaloso dos que buscam justiça, juntam -se contributos de afluentes di- versos, vozes de homens e de mulheres que pretendem dar corpo à tradição humanista, concretizando uma outra leitura da História e da realidade. Vários movimentos sociais, incluindo os diferentes tipos de feminismos, são expressão destas “fendas” no sistema que apontam para um horizonte onde o paradigma não seja de domínio de homens sobre a natureza, sobre outros homens, sobre as mulheres. Por diferentes vias argumentativas, todos justificam a convicção de que é possível ser de outro modo!

É precisamente esta asserção que as mulheres filósofas do século XX, na sua diversidade de tendências, interesses e objetivos, confirmam. Entendo poder situar nesta ideia/base a síntese adequada da obra da filósofa acerca da qual me proponho apresentar um brevíssimo comentário, a Professora Fernanda Henriques.

Esta, num texto publicado nos anos 902, lembra que o que fixou María Zambrano à filosofia terá sido uma explicação de Zubiri sobre as Categorias de Aristóteles, que lhe mostrou um espaço de luz: a penumbra tocada de alegria. Julgo ser também um espaço de luz que perpassa a sua vida e o seu pensamento. Assim tem construído o caminho: entre a luminosidade de uma racionalidade expressa na clareza e no rigor da linguagem e dos argumentos, e as sombras do que, não sendo discursivo, é vivido e sentido.

Inserindo -se numa perspetiva hermenêutica da filosofia, com forte inspiração no pensamento de Paul Ricœur, Fernanda Henriques apresenta uma outra leitura da Histó- ria e, particularmente, da História da Filosofia. Convicta de que é essencial desnaturali- zar o que é do domínio cultural, o seu percurso intelectual é dominado pela necessidade de olhar para a tradição cultural do Ocidente colocando outras lentes, as que permitam ver o que ficou oculto, isto é, retirar da penumbra da História os elementos que pode- rão contribuir para uma outra interpretação da Humanidade, no sentido da sua efetiva diversidade e que não corresponda apenas ao modelo do universal masculino, preten- samente neutro.

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Fernanda Henriques é autora de uma vasta obra relativamente às questões de géne- ro, destacando -se no panorama do pensamento filosófico português pelo seu contributo para a elaboração de uma área do saber em que as condições da vida humana e do sen- tido da existência são fulcrais. À dimensão hermenêutica que acompanha a sua atividade de investigação, junta -se uma vertente epistemológica, corporizando o que Bachelard designa como situação de rutura, pois há uma nova área do saber que se destaca e ganha estatuto de cientificidade. Com efeito, o desenvolvimento e a legitimação dos estudos sobre as mulheres possibilita, assim, a consolidação de um lugar próprio (embora em interconexão com outros saberes, nomeadamente ao nível das Ciências Sociais e Huma- nas, no sistema de pensamento em finais do século XX, inícios do XXI.

Para além da produção teórica, é de salientar, pelo seu caráter diversificado e conti- nuado, a intervenção de Fernanda Henriques na vida social e académica, concretizando- -se na participação em diferentes instituições que desenvolvem trabalho no âmbito das questões da igualdade. 3 Desde os inícios dos anos 90 até à atualidade, Fernanda Henri- ques organizou, com diferentes equipas, um amplo número de Colóquios e de Conferên- cias em universidades portuguesas e estrangeiras.4 De sublinhar, também, a sua ligação

3 Entre 1992 e 1995 participou na Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulheres (CIDM). Nessa qualidade, integrou o Grupo de Trabalho Europeu “Igualdade de Oportunidades entre Rapazes e Rapari- gas em Educação”. Foi Secretária da Comissão Diretiva da Associação Portuguesa dos Estudos sobre as Mulheres (1997/1999) e Vice -Presidente da mesma entre 2002 e 2009. Entre 2003 e 2008, Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, por proposta da CIDM. Foi, igualmente, uma das fun- dadoras da Associação Portuguesa de Teologias Feministas. Neste mesmo âmbito, é de sublinhar a sua

atividade docente. Foi responsável por várias unidades curriculares de Mestrado e de Pós -Graduação, em diferentes Universidades: – A Racionalidade na Modernidade e na Pós ­Modernidade e as questões

feministas; Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos da Coeducação (Universidade do Porto, 2002/2003);

– Conceções Filosóficas e Representações do Feminino (Universidade de Coimbra, 2003/2004). No ano letivo de 2005/2006 foi responsável pela criação e pela coordenação, na Universidade de Évora, do Mes- trado “Questões de Género e Educação para a Cidadania”, tendo lecionado as seguintes unidades curri- culares: Conceções filosóficas e representações do feminino, A Linguagem e a construção da identidade

e A presença das Mulheres na História do Pensamento Ocidental. No ano seguinte, para além de conti-

nuar a coordenação do referido Mestrado, foi responsável pela lecionação da unidade curricular Media,

Representações Sociais e Estereótipos, integrada no Mestrado em Desenvolvimento Pessoal e Social.

Orientou várias Dissertações de Mestrado e de Doutoramento sobre estas temáticas:

– Discursos sobre o aborto. Uma perspetiva feminista, Género, Educação e pobreza. – A perspetiva Ética de Adela Cortina.

– Maria de Lourdes Pintasilgo Primeira Ministra do V Governo Constitucional. Um olhar sobre os olhares da imprensa.

– Olympe de Gouges e a Cidadania das Mulheres.

– O impacto do processo RVCC no exercício da Cidadania no feminino. – Os fundamentos filosóficos do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. – Justiça e Cuidado em Adela Cortina – contornos da ética num mundo global.

A primeira e a última encontram -se publicadas em livro. As duas últimas são Dissertações de Doutoramento. 4 A título de exemplo, destaco as seguintes:

-Uma filosofia no feminino (Colóquio Internacional, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, (1998);

- Género, Diversidade e Cidadania, (Colóquio Internacional, Universidade de Évora, 2007);

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ao projeto de investigação interdisciplinar “Uma Filosofia no Feminino” que decorreu, desde 1997, na Faculdade de Letras de Lisboa e que integrava as seguintes linhas de pesquisa: a responsabilidade dos filósofos pela secundarização das mulheres; a divul- gação das mulheres que foram filósofas e do respetivo trabalho; as representações do feminino na cultura ocidental, nas suas diferentes expressões. Este projeto, juntamente com a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres e a sua publicação, a revista ex aequo, merecem um lugar de destaque no panorama da investigação feminista em Portugal.

Participou, também, com a apresentação de comunicações, em inúmeros Colóquios e Conferências e coordenou vários projetos de investigação. Em paralelo com esta ativi- dade, encontra -se um vasto leque de publicações sobre temáticas variadas que incluiu obras em volume, recensões e artigos em revistas científicas e em obras coletivas.5

Tomando como ponto de referência parte dessa produção escrita pretendo, na con- tinuação, apresentar um breve esboço de alguns dos seus contributos para uma filosofia feminista e que me parecem relevantes pelo seu interesse quer para a reflexão filosófica em geral, quer para a intervenção no espaço público e para a construção de uma forma

nicações Internacionais em Homenagem a Maria de Lourdes Pintasilgo, Lisboa e Évora, 2009); - E Sara riu ­se: Mulheres que ousaram a desconstrução, (I Colóquio de Teologias Feministas, Lisboa, 2011);

­  Se eu Lhe tocar, (II Colóquio de Teologias Feministas, Lisboa, 2012);

- «... que não haja indigentes entre vós.» – da dignidade e do porvir, (III Colóquio de Teologias Feministas,

Lisboa, 2013);

- Novas Cartas, Novas Cartografias: Re ­configurando Diferenças no Mundo Globalizado, (Colóquio In-

ternacional, Universidade de Évora, 2014);

-“Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja que está em ruínas”. A Reforma da Igreja Católica, (IV Colóquio de Teologias Feministas, Lisboa, 2014);

5 Das obras publicadas em volume, destacam -se:

1994, Igualdades e Diferenças, propostas pedagógicas, Porto, Porto Editora; 1994, Projetos de Vida –

Projetos de Aprendizagem, Estudo Exploratório, Lisboa, CIDM; 1997, Igualdade de Oportunidades e For­

mação Inicial de Docentes, Lisboa, CIDM e U.A. (Coautora, com a equipa de projeto I.O.F.I.D.); 1999, ex aequo, Revista da associação de estudos sobre as mulheres – Representações sobre o feminino, n.º 1

(Coeditora, com Maria Luísa Ribeiro Ferreira); 2000, Coeducação e igualdade de oportunidades, Lisboa, CIDM. (em coautoria com Teresa Pinto. Publicação traduzida em Italiano, Espanhol e Inglês); 2004, n.º 9 de ex aequo, RRevista da associação de estudos sobre as mulheres, subordinado ao tema: Filosofia

e Literatura em textos de Mulheres; 2005, n.º 12 de ex aequo: Um legado de Cidadania. Homenagem a Maria de Lourdes Pintasilgo; 2006, Teologia e género – perspetivas, ruídos, novas construções, Coim-

bra, Ariane (coordenação conjunta com Manuela Silva); 2009, Género, Diversidade e Cidadania, Lisboa, Colibri (edição); 2010: CDRom: Cuidado, Justiça e Espaço Público, (org.); n.º 21 (caderno temático) da revista ex aequo: Maria de Lourdes Pintasilgo: Ecos de palavras dadas; 2012, Mulheres que ousaram ficar.

Contributos para a teologia feminista, Leça da Palmeira, Letras e Coisas (cocoordenação com Teresa

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de vida mais igualitária e mais justa. Darei especial atenção a três áreas em que a ques- tão da igualdade/desigualdade e as problemáticas do feminino se colocaram ao longo da História de um modo muito incisivo: na Filosofia, na Teologia e na Educação. Em relação a estas áreas, Fernanda Henriques adota a posição crítica, quer no sentido de desconstru- ção, quer no de edificação, o que, neste caso, significa a elaboração das bases teóricas da igualdade. Significa isto que, um pouco à boa maneira cartesiana, segue o lema “para construir um novo edifício, é preciso derrubar o velho”.

Comecemos pela Educação.

Desde o início da década de 90 com a publicação da obra “Igualdades e Diferenças. Propostas pedagógicas”, é manifesta a sua preocupação acerca da igualdade de oportu- nidades ao nível da educação, chamando a atenção para o facto de que a sua existência no plano formal não seja garantia de uma efetiva igualdade. A esse título, é bem exempli- ficativa a questão da linguagem e o uso corrente do masculino com abrangência univer- sal. A questão da linguagem, entendida como expressão de uma visão do mundo, é, na verdade, da maior importância. Também ela tem que ser sujeita a exame crítico que pro- porcione mudanças em vários setores mas, particularmente, nos sistemas educativos.

No artigo “Em busca de uma pedagogia da igualdade”6, Fernanda Henriques apre- senta alguns aspetos do projeto de investigação -ação sobre o peso da variável sexo na representação que os/as docentes têm sobre o que é um “bom aluno”. Com este projeto, pretendia -se a criação de condições para o desenvolvimento da autorreflexão, para a aquisição de competências relacionadas com a questão da relação sexo/género e currí- culo, e criar mecanismos de intervenção a partir das práticas de reflexão e de debate. O ponto de partida da investigação foi a perplexidade face à constatação da contradição entre o êxito escolar e o êxito social das raparigas, traduzida na ausência quase total de mulheres na vida política e económica, em todas as áreas de poder e de decisão.

Numa outra publicação “Coeducação e Igualdade de Oportunidades”, as mesmas problemáticas estão presentes.7 É dado um particular destaque à questão da formação de docentes. De facto, a escola assumiu, por um lado, um papel libertador dado que, se até meados do século XX, o seu acesso era vedado à maior parte das mulheres, à medida que se foi generalizando e a escolaridade se tornou acessível a um número sig- nificativo de mulheres, um enorme campo de possibilidades, de acesso à informação, de desenvolvimento de potencialidades, se abriu. Por outro lado, convém não descurar uma outra vertente: a escola funciona, também, como reprodutora das representações sociais e dos estereótipos vigentes, quer ao nível das práticas pedagógicas, quer ao nível dos currículos. Assim, paradoxalmente, embora a escola funcione como reprodutora da

6 HENRIQUES, Fernanda, Em busca de uma pedagogia da igualdade, Inovação, n.º 96, 1996, pp 127 -137. 7 Cadernos Coeducação/ Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Lisboa, 1999.

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desigualdade, ela é, igualmente, o palco onde, através do pensamento e do seu exercício crítico, se podem construir condições de mudança.

Passemos agora à Teologia e à Filosofia, os dois campos a quem pode ser atribuída grande parte da responsabilidade pela secundarização e invisibilidade das mulheres, na perspetiva de Fernanda Henriques. Em seu entender, importa fazer uma reinterpretação da nossa herança cultural através de dois movimentos: 1) revisitar alguns dos “clássicos” da História da Filosofia, trazendo à luz a sua perspetiva misógina e, ao mesmo tempo, os elementos do seu pensamento que a receção canónica da obra ignorou; 2) dar voz a mulheres e a homens que, na Filosofia e/ou na Teologia, pensaram de modo diferente e produziram obra sem que esta tenha sido integrada na visão cultural dominante.

Na obra “Teologia e género. Perspetivas, ruídos, novas construções”, publicada em 2006, com Prefácio de Anselmo Borges e organizada conjuntamente por Fernanda Hen- riques e Manuela Silva, são apresentados alguns estudos que se afirmam como con- tributo para uma Teologia Feminista. Considerando que em Portugal são ainda muito limitadas as participações das mulheres como sujeitos de reflexão teológica, as orga- nizadoras pretendem dar voz a algumas mulheres e a alguns homens que incluem na reflexão teológica a perspetiva de género, facilitando, deste modo, o enriquecimento da Teologia enquanto campo teórico mas também o desenvolvimento da espiritualidade na Igreja e, com consequências indiretas, em toda a sociedade. Diz, a este propósito, Fernanda Henriques: “Moveu -nos, sobretudo, a ideia de que a reflexão teológica na pers- pectiva de género pode ter uma influência muito positiva no modo de as mulheres se olharem como seres humanos integrais, de, a partir daí, serem capazes de simbolizar e perspectivar os seus papéis pessoais e colectivos com uma maior amplitude e, como consequência final, de poderem contribuir para a construção de mundividências mais justas e de valores mais igualitários e, assim, influenciarem o desenvolvimento cultural e social no seu todo.”8

Analisando, a partir de dados empíricos (1990 a 2004), o modo como o tema da igualdade de género se apresenta nos Cursos de Teologia e de Ciências Religiosas da Universidade Católica, Fernanda Henriques constata um enorme vazio, quer nas ofertas curriculares, quer nos trabalhos finais de Mestrado ou Doutoramento, apesar da incidên- cia dessas temáticas noutras que são objeto de discussão pública: ecologia, procriação medicamente assistida e tudo o que se relaciona com a engenharia genética.

Num outro texto, publicado em 2014 “A “teologização” da inferioridade feminina e da sua idealização”,9 a filósofa aponta a ambiguidade que esteve presente na Idade Média e

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que ainda hoje prevalece na Igreja Católica na forma como concebe o ser mulher e o fe- minino, em que ao lado de uma grande misoginia se regista, igualmente, um significativo esforço teórico para salvar a ideia de igualdade de homens e de mulheres perante Deus, na medida em que partilham a condição de criaturas. Indo ao início, a S. Paulo, e àquela que é interpretada como a maior afirmação de igualdade do cristianismo (Gálatas, 28), Fernanda Henriques constata que não foi esta que prevaleceu mas sim outras afirma- ções de S. Paulo, retomadas por S. Agostinho e sucessivamente por outros teólogos, e que se caracterizam pela legitimação da subordinação social e teológica das mulheres. Neste contexto de procura de novos elementos de interpretação da tradição, é destaca- da a existência, em paralelo, de uma certa idealização do feminino, concretizada através da exaltação de duas figuras: Maria e Maria Madalena.

Toda a ambiguidade caraterística da Idade Média está ainda bem patente na exis- tência de personalidades femininas com autoridade e com poder na época. É o caso de Hildegarda de Bingen, fundadora do mosteiro com o mesmo nome e autora de uma vasta obra que abrange para além da Teologia, a Filosofia, a Medicina e a Música. O modo de vida nos conventos e alguns movimentos em particular, por exemplo, o das Beguinas, constituem, segundo Fernanda Henriques, exemplo de uma época que não pode ser lida apenas no sentido de uma visão negativa e discriminatória sobre as mulheres. A situação é mais complexa e, nesse sistema, também existiram “brechas”. Importa trazê -las para o campo da memória e entender por que razão não se desenvolveram.

Neste mesmo sentido se pode entender a obra Mulheres que ousaram ficar. Contri- butos para a teologia feminista que agrupa textos do 1.º Colóquio Internacional de Teo- logia Feminista realizado em Lisboa, em novembro de 2011.10 No texto que escreve em conjunto com Teresa Toldy e que é incluído na obra, Fernanda Henriques faz a análise de alguns documentos do Vaticano, onde se mantém a retórica da exclusão e a atribuição do domínio público ao homem e do espaço privado à mulher cuja feminilidade se conti- nua a situar fundamentalmente na função de maternidade. O problema, a nível religioso, continua a ser a reprodução da construção histórica da inferioridade, excluindo a mulher de muitos aspetos da vida, nomeadamente da vida religiosa.

No que concerne à História da Filosofia, Fernanda Henriques inspira -se no lema do projeto artístico The Dinner Party desenvolvido por Judy Chicago nos anos 70: “ a nossa herança é o nosso poder” e vai procurar na tradição filosófica textos e autores/as que possam legitimamente ser considerados como passado das atuais lutas por reconhe- cimento e pela igualdade. É preciso procurar na tradição o que não foi desenvolvido, o