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3 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

4.1 Uma breve noção de identidade

Para traçarmos um conceito de identidade, faz-se necessário um breve histórico, tendo em vista que o mesmo é complexo, ambíguo e multifacetado, sendo ainda discutido e teorizado por diversas áreas do conhecimento. Na busca de tal elucidação quanto à sua origem, verificamos que o conceito de identidade teve suas primeiras formulações na filosofia antiga da Grécia. A identidade, desde o seu nascimento se apresentou como um conceito que provocou divergências que perduram até os nossos dias. Foram Parmênides, Aristóteles e Heráclito os filósofos que propuseram os primeiros ensaios sobre o conceito. Aristóteles, no século III a.C, nos apresenta a seguinte definição:

Em sentido essencial, as coisas são idênticas no mesmo sentido que são unas, já que são idênticas quando é una a sua matéria (em espécie ou em número) ou quando a substância é una. Portanto, é evidente que identidade é, de algum modo, uma unidade, quer a unidade se refira a mais de uma coisa, considerada como duas, como acontece quando se diz que a coisa é idêntica a si mesma (ARISTÓTELES apud ABAGNANO, 2007, p. 612).

Essa definição de identidade, Dubar (2009, p. 11) afirma que podemos denominar de essencialista, seja qual for o sentido que se dê ao termo, pois “[...] repousa na crença em ‘essências’, realidades essenciais, substâncias ao mesmo tempo imutáveis e originais”. Na concepção essencialista, de acordo com Sousa (2000), o sujeito nasce com certas características, que possuem a tendência a permanecer com ele, pois são naturais e, dessa forma, independentes do envolvimento deste nas relações sociais. Por sua vez, Woodward (2012, p.15) assegura que “O essencialismo pode fundamentar sua afirmações tanto na história como na biologia;” para “[...] buscar alguma certeza na afirmação da identidade

apelando seja à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado sejam as ‘verdades’ biológicas”. Por sua vez, Cruz (2010) afirma que esse conceito de identidade está baseado na concepção de sujeito cartesiano, o qual possui uma identidade fixa, ou seja, que não sofre alterações no decorrer do tempo.

Contudo, segundo Dubar (2009, p. 12), parece ter sido Parmênides, no século V a.C, numa província da Grécia antiga, o primeiro a enunciar este conceito, por meio da fórmula “O ser é, o não-ser não é”. Diante das diferentes categorias de essências, haveria então, um ponto de convergência entre elas, pois é por meio do que é essencial que nos tornamos idênticos a nós mesmos. Pontua ainda que tal fórmula “[...] foi entendida como a afirmação de que 'a identidade dos seres empíricos', sejam eles quais forem, é 'o que permanece o mesmo apesar das mudanças, sua semelhança a si mesmos, fora do tempo, o que permanece idêntico”.

Assim, a definição essencialista de identidade “[...] visa definir a diferença, o que constitui a singularidade de alguma coisa ou de alguém relativamente a alguém ou alguma coisa diferente: a identidade é a diferença”. Essa maneira de se pensar a identidade, determina que o pertencimento do indivíduo é dado a priori e, sendo assim, independentemente do tempo, cada um se tornará o que é, realizará o seu destino e permanecerá “idêntico ao seu ser essencial” (DUBAR, 2009, p. 12).

Contrapondo-se à visão essencialista da identidade, surge outra perspectiva com características consideradas não essencialistas, a qual Dubar (2009) denomina de existencialista ou nominalista. Este ponto de vista divergente do primeiro, teria se originado também na filosofia antiga, pois teria sido Heráclito quem o formulou, ao escrever o seguinte aforismo: “não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio”, nada permanecendo igual eternamente, ou seja, “tudo flui”. Nesse sentido, Castells (2008, p. 24) contribui, pontuando que “[...] do ponto de vista da teoria social, nenhuma identidade pode constituir uma essência, e nenhuma delas encerra, per se, valor progressista ou retrógrado se estiver fora do contexto histórico”.

A identidade está sujeita a mudanças ao longo do tempo, pois não há essências eternas, sendo que “a identidade de todo e qualquer ser empírico depende da época considerada, do ponto de vista adotado”, sendo que são as palavras, os nomes é que servirão num dado contexto, às categorias que nos permitem “[...] dizer alguma coisa sobre esses seres empíricos sempre mutáveis [...]”. Essas categorias são, então, dependentes do sistema de palavras em uso, os quais servem para nomeá-las (DUBAR, 2009, p. 13). Nesse sentido, Silva (2011, p. 77) acrescenta que “É apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais”.

Sendo assim, Woodward (2012) demonstra que a identidade não é o pólo oposto da diferença, pois ela depende dessa diferença para ser construída. Sugere também que uma identidade seja estabelecida na relação com outras identidades, ou seja, aquilo que somos somente pode ser construído na relação com aquilo que não somos. Essa diferença, por sua vez, pode ser simbólica ou social e se estabelece por meio de sistemas classificatórios, que nos permitem ordenar o mundo em nossa volta, dando sentido ao mundo social e construindo significados sobre ele, que são reafirmados nas falas e nos rituais. Apoiando a ideia de interdependência entre a identidade e a diferença, sendo elas frutos de uma criação linguística, Silva (2012, p. 76) ratifica que “Dizer que são o resultado de atos de criação significa dizer que não são ‘elementos’ da natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas”.

Contrapondo também à ideia de uma identidade essencial, Hall (2006, p. 12-13) argumenta que “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas [...] com cada uma das quais poderia [...]” se identificar, mesmo que temporariamente. Sendo assim, Silva (2012, p. 76) vai mais longe ainda, e acrescenta que “Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social”.

Reforçando estas ideias, Coutinho, Krawulski e Soares (2007, p. 30) argumentam que “a identidade tem sido apresentado como um conceito dinâmico, adotado frequentemente para compreender a inserção do sujeito no mundo e sua relação com o outro”. É nessa perspectiva que Ciampa (2005, p. 90) assegura que “O indivíduo isolado é uma abstração. A identidade se concretiza na atividade social. O mundo, criação humana, é o lugar do homem. Uma identidade que não se realiza na relação com o próximo é fictícia, é abstrata, é falsa”.

Dubar (2007, p. 15) assegura ainda que cada indivíduo possui pertencimentos diversos, que podem ser alterados no decorrer do seu ciclo de vida e, que nesse contexto de mudança e fragmentação surge um novo e emergente tipo de forma indentitária, a qual chama de societária. Essa forma supõe “[...] a existência de coletivos múltiplos, variáveis, efêmeros, aos quais os indivíduos aderem por períodos limitados e que lhes fornecem recursos de identificação que eles administram de maneira diversa e provisória”.

É sobre esses pertencimentos diversos que Hall (2005, p. 13) argumenta que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. Não existiriam, então, formas de pertencimentos que se pudessem considerar essenciais, “o que existem são modos de identificação, variáveis no decorrer da

história coletiva e da vida, destinações a categorias diversas que dependem do contexto”, que produzirão ao mesmo tempo “identidades para si” e “identidades para outrem” (DUBAR 2007, p. 14).

Concordando com as ideias anteriormente expostas, Coutinho, Krawulski e Soares (2007, p. 29) afirmam que “o conceito de identidade […] vem sendo questionado por diferentes áreas do conhecimento, desconstruindo a ideia de uma identidade única, integral e originária e criticando os modelos essencialistas de compreensão”. Nesse mesmo sentido, os estudos culturais desenvolvidos por Hall (2006, p. 8-14) demonstram que a concepção de sujeito centrado, possuidor de uma “identidade unificada e estável” está mudando, uma vez que “as sociedades modernas são [...] por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente”. Essas mudanças estão “[...] fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”. Esta perda de sentido que o sujeito tem de si, pode ser chamado de “deslocamento ou descentração do sujeito”. Sobre estes aspectos, Bauman (2005, p. 19) relata que “estar total ou parcialmente 'deslocado' em toda parte, não estar totalmente em lugar algum […] pode ser um experiência desconfortável e por vezes perturbadora”.

Estudos desenvolvidos na sociologia, por Dubar (2009), apontam que parece haver um movimento histórico que ao mesmo tempo em que é muito antigo, também é muito incerto, o qual estaria conduzindo à passagem de um modo de identificação a outro, das formas comunitárias às formas societárias de identidade. As primeiras crêem na existência de “[...] agrupamentos chamados ‘comunidades’, consideradas como sistemas de lugares e nomes pré-atribuídos aos indivíduos e que se reproduzem de modo idêntico através das gerações” (grifos do autor). As formas societárias de identificação “[...] supõem a existência de coletivos múltiplos, variáveis, efêmeros, aos quais os indivíduos aderem por períodos limitados e que lhes fornecem recursos de identificação que eles administram de maneira diversa e provisória” (DUBAR, 2009, p. 15).

Quanto aos movimentos que impulsionam as sociedades modernas, Coutinho, Krawulski e Soares (2007, p. 29) argumentam que “a contemporaneidade trouxe em seu bojo transformações sociais, econômicas, tecnológicas e geopolíticas em escala mundial, com implicações para os modos de ser dos sujeitos e suas formas de agir na sociedade”. Seriam, então, estas transformações que, de acordo com Hall (2007) estariam causando o deslocamento ou a descentração dos sujeitos. Sobre estes descentramentos característicos da contemporaneidade. O autor faz uma análise na qual distingue três concepções diferentes de

identidades, que foram construídas em momentos históricos diferentes: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno (HALL, 2007).

A concepção de sujeito do iluminismo se caracteriza pela centralidade e unificação, sendo ele dotado de capacidades como a razão, a consciência e a ação. Nessa concepção o sujeito permanece com a mesma identidade na essência, ou seja, não alterava o seu núcleo interior ao longo do tempo e do desenvolvimento do indivíduo (CHAMON, 2003). Quanto à concepção do sujeito do iluminismo, Hall (2007, p. 10-11) afirma que este era:

[...] um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou ‘idêntico’ a ele – ao longo da existência do indivíduo.

Na concepção de sujeito sociológico, o indivíduo continua tendo um núcleo identitário interior, porém perde a sua solidez, uma vez que deixa de ser imutável devido à “[...] crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado pela relação com ‘outras pessoas importantes para ele”. Essa modificação ocorre, por meio das interações com os outros indivíduos presentes no seu meio social, “[...] que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2007, p. 11). O sujeito sociológico ainda possui “[...] um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas que este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”. O espaço existente entre o mundo individual e o mundo social é preenchido, uma vez que “[...] projetamos ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os parte de nós” (HALL, 2007, p.11).

Com o surgimento do sujeito pós-moderno, por sua vez, ocorre a perda total da essência interior do indivíduo, ou seja, o seu “eu real” deixa de ser coerente e se torna fragmentado. Deixa de ter uma única identidade “[...] fixa, essencial ou permanente”, pois sujeito pós-moderno “[...] assume identidades diferentes em diferentes momentos [...]”. Dessa maneira, passamos a possuir não mais uma, mas várias “[...] identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções [...] com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2007. p. 13). É nesse sentido que Dubar (2009, p. 72) acrescenta que “[...] nas sociedades modernas, os estatutos e os papéis são múltiplos e que, portanto, o Eu se torna ‘plural’”. Nessa mesma perspectiva, Bauman (2005, p. 19) pontua que:

“as ‘identidades’ flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar alerta constantemente para defender as primeiras em relação às últimas”.

A partir destas contribuições, é possível verificar o caráter mutante e diríamos quase “volátil” do conceito de identidade, que está num constante “vir a ser”, visto que ela não é estática e nunca está completamente acabada. A esse respeito Ciampa (2005, p. 133) acrescenta ainda que “A questão da identidade, assim, deve ser vista não como uma questão apenas científica, nem meramente acadêmica: é, sobretudo, uma questão social, uma questão política”, pois “[...] identidade é metamorfose. E metamorfose é vida” (grifos do autor).

Por sua vez, Coutinho, Krawulski e Soares (2007, p. 31) afirmam que a ênfase das teorias sociais está na:

[…] dinâmica e na processualidade, a interdependência indivíduo e coletivo, a análise da alterização e da indissocialidade entre identidade e diferença, a recusa da essencialidade e da soberania do sujeito e, ainda, a investigação dos processos identiários construídos no cotidiano.

Os estudos culturais, por sua vez, focalizam os processos de subjetivação, pois geram “[…] uma compreensão de identidade como algo múltiplo, instável e dependente da adesão a grupos, afirmando uma identidade coletiva e não mais como uma realização individual” (COUTINHO, KRAWULSKI E SOARES, 2007, p. 31).

Verificamos que as noções de identidade apresentadas até este ponto, apresentam a possibilidade de uma abordagem tanto pela ótica essencialista, como pela perspectiva não essencialista. Uma maior ênfase na descrição da abordagem não essencialista foi dada no subitem anterior, tendo em vista que essa perspectiva irá permear este estudo. A partir desses discernimentos iniciais, pode-se buscar um maior aprofundamento do conceito, assim como percorrer os processos pelos quais a identidade é formada e transformada, numa ótica solidária a Ciampa (2005) que a define como uma “metamorfose”. Cabe ressaltar também que se estudou a formação da identidade, neste capítulo, sob uma perspectiva interdisciplinar, sendo a psicologia social a área do conhecimento na qual se buscou as teorias que forneceram o suporte principal, ou seja, o nosso “fio condutor”. Como se trata de um trabalho de abordagem interdisciplinar, outras áreas do conhecimento, como a sociologia, a psicologia, a filosofia, a antropologia e a história, servem também de bases teóricas para esta pesquisa.

A partir da breve noção de identidade descrita até este ponto, pode-se aprofundar e adentrar no campo conceitual e processual, que diz respeito tanto a construção como a

reconstrução da identidade pessoal. Este assunto é tratado no próximo subitem, permitindo fazer uma articulação com o nosso objeto de pesquisa.