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“Uma cortina de tampas”, na janela de uma “escola como política de vida ”

Parte III – “As Pessoas Crescidas nunca entendem nada Sozinhas”…Ver para Além de um Chapéu

Capítulo 3. “Uma cortina de tampas”, na janela de uma “escola como política de vida ”

Francisco: Pois, é como nós, estamos a pôr tampas em garrafões para ajudar as pessoas que

precisam de cadeiras de rodas.

Eu: Vocês estão a recolher tampinhas? Ainda não me tinham contado… Maria: Sim, para comprar cadeirinhas de rodas…

António: para fazer cadeirinhas de rodas…

Francisco: porque se não eles não conseguem andar. (27/11/13; Nota de Campo 5)

O excerto apresentado acima retrata o aparecimento de uma nova temática levada pelas crianças para o processo de investigação. A temática e a iniciativa da recolha de tampinhas estava inserida no projeto educativo da turma. O tema foi transportado pelo Francisco para um dos encontros com as crianças e a questão ganhou uma maior dimensão quando as crianças em conversa, se questionavam sobre o processo que estaria na origem do contributo das tampas para o fim das cadeiras de rodas.

Na primeira conversa sobre este processo, as crianças invertiam o processo de liderança e mediação, próprio do sistema e dinâmica escolar, tradicionalmente gerido pelo adulto. Comunicavam a atividade que estavam a desenvolver em contexto educativo, cientes que aquele era um aspeto importante para a investigação. Na comunicação do tema foram os principais informantes, descrevendo o processo e respondendo às questões colocadas pelos adultos “Então pode ser qualquer tampa?”, “ É qualquer tampa! De iogurte, de garrafões…”, respondia o Francisco com segurança. Foi ainda visível um exercício de pensamento conjunto, despoletado pelas próprias crianças, sobre o processo de transformação das tampinhas.

Maria: Mas como é que as tampas se transforam em cadeiras de rodas? (27.11.13; Nota de

Campo 5)

O claro envolvimento das crianças no projeto das tampinhas e a curiosidade das mesmas face ao processo que conduzia à ação concreta da aquisição de cadeiras de rodas, deixa claro o pensamento de Sarmento (2002, p. 278) que afirma que a escola “pode pouco” face à exclusão social, por este ser um fenómeno estrutural, mas que “esse pouco que pode ser incomensurável se o projecto educacional fôr uma forma de garantir um processo político-pedagógico de transformação social e institucional”. O autor transporta o contributo de Giddens (1994) “política de vida”, transformando-o numa possível metáfora da escola, considerando a conceção de “educação como utopia realizável”. Assim, Sarmento defende que se assuma a educação como “política da vida” (…), ou seja, algo que existe para ser transformado e que, no seu presente, é percepcionado como um projecto pessoal e social, mobilizador da capacidade de transformação e de mudança que os actores educativos possuem” (2002, p. 278).

Foi esta capacidade de transformação e mudança que os atores educativos possuem que foi observada, quer pela mobilização e determinação do Francisco que pretendia pedir a colaboração da figura

67 Sarmento (2002, p. 278).

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parental masculina para construir cadeiras de rodas com tampas suportadas com “parafusos especiais”, pelo desconhecimento do processo inerente a este projeto, ou mais tarde, a sua determinação em pedir ao pai que construísse cadeiras de rodas de brincar para crianças que não tinham brinquedos, ou a vontade do António em se dirigir a uma “loja” para trocar as “tampinhas” por “dinheirinho” para a aquisição das cadeiras de rodas. Assim, afere-se que a “acção política das crianças tanto se realiza como acção individual, de sujeitos autónomos, dotados de opinião e capacidade própria de intervenção, quanto como acção colectiva, enquanto sujeitos envolvidos num processo solidário de asserção e mobilização para a transformação social” (Sarmento, Fernandes & Tomás, 2007, p.203).

António: Mas nós gostávamos de saber como é que com aquelas tampas se fazem cadeiras de

rodas…

Eu: Ai é? Se calhar podemos investigar isso na próxima vez… António: Eu gostava de saber…

Viviana: Olha isso é uma boa pergunta.

Francisco: Olha, eu sei como é que… podíamos assim…

Interrompido

António: Eu acho que…

Interrompido

O Francisco aumenta o tom de voz e o entusiasmo na sua narrativa.

Francisco: Eu pedia ao meu pai, ahh, para comprar parafusos, são uns parafusos especiais para

fazer cadeiras de rodas com tampas… Que tal, eu pedia ao meu pai para comprar para fazer uma cadeira de rodas de tampas…

(…)

Francisco: Eu acho que é assim, o meu pai é bom a trabalhar em muitas coisas… a cortar lenha,

a arranjar carros… tudo o que há à sua frente ele arranja. Então, pedia ao meu pai para arranjar uma cadeirinha de rodas.

Dinis: mas é uma coisa mal… que é…

Interrompido

Francisco: Alguma coisa aqui está mal…

Maria: É que não se consegue fazer cadeirinhas rodas com tampa… Viviana: Era isso que tu ias dizer Dinis?

Dinis: Era, como é que iam empurrar a cadeira de rodas…

Burburinho entre todos… (27.11.13; Nota de Campo 5)

António: Olha eu tive uma ideia, porque não vamos eu, tu e a Viviana à loja e levamos as

tampinhas e trocamos por dinheirinho para comprarmos cadeiras de rodas? (05/12/13; Nota de Campo 6)

A partir desta procura e motivação das crianças gerou-se um círculo de busca de informação sobre o tema e sobre a intenção que lhe subjaz, a solidariedade. As crianças voltaram a debater o assunto com a educadora. Na sala formou-se uma cortina de tampas, em nome da solidariedade.

No discurso do Francisco descobre-se sensibilidade referente àqueles que têm menores possibilidades económicas:

Francisco: Algumas pessoas não têm brinquedos por isso eu ia pedir ao meu pai para fazer uma

cadeira de rodas de brincar.

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Francisco: Ele podia tentar… (27.11.13; Nota de Campo 5)

Francisco – Gostava de investigar…como é que as pessoas…como é que pode comprar cadeiras de rodas se elas são tão caras?

Eu – Achas que é difícil? Francisco – São caras!

Eu – Achas que é difícil para as famílias dos meninos?

Francisco – Elas são caras, muito caras…sabes que eu já fui a uma loja em que havia um monte delas, tão caras, tão caras…o meu pai queria comprar uma mas a minha mãe disse, isso é muito caro! (06.01.14; Nota de Campo 8)

Reitera-se o pensamento de Sarmento:

Pensar a escola como um elo de uma política social. Construir a educação como política social significa duas coisas: primeira, que a educação é uma componente que só faz sentido quando associada às outras componentes das políticas sociais que podem realizar a inclusão social: políticas de saúde, de habitação, de solidariedade e protecção social etc. Esta é uma questão, sobretudo, de projecto político enfatizador da dimensão da inserção e participação social (Sarmento, 2002, p. 279). Acrescenta-se que cabe ao adulto mobilizar a competência da criança para aspetos que sejam para ela, significativos, produzam significados e sejam significantes na lógica da escola como “política de vida”. A participação das crianças e o exercício da sua ação enquanto crianças cidadãs deve ser potenciado pela iniciativa dos adultos em permitir a sua ação no espaço público. Ficou claro, as crianças não são sujeitos de espera, anseiam por contribuir não no futuro do amanhã… mas no aqui e agora!

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Capítulo 4: Breve Incursão… Das Barreiras aos Direitos, em busca de “quatro esquinitas