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3. CONTEXTUALIZAÇÃO DA DÉCADA DE 1990

3.5. Uma descentralização política ainda incompleta

A transferência da política urbana para o município é um processo incompleto, devido ao fato de que o Brasil mantém uma estrutura legal hierárquica e há outras leis federais que interferem na urbanização, as quais os planos diretores devem se submeter, como, por exemplo, a Lei Federal nº 4.771, de 1965, o Código Florestal, que, em 2012, foi revogada e substituída pela Lei 12.651, e a Lei Federal 6.766, de 1979 do parcelamento do solo, ambas anteriores à Constituição de 1988. Há também leis posteriores, como a Lei Federal 8.078, de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, que, em seu Artigo 3º, parágrafo primeiro, estabelece que ―Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial‖. Os movimentos sociais, nas cidades brasileiras, têm se valido muito da legislação federal para combater diversos tipos de práticas abusivas de agentes privados e públicos na construção do espaço urbano. O desmantelamento ou flexibilização do arcabouço jurídico federal passou a ser insistentemente perseguido, por diversos agentes que veem, nas leis federais, restrições a seus negócios, o que ficou muito claro no recente processo de reforma do Código Florestal. Assim como já relatado sobre as reformas da Constituição iniciadas em 1995, toda a estrutura jurídico-legal do país passa a ser alvo de reformas de orientações liberais.

Em Florianópolis há um exemplo que ilustra bem esse esforço para completar o processo de municipalização da política urbana. Em novembro de 2000, o Sindicato da Indústria da Construção Civil - Sinduscon promoveu um debate com a presença de representantes da Prefeitura de Florianópolis intitulado ―Desenvolvimento Urbano e Consciência Ambiental - a Relação Possível‖. Reportagem da Gazeta Mercantil sobre o evento (21/11/2000) destaca declarações dos participantes. O presidente da entidade (Sinduscon), Adolfo César dos Santos, manifesta-se sobre o fato de 42% da área da Ilha ser de

preservação permanente afirmando que ―corremos o risco de não termos mais onde construir, ou ter que direcionar as obras para verticalização‖. O empresário reclama ainda da dificuldade em obter alvarás de construção quando as obras têm que atender legislações municipais, estaduais e federais. Ele argumenta que não pode acontecer do Plano Diretor deliberar que pode se fazer uma obra e depois os construtores se depararem com um rol de dificuldades para levar o projeto adiante e diz que o município é a esfera maior. ―Ele entende seu povo, sabe dos seus anseios‖ (grifo nosso). Os representantes da prefeitura no evento manifestam-se favoravelmente ao reclamo dos empresários. Francisco de Assis Filho, Secretário Municipal de Transportes e Obras, confirma que o Plano Diretor da cidade permite alguns avanços em áreas consideradas de preservação permanente pela União e justifica que isso

não significa que elaboramos um plano que se chocasse com o Código Florestal brasileiro, que normatiza a questão em âmbito federal. Mas em alguns casos, interpretamos a lei de forma diversa.

(grifo nosso)

Como exemplo de interpretação diferente da lei, Carlos Alberto Riederer, presidente do IPUF, apresenta o caso das faixas de proteção dos cursos d'água: ―Só consideramos áreas limitadas as nascentes dos rios‖.

É curioso observar duas características dos discursos acima citados, nos trechos grifados. Uma, que está presente na fala do presidente do Sinduscon, é a de aproximação da esfera municipal com o povo, do que resultaria na capacidade de compreensão dos anseios desse povo. Esta é uma característica comum aos discursos que defendem a ideia de descentralização, pois as esferas superiores estariam distantes e, por isso, seriam incapazes de entender o povo e seus anseios. Essa ideia é comumente acompanhada de outra, qual seja a de que, em nível local, seria mais fácil fiscalizar, como se órgãos federais, a exemplo do IBAMA e da Polícia Federal, estivessem distantes, ou que seguissem determinações estranhas ao local. A outra característica, presente nos discursos dos dois representantes da

Prefeitura, de interpretação diferenciada da Lei, expressa a privatização dos órgãos públicos. Constitucionalmente, o poder público é regido, entre outros, pelo princípio da legalidade (CF, Art. 37), isto é, só lhe é permitido agir dentro dos limites do que a Lei permite e ao servidor público não compete interpretar leis, para isso existe o judiciário. Trata-se de um descarado processo de burla que legaliza a ilegalidade e isso não se trata de um particularismo florianopolitano, mas de uma expressão local de um processo que é geral no país e no mundo ―globalizado‖.

A revisão do Código Florestal foi feita por uma dupla motivação: a legalização de ilegalidades que estavam sendo realizadas em todo o país, no campo e na cidade e a liberação de áreas para exploração, também no campo e na cidade. Acompanha a revisão do Código Florestal a aprovação e promulgação da Lei Complementar 140, em dezembro de 2011, cuja ementa é a seguinte:

Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.

Esta pomposa ementa levaria a crer que, finalmente, estaria sendo definida uma política sistêmica e integrada das três esferas do Estado de proteção do meio ambiente e uma fiscalização também integrada. Ocorre que esta lei definiu que a instância que licencia um empreendimento é a mesma que se responsabiliza por sua fiscalização, o que atende o reclamo do Presidente do Sinduscon, acima citado e de muitos outros agentes, como, por exemplo, os madeireiros que atuam ilegalmente na Amazônia, que fizeram a festa, em 2012, batendo recordes de desmatamento (BRANFORD, 2012),

Com a nova lei, o IBAMA teve sua atuação reduzida às áreas que estão sob o domínio da União e, em todas as demais áreas, a fiscalização ficou para os órgãos que estariam supostamente mais próximos, no nível que ―entende seu povo, sabe dos seus anseios‖. Ana Maria Cruz, presidente da Associação dos Servidores do Ibama – Asibama, declarou à revista Caros Amigos, sobre a facilitação atual para os madeireiros legalizarem a madeira retirada ilegalmente (BRANFORD, 2012): É um efeito que não gera espanto, pois foi afastado o órgão federal, que é quem tinha condições técnicas e uma melhor condição de imparcialidade e impessoalidade.

Há uma estratégia de retirada dos servidores das bases regionais para colocá-los em Brasília, numa espécie de pacto da mediocridade. A administração do Ibama fechou os escritórios em toda a Amazônia de forma irresponsável e a situação é essa que vocês encontraram na Transamazônica.

A nota de apresentação de Barndford (CAROS AMIGOS, 2012, p. 14) informa que ela é uma jornalista britânica, que, em 1973, quando era correspondente do jornal inglês Finacial Times, fez uma primeira viagem à Amazônia para acompanhar a construção da Transamazônica e que ―agora, quase 40 anos mais tarde, encontrou uma região radicalmente transformada‖. A reportagem investiga um intrincado processo que faz com que explorações ilegais da madeira resultem em madeiras certificadas, dentre eles o da utilização de autorização de desmatamento de alguma área dos programas de colonização ao longo da Transamazônica que já está desmatada para legalizar madeira extraída de outras áreas, havendo um comércio clandestino desses documentos, que envolve intimidações e violências contra os colonos. Não é o caso de explorar aqui tal processo. A menção a ele tem, com já registrado, o objetivo primeiro de mostrar que a descentralização neoliberal visa retirar toda e qualquer barreira restritiva à acumulação, da floresta à

cidade e vice versa, exercendo uma pressão para reduzir os marcos regulatórios nacionais, ou flexibilizá-los.

Desse modo, os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, referentes à política urbana, marcam o início de um processo de descentralização liberal, sempre acompanhado de loas ao desenvolvimento sustentável, mas que expõe todos os lugares a desenvolvimentos predatórios. Nas cidades, os movimentos contra hegemônicos, como já registrado, continuam se apoiando na defesa do cumprimento de leis federais, o que também acontece no campo e na floresta. Apoiam-se, nas cidades, na lei do Estatuto da Cidade que tem sido cumprida pelas municipalidades apenas formalmente e não no enfrentamento à especulação imobiliária, uma vez que a Lei, limitada à definição constitucional, apenas autoriza os poderes públicos locais a adotarem medidas que restringem a especulação e que, com isso, poderiam ajudar na consolidação do direito, por ela mesma estabelecido, o direito a cidades sustentáveis.

Mas, se a Constituição de 1988 marcou o começo da descentralização, os expedientes legais recentemente criados e acima mencionados, não marcam o fim do processo. Por exemplo, é possível argumentar que a Lei 6.766/79, que regula nacionalmente o parcelamento do solo, teria se tornado inconstitucional, uma vez que o Art. 182 remete a política urbana ao munícipio e que o plano diretor é seu instrumento básico e não poderia, então, uma lei federal regulamentar o parcelamento do solo, que é uma das formas básicas da urbanização. O processo, então, tende a continuar rumo à alforria empresarial relativamente às amarras legais, que seria também a alforria do empreendedorismo urbano de cidades livres concorrentes.

4. O MODELO DE CIDADE COMPETITIVA E SUA